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2011-07-01

No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem

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  • Silvia Niederauer

NO TEU DESERTO, DE MIGUEL SOUZA TAVARESMEMÓRIAS DE AMOR E DE VIAGEM

Silvia Niederauer
Centro Universitário Franciscano (Unifra) – Brasil
silvia.niederauer@yahoo.com

O luar enche a terra de miragens
E as coisas têm hoje uma alma virgem,
O vento acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que é o perfeito acorde da minha alma.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Aepígrafe que abre este texto é da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, mãe de Miguel Souza Tavares, primeira mulher portuguesa a receber o Prêmio Camões, em 1999. O pai, Francisco Souza Tavares, era advogado, profissão que também Miguel assume por algum tempo, até dedicar-se ao jornalismo. Atualmente é comentarista da TV e colunista do jornal Expresso. Ademais conta com vários livros publicados os quais abrangem uma gama considerável de gêneros:

  • livros de reportagens e crônicas: Sahara, A república da areia, Sul, Não te deixarei morrer, David Crockett.
  • livros infanto-juvenis: O planeta branco, O segredo do rio.
  • romances: Equador (2004), Rio das flores (2007) e No teu deserto (2009), que segundo o autor, é “um quase romance de amor” e “quase um diário de viagem” e será aqui comentado.

A areia nos olhos e o pó no corpo estarão presentes durante a narrativa nostálgica que o narrador Miguel traz à tona por meio de sua memória saudosa, nebulosa, pelo sentimento represado e a tentativa de falar de afetos não plenamente revelados.

A epígrafe que abre o romance é indicativa de um mundo longínquo e inatingível no presente: “Para a Cláudia, lá em cima, numa estrela distante sobre o Sahara” (Tavares, 2009). Miguel, jornalista que pretende fazer uma viagem ao deserto do Saara terá por companheira a jovem Cláudia, 15 anos mais nova que ele. Dirigindo um jipe “um UMM, motor Peugeot e carroçaria portuguesa, seguramente o mais feio, o mais resistente e, para mim, o mais comovente carro que algum dia guiei” (15). Miguel precisa de uma autorização de filmagem para conseguir entrar no Saara pela Argélia. Por esse motivo os dois terão que se separar do grupo, logo na saída, no ano de 1987, como ele diz, “simbolicamente da Torre de Belém, o lugar mítico das antigas viagens dos navegadores portugueses dos Quinhentos” (21). Viajam por longas quatro milhas depois de alguns entraves burocráticos, e, finalmente, conseguem entrar no deserto do Saara.

No teu deserto pode ser lido como uma carta escrita a quatro mãos: Miguel rememora, depois de 20 anos, sua última viagem ao deserto do Saara, e as cartas de Cláudia, já morta, chegam a ele tarde demais. Nesse jogo de vozes, ora a visão dele se sobressai, ora a dela diz o que o silêncio do deserto a fez calar, e a narrativa-memória vai se construindo:

Esta história que vou contar passou-se há vinte anos. Passouse comigo há vinte anos e muitas vezes pensei nela, sem nunca a contar a ninguém, guardando-a para mim, para nós, que a vivemos. Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fina camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes. (Tavares 2009, 9)

Ao entrar, olhei para o quarto e vi-te a olhar para mim. Foram apenas uns segundos e soube-me bem, não sei explicar porquê – talvez por vaidade, talvez porque já me sentisse íntima de ti e esse teu olhar não tivesse nada de estranho ou de maldade, talvez apenas porque eu queria que tu me visses e queria ver-te a olhar-me. (55-56)

A memória, como representação de um passado ausente no presente, é a capacidade de (re)significar os acontecimentos e, em particular, aquilo que marcou o sujeito. Segundo Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento, “uma ambição, uma pretensão está vinculada à memória: a de ser fiel ao passado” (2007, 40). Assim, é por meio da rememoração que Miguel tenta recuperar os quarenta dias passados no deserto, ao lado da mulher que ele amou e que mudou sua vida. O objetivo primeiro da viagem era fazer um documentário para ser vendido posteriormente à televisão portuguesa. Isso perde espaço na narrativa para dar vida aos silêncios e sentimentos que vão ganhando corpo à medida que avançam pelo deserto.

Inicialmente distantes e estranhos um do outro, Miguel e Cláudia vão entrando no árido deserto e, à medida que avançam espacialmente, avança também uma sedução velada e a relação entre eles vai ganhando novos contornos que migram para o companheirismo e para o amor represado. Ao mergulharem no deserto do Saara, ambos mergulham metaforicamente no deserto do outro.

Se a memória propicia o entendimento das experiências do sujeito que, então, confere aos acontecimentos uma (re)significação, ela o faz refletir e repensar naquele passado e, de certa forma, repensar o seu presente. Como diz Ricoeur, “não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (2007, 40).

Nessa perspectiva lembrar é a experiência de (re)conhecimento e de (re)criação das coisas e situações, que assumem um valor simbólico. Enquanto guardiã do que aconteceu no tempo, a memória assegura a continuidade temporal, objetivando uma melhor apreensão das relações do passado. Como o fio condutor da memória é a sua relação com o tempo, a memória é a do passado, e suas lembranças são distintas do presente. Para Ricoeur:

A memória está no singular, como capacidade e como efetivação, as lembranças estão no plural: temos umas lembranças [que] podem se apresentar em seqüências mais ou menos favoráveis à composição de uma narrativa. (2007, 41)

Miguel se lembra das dificuldades pelas quais ele e Cláudia passaram durante a viagem, mas o que importa realmente são os momentos que dividiram: os silêncios, as ausências dela, o sentimento sufocado de ambos. A rememorização de Miguel não é totalmente fragmentada, pois é desencadeada por uma fotografia guardada em uma gaveta de sua casa, Ela presentifica tudo o que aconteceu há vinte anos atrás: “fiquei a olhar-te longamente, longa, longa, longamente. E longamente me fui dando conta de que tudo aquilo acontecera mesmo: eu não sonhara, durante vinte anos” (2009, 10). No início da narrativa, Miguel afirma que:

A verdade é que, agora que me sento para te escrever, reparo – mas sem nenhum espanto nem estranheza – que não preciso de inventar nada: lembro-me de tudo, exatamente tudo, hora por hora, quase cada olhar nosso, cada gesto, cada sorriso, cada amuo. (9)

A escrita no presente de uma situação-limite que aconteceu no passado remete à narrativa de Dom Casmurro escrita em 1899 por Machado de Assis. Ali o personagem Bento Santiago, o Bentinho Casmurro tenta ordenar sua vida, por meio da escrita, dizendo que “o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” (Assis 2010, 2). Entretanto, enquanto Bentinho é um narrador equivalente ao “camponês sedentário” (199), conforme diz Walter Benjamin, em O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Lescov (1994), Miguel é o exemplo de narrador “marinheiro comerciante” (199), uma vez que volta a viajar para o Saara mais onze vezes. É desse lugar de quem viaja muito, conhece outras experiências para além daquelas vividas em um único lugar, é que ele pode imprimir a forma da narrativa da memória daquilo que viveu com Cláudia. Seguindo a esteira do pensamento benjaminiano, a narrativa de Miguel:

É ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. [...] Ela mergulha a coisa narrada como na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (205)

A volta ao deserto outras tantas vezes, sempre sem Cláudia, aponta para o entendimento de que aquela primeira viagem nunca mais se repetiria. Tudo o que ambos passaram: fome, frio, tempestades de areia, noites longas e silenciosas, o encontro com uma caravana de tuaregues, estradas vazias e a imensidão do deserto, mesmo convergindo para a intimidade e o afeto entre os dois, faz Miguel ter a certeza de que “há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar dessa viagem. Nunca mais vou regressar do deserto” (112).

No teu deserto pode ser lido também como um tributo ao deserto, a uma pessoa e à viagem, todos ainda ‘virgens’, pois o afeto cresce a cada minuto. Por tudo isso, as diferenças acabam por aproximá-los e a rememorização daquele tempo não deixa de ser uma luta contra o “deserto do esquecimento e da solidão”, resgatados pela memória que constitui os sentidos do sujeito:

Muitas vezes me tenho lembrado da Cláudia. Talvez menos do que seria normal, certamente menos do que ela merece. [...] Muitas vezes me lembro dos nossos diálogos, durante as longas horas daqueles sofridos e gloriosos dias, interminavelmente aos saltos e solavancos dentro do jipe [...]. Dias de inocência, de iniciação, de descoberta, pelo Sahara adentro, pelas nossas almas adentro. (2009, 17)

Miguel, ao buscar a lembrança daquele tempo pretérito, confirma as palavras de Ricoeur: “a busca da lembrança pela memória comprova uma das finalidades principais do ato da memória, a saber, lutar contra o esquecimento. [Então] o dever da memória é o dever de não esquecer” (2007, 48). A partir da evocação do passado, que é imutável, o narrador/protagonista, no presente, sente-se tocado, pois sabe que o que mudou está no momento presente:

E tantos anos passaram desde então! [...] Os anos passaram por mim [...]. Um dia em que tive um grande desgosto, deitei-me para dormir sem saber como seria minha vida para diante. Quando acordei, olhei-me ao espelho e vi, espantado, que duas grandes rugas me tinham nascido nessa noite, junto aos olhos. Não estavam lá antes de eu me ter deitado na véspera, mas agora estavam, nítidas e verdadeiras. (2009, 115)

Ao reter os acontecimentos daquela viagem na memória, o que Miguel fez foi modificar a percepção do que havia se passado, conferindo um novo status à convivência entre ele e Cláudia. A lembrança daquilo que não mais voltará, revela o deserto que é a sua vida ecomo esta ficou depois da morte de sua companheira. É pela escrita que o ‘deserto’ readquire movimento, vida e expressão, uma vez que Miguel, após vinte anos, rompe o silêncio e narra o que aconteceu entre eles. A experiência rememorada reaparece como sendo idêntica ao que se passou: Cláudia não mudou, nem o cenário, o que faz com ele confie plenamente na memória: “Não ficou rasto algum, só duas ou três fotografias onde ela está e onde às vezes eu estou também. Por isso escrevo esta história” (20).

Pautado pelos silêncios que vão adquirindo uma simbologia extrema de vida e solidão, No teu deserto capta, ao mesmo tempo, a conservação do que passou e o apagamento pela morte. A morte de Cláudia não é o mote para que Miguel escreva a história vivida por eles, a história de uma viagem com data marcada para terminar:

—Porque nossa viagem acabou aqui.
—Acabou?
—Acabou, sim. Tu sabes bem que acabou.
—Não, só acaba depois de amanhã, em Lisboa.
—Hoje ou amanhã ou depois, qual é a diferença? Acabou! (119)

É uma simples fotografia que desencadeou uma fonte de lembranças que pareciam esquecidas até então. É ela que fez o narrador voltar ao passado e perceber o que deixou de fazer, de dizer, mas que, ao receber as cartas de Cláudia muito tempo depois, pode atestar que os não ditos comprovam a cumplicidade entre eles: de afeto, de desejo, de parceria.

Alguns duplos que a narrativa suscita são: a morte, o silêncio, a cumplicidade. A morte de Cláudia, ignorada ainda no momento da escritura de suas histórias, remete à morte de uma possibilidade de vida dividida, compartilhada pelo amor reprimido nos quarenta dias de viagem; o silêncio é o que calou, mas que, de certa maneira, ficou dito por meio dos olhares trocados, das ausências de Cláudia em meio ao deserto, da proteção mútua nas longas noites do deserto dentro da barraca, nos toques sutis de um (quase) abraço.

Assim, No teu deserto se converte em uma viagem ao mais íntimo da vida de uma pessoa, a uma viagem sem volta, pois tudo o que é vivido marca de forma indelével e provoca, muitas vezes, um encontro consigo mesmo para o qual nem sempre se está preparado. Miguel assim justifica o motivo pelo qual as pessoas perderam o interesse pelo deserto:

Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactados no Facebook e nas redes sociais da Net. [...] Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro. (1999, 117)

Se “é como começo que o presente faz sentido” (2007, 51), de acordo com Ricoeur, Miguel presentifica o passado porque quer dar a ele um sentido que hoje, entende como necessário:

Essas cinco semanas passadas no Sahara iam-se esfumando no meu espírito tão rapidamente como rapidamente nos tínhamos aproximado e depois afastado. Esfumavam-se no meu espírito: não na minha memória. Porque assim o tinha procurado, assim o tinha querido. (101)

Pela palavra, No teu deserto resgata o que vai além da memória: a existência de afetos que marcam e modificam aqueles que se permitem vivenciar, pelo menos uma vez, a viagem interior promovida pela luta, pelo embate contra o esquecimento.

Referências

Assis, Machado. Dom Casmurro. http:// www.dominiopublico.com.br (Acesso em 10 de agosto de 2010).

Benjamin, Walter. O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Lescov. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Ricoeur, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2007. Tavares, Miguel Souza. No teu deserto. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Niederauer, S. (2011). No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem. Literatura: teoría, historia, crítica, 13(2). https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993

ACM

[1]
Niederauer, S. 2011. No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem. Literatura: teoría, historia, crítica. 13, 2 (jul. 2011).

ACS

(1)
Niederauer, S. No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem. Lit. Teor. Hist. Crít. 2011, 13.

ABNT

NIEDERAUER, S. No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem. Literatura: teoría, historia, crítica, [S. l.], v. 13, n. 2, 2011. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993. Acesso em: 19 abr. 2024.

Chicago

Niederauer, Silvia. 2011. «No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem». Literatura: Teoría, Historia, crítica 13 (2). https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993.

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Niederauer, S. (2011) «No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem», Literatura: teoría, historia, crítica, 13(2). Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993 (Accedido: 19 abril 2024).

IEEE

[1]
S. Niederauer, «No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem», Lit. Teor. Hist. Crít., vol. 13, n.º 2, jul. 2011.

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Niederauer, S. «No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem». Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 13, n.º 2, julio de 2011, https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993.

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Niederauer, Silvia. «No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem». Literatura: teoría, historia, crítica 13, no. 2 (julio 1, 2011). Accedido abril 19, 2024. https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993.

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1.
Niederauer S. No teu deserto, de Miguel Souza Tavares: memórias de amor e de viagem. Lit. Teor. Hist. Crít. [Internet]. 1 de julio de 2011 [citado 19 de abril de 2024];13(2). Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/26993

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