Publicado

2014-01-01

“Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória

DOI:

https://doi.org/10.15446/lthc.v16n1.44329

Palabras clave:

João Guimarães Rosa, literatura latino-americana, literatura brasileira, literatura colombiana, estilo vestigial (es)

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Autores/as

  • Bairon Oswaldo Vélez Escallón Universidade Federal de Santa Catarina

A partir de indícios encontrados nos arquivos de João Guimarães Rosa, este trabalho discorre sobre a maneira em que o corpus do autor elabora sua pró-pria teoria, em diálogo com protocolos vestigiais da literatura e em discussão com protocolos autonomistas. Mostra-se o modo em que “Meu tio o Iauaretê” desconstrói pressupostos de prioridade ontológica. Por último, reflete-se sobre a operação pela qual o escritor se põe à margem da estória, reproduzindo com o próprio silêncio o silenciamento histórico de outros, dando-lhes assim um lugar aos que nunca o tiveram.

"MEU TIO O YAVARATÊ"
- À MARGEM DA ESTÓRIA
*

"MEU TIO O YAVARATÊ"
-AL MARGEN DE LA HISTORIA

"MEU TIO O YAVARATÊ"
-AT THE MARGINS OF HISTORY

 

Bairon Oswaldo Vélez Escallón
Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
flint1883@yahoo.com.mx

Artículo de reflexión.
Recibido: 23/12/13; aceptado: 12/03/14


A partir de indícios encontrados nos arquivos de João Guimarães Rosa, este trabalho discorre sobre a maneira em que o corpus do autor elabora sua própria teoria, em diálogo com protocolos vestigiais da literatura e em discussão com protocolos autonomistas. Mostra-se o modo em que "Meu tio o Iauaretê" desconstrói pressupostos de prioridade ontológica. Por último, reflete-se sobre a operação pela qual o escritor se põe à margem da estória, reproduzindo com o próprio silêncio o silenciamento histórico de outros, dando-lhes assim um lugar aos que nunca o tiveram.

Palavras-chave: João Guimarães Rosa; literatura latino-americana; literatura brasileira; literatura colombiana; estilo vestigial.


A partir de indicios encontrados en los archivos de João Guimarães Rosa, este trabajo se aproxima al modo en que el corpus del autor elabora su propia teoría, en diálogo con protocolos vestigiales de la literatura, y en discusión con protocolos autonomistas. Se muestra el modo en que "Meu tio o Iauaretê" deconstruye presupuestos de prioridad ontológica. Por último, se reflexiona sobre la operación a través de la cual el escritor se pone al margen del relato, reproduciendo con el propio silencio el silenciamiento histórico de otros, dándoles así un lugar a quienes nunca lo tuvieron.

Palabras clave: João Guimarães Rosa; literatura latinoamericana; literatura brasileña; literatura colombiana; estilo vestigial.


Following the indications found in the archives of João Guimarães Rosa, the article addresses the way in which the author's work creates its own theory through a dialogue with "vestigial protocols of literature" and a discussion with "autonomist protocols". It shows how "Meu tio o Iauaretê" deconstructs assumptions of ontological priority. Finally, it reflects on the operation through which the author situates himself at the margins of the story, reproducing, through his own silence, the historical silencing of others and thus giving a place to those who never had one.

Keywords: João Guimarães Rosa; Latin American literature; Brazilian literature; Colombian literature; "vestigial style".


Initiisterra: só uma maneira de abordagem nos comunica com o imenso: a miúda.

João Guimarães Rosa, "Amazônia"

HÁ LUGARES QUE DESAFIAM TODA abstração, as categorias, conceitos e divisões com que, pretendendo catalogar ou compreender absolutamente o mundo, não fazemos mais do que nos separar dele. E esses lugares podem ser territórios, gentes, textos, tecidos. Existências singulares, enfim. Este trabalho se dedica à leitura, marginal e talvez tangencial, de um texto singularíssimo, intitulado "Meu tio o Iauaretê".

Antes de abordar essa narrativa imensa, é preciso dizer algo sobre o lugar de que leio. Há alguns anos pesquiso a obra de Guimarães Rosa, especificamente a partir de uma novela intitulada "Páramo", inacabada e só publicada postumamente, que narra as aventuras melancólicas de um diplomata brasileiro numa cidade andina, e anônima, que resulta ser Bogotá. Esse detalhe, a cidade de "Páramo", foi de maneira geral, obliterado pela crítica. Ocorre que, quando tentei compreender o porquê ou a origem dessa indiferença, só pude relacioná-los aos protocolos de leitura mais comumente associados à crítica rosiana: a saber, o super-regionalismo de Antonio Candido (1987; 2002) e a transculturação narrativa de Ángel Rama ([1982] 2008). Esses protocolos de leitura do latino-americano, e especificamente da obra estudada, são até hoje dominantes. Postulam, grosso modo, e cada um a sua maneira, uma literatura que ficcionalmente interpretaria realidades particulares introduzindo-as, posteriormente, no âmbito internacional, universal, das representações simbólicas do nacional. Isso, além de tender a uma certa neutralização de fortes antagonismos vitais, de colocar o estado ou a nação como centro e alvo de toda reflexão, coincide com um regime autonomista de leitura que entende o ficcional como reflexo superestrutural de um dado complexo histórico-social1 e reporta toda validação, toda legitimidade, a um mediador absoluto, geralmente situado nos grandes centros da cultura ocidental. A universalidade simbólica, de outra parte, exige um contrapeso: apesar da constante reivindicação da autonomia do texto literário, esses protocolos dependem em grande medida da coincidência entre os espaços representados e os lugares de origem dos autores. Como vemos, cosmopolitismo e nacionalismo não se opõem, não há entre eles um impasse, mas são complementares e, diferindo nas escalas das suas abstrações, coincidem no fundamental: a mediação absoluta de um centro, seja declarado ou não declarado. Confluência problemática, porque se o elo absoluto entre as chamadas culturas periféricas é um centro longínquo, o nosso reconhecimento deverá sempre passar por essa mediação e, dessa maneira, as representações mútuas serão por demais abstratas. No caso de "Páramo", já se disse que pouco importa saber do lugar dos acontecimentos narrados, que a narrativa constrói os próprios significantes, que se trata de uma cidade ideal ou, simplesmente, de uma cidade andina qualquer. Isso se disse ignorando a obsessiva minúcia etnográfica, geográfica, topográfica, de Guimarães Rosa, além dos fatos biográficos que o vinculam estreitamente com a cidade, e da malícia da sua escritura, sempre escondendo detalhes nos lugares menos pensados. Todavia, em "Páramo" não se menciona o nome "Bogotá", mas há vários detalhes que vieram ao texto e que ao invés de fazer com que o espaço-tempo seja indiferente, demandam uma leitura miúda, barroca, exigem um nome do esforço criativo de quem lê, promovem contatos (cf. Vélez 2012).

Acredito que uma leitura marginal suscita ligações diversas das costumeiras e que, mesmo em materiais muitas vezes vistos e estudados, ilumina regiões invisibilizadas pela leitura frontal ou central. Procurando no arquivo vestígios das passagens bogotanas de Rosa, e após o contato com alguns documentos, pensei que no meio do caminho, entre o território que denominamos Brasil e esse outro, a Colômbia, há um lugar que torna complexa a demarcação de fronteiras. Ninguém se surpreenda se os limites nacionais se indefinem na Amazônia. A epígrafe deste artigo (uma versão rosiana do "Deus está nos detalhes" de Warburg), tomada de uma narrativa intitulada precisamente "Amazônia", inédita e acredito que inacabada, pode ajudar para caracterizar a minha maneira de proceder, geralmente a partir de detalhes mínimos, inclusive insignificantes de certos pontos de vista.

Dentre outros materiais pesquisados, há no Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, várias versões de índices de um livro projetado muito tempo antes da publicação em 1956 de Grande sertão: veredas - intitulado Toosa, ou Dia a dia, ou Dia a dentro -, em que estão incluídos "Meu tio o Iauaretê", "O demônio na rua, no meio do redemunho" e "Bogotá (morte em vida)". Além dessa presença comum em índices de livros projetados, "Páramo" e "Meu tio o Iauaretê" foram publicados no volume póstumo Estas estórias ([1968] 1976), que Rosa preparava no seu último ano de vida. Só uma afinidade íntima justifica essas vizinhanças, que se acentuam quando consideramos que, apesar de publicado em revista só em 1961, o texto-onça foi terminado em 1949, só alguns meses após a experiência traumática do Bogotazo, que Rosa testemunhara. Os dois textos, assim, são anteriores a Grande sertão: veredas, mas se planejaram junto com ele em versões anteriores.

No IEB há também outros documentos relacionando esses textos, dentre eles, os rascunhos de "Amazônia" e a caderneta que Rosa folheava quando morreu em 19 de novembro de 1967.2 A seguir, se citam extratos desses documentos, selecionados com o intuito de focar a atenção sobre alguns detalhes coincidentes:

Guainía: "en el Río Negro, río sugestivo que los naturales llaman Guainía." ("LA VORÁGINE")

[...]

"La lengua yeral" (a língua-geral) ["LA VORÁGINE"]. (IEB/USP ACGR2256)

"Imenso= só uma abordagem ____:
desterrar-se humildade. Intimidade"
Initiisterra Puja o mundo
"Não é o mundo da "forma" keyserlingiana.
Mas do estilo"
Língua geral
O índio não gostava do negro".
(IEB/USP JGR-M-20, 63)

Dentre as variadas ligações passíveis de serem deduzidas dessas anotações, cabe destacar: 1) o interesse na língua "geral" ou "yeral", também chamada de "ñe'engatú" - a língua materna do protagonista e narrador de "Meu tio o Iauaretê" -, língua baseada no tupinambá e ainda hoje falada na região amazônica, particularmente ao longo do Rio Negro (ou Guainía, segundo a denominação indígena), no Brasil, na Colômbia e na Venezuela, com inúmeras menções em La Vorágine; 2) a coincidência, na mesma anotação, dessa "língua geral" com a frase "O índio não gostava do negro"; 3) a opção pelo estilo em detrimento da "forma" keyserlingiana.

Nas suas Meditaciones suramericanas (1933), o Conde de Keyserling caracterizava esta parte do mundo como o continente do terceiro dia da criação, um lugar que ainda não teria assumido a sua forma final. Em contraste com um temperamento europeu "condicionado y traspasado por el espíritu" (41), o continente sul-americano, informe ou híbrido, estaria para Keyserling, como a selva para Euclides da Cunha, À margem da História (1909), carne aguardando por um espírito que lhe doasse a sua forma, terra inculta à espera de sementes: "En nuestro mundo fue, en el principio, el Verbo. En Suramérica fue la carne la primera materialización" (Keyserling 1933, 25). Para ilustrar essa informidade, o Conde usava uma longa citação de La vorágine ([1924] 1946), livro de José Eustasio Rivera em que se faz uma descrição da selva amazônica como "inferno verde" ou "abismo antropófago", misturado, confuso, híbrido, sem uma conformação definida ou claramente delimitada (31-33).

Entretanto, Keyserling também operava através de uma supressão calculada, omitindo o detalhe de que, na ficção assinada por Rivera, o homem "civilizado" não é o antídoto, mas a causa dessa voragem generalizada:

[...] es el hombre civilizado el paladín de la destrucción. Hay un valor magnífico en la epopeya de estos piratas que esclavizan a sus peones, explotan al indio y se debaten contra la selva. Atropellados por la desdicha, desde el anonimato de las ciudades se lanzaron a los desiertos buscándole un fin cualquiera a su vida estéril. [...] Teniendo a la selva por enemigo, no saben a quién combatir, y se arremeten unos contra otros y se matan y se sojuzgan en los intervalos de su denuedo contra el bosque. Y es de verse en algunos lugares cómo sus huellas son semejantes a los aludes: los caucheros que hay en Colombia destruyen anualmente millones de árboles. En los territorios de Venezuela el balatá desapareció. De esta suerte ejercen el fraude contra las generaciones del porvenir. (Rivera [1924] 1946, 229-230)

Em La vorágine, note-se, a destruição é uma consequência da expansão violenta da civilização. A produção do lobisomem - ou seja: da guerra civil - é no romance o dispositivo específico de domesticação da floresta. Os destruidores da selva são homens expropriados e escravizados, lançados uns contra os outros por conta de necessidades criadas. Tanto a empresa capitalista de extração seringueira quanto a lógica "branca" que a mobiliza ficam com os lucros dessa guerra. A inimizade entre um mulato e um índio, Correa versus Pipa, essa luta em especial é, em La vorágine, um exemplo dessa destruição provocada pela própria civilização. Entre a sujeição (Correa) e a liberdade (Pipa), um vazio: no meio da luta entre esse negro e esse índio, cabe a Arturo Cova - protagonista e narrador - o papel de pai ou árbitro, o homem branco, civilizado e vestido como mediador absoluto (cf. Rivera [1924] 1946).

Devorado por Guimarães Rosa, esse Pipa (tigreiro, baquiano, boga, intérprete de línguas amazônicas, pirata) é, talvez, aquele índio "que não gostava do negro" e se associava à língua yeral ou ñe'engatú nas anotações do escritor acima transcritas. Esse é um tema fundamental de "Meu tio o Iauaretê" e disso dá conta, além da própria estória, a correspondência trocada entre Haroldo de Campos e Guimarães Rosa a respeito desse texto: pois negros são as vítimas prediletas do homem-onça da narrativa.3

A omissão dessa interpretação, a de que o fundamento da barbárie é a civilização, é provavelmente o motivo do diferendo de Rosa, da sua opção pelo estilo em detrimento da forma keyserlinguiana. Ora, recusar a forma é também recusar ao menos dois de seus avatares mais salientes dentro da cultura brasileira: o herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade (1928) e, broto seu, a Formação da literatura brasileira ([1957] 1975) de Antonio Candido.

Passarei por Mário apenas mencionando que, como demonstrou Telê Ancona, ele lançou mão de um livro anterior de Keyserling, Le monde qui nait (1927), para elaborar a sua particular conceituação do "homem brasileiro em seu destino" (Lopez 1972, 51).4 No caso de Antonio Candido, herdeiro em muitos sentidos de Mário, na sua Formação da literatura brasileira, ele se apropriava de uma metáfora arborescente para caracterizar o seu objeto: "A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas" ([1957] 1975, 9). E mais adiante, a caracterização explicitava o seu objeto a partir do informe ou selvagem: "os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar [...] os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam - dos quais se formaram os nossos" (10). De longe, com muitas nuances que não cabe aqui singularizar, mas de maneira premente, o espírito keyserlinguiano assedia a Formação...: "[As obras] lidas com discernimento, revivem na nossa experiência [...] o espírito do Ocidente, procurando uma nova morada nesta parte do mundo" (10).

Em Tutaméia (1968), especificamente no fragmento II do prefácio "Sobre a escova e a dúvida", Guimarães Rosa parodia essa formação, usando, via alegoria, essa imagem arborescente. O que era terra inculta ou jardim das Musas se transforma em lavoura de "meio acre, sozinha ela lá, vistosa"; Antonio Candido no "Tio Cândido": "pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios-termos, acocorado"; o tronco se transforma em "mangueira" aprisionada "num cercado de varas". A intenção paródica intensifica-se no produto da árvore: do tronco da mangueira rosiana não saem só galhos secundários; de fato dos galhos saem... mangas! Ou seja, sementes: "qualquer manga em si traz, em caroço, o maquinismo de outra, mangueira igualzinha, do obrigado tamanho e formato. Milhões, bis, tris, lá sei, haja números para o Infinito" (Rosa 1968, 148-149). Questionar a "forma", note-se, é questionar conceitos que lhe são correlatos, como obra, original, sistema, autonomia, fronteira. O derivado não é inferior ao original,5 como se pode coligir da conclusão do fragmento: "Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois" (149).

Essa recusa da forma, e a opção pelo estilo, comunicam com posições filosóficas adversas a Keyserling, a respeito das quais o próprio arquivo do escritor nos fornece indícios. Acredito que para Rosa, estilo não era um conceito beletrista, nem tentava através dele repor a autoridade de um gênio romântico. Recorria a ele para designar algo que guarda vestígios da contemporaneidade da escritura, para além da representação, dos temas, dos assuntos, dos conteúdos. Estilo, assim entendido, seria um arquivo de pathos de espaço-tempos singulares, para além do conscientemente tencionado pelo escrevente, uma entrada no corpus do ambiente em interação com o sujeito que escreve. Em Ecce Homo, Friedrich Nietzsche, autor vastamente frequentado por Rosa, pensava o estilo dessa maneira:

Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo desses signos - eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo - a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos - todas as leis do período são arte dos gestos... Bom estilo em si - pura estupidez, mero idealismo, algo assim como o belo em si, como o bom em si, como a coisa em si. ([1888] 2004, 57)

Desenvolvimentos posteriores dessa noção, contemporâneos de Rosa, são de imensa relevância para compreender a apropriação que o autor fez da reflexão nietzschiana. Vou me concentrar brevemente na teoria mimética de Roger Caillois, autor conhecido e conhecedor de Rosa,6 no seu diálogo com o pensamento do Jacques Lacan de Minotaure.

Baste dizer que nas reflexões de Caillois sobre o mito e o mimetismo (cf. 1939), tanto quanto nas reflexões lacanianas sobre o estádio do espelho e sobre a relação da paranoia com o estilo escritural (cf. Lacan 1933a; 1933b; [1966] 1998), considera-se a imagem como algo constituinte antes que constituído, a ficção como formadora do orgânico. Dado que através da imagem se articulam o dentro e o fora do corpo, o limite entre sujeito e objetos é extremadamente lábil. O espírito, portanto, não antecede à forma, e a ficção não é posterior à natureza. Isso quer dizer que o significado de um estilo não decorre de um sentido precedente, mas só se produz numa rede diferencial, numa série significante. Assim, se não há um limite muito claro entre narrativa e ato, isto é, entre cultura e natureza, então mitar não é só imitar, é ser. A diferença entre mito e natureza é puramente mítica e toda corporeidade foi, desde sempre, espiritual. Da obra ao texto, o estilo, portanto, não é mimesis, mas mimetismo, ou seja, é jeito, maneira, gesto, entrada no corpus do ambiente.

A maneira do que Keyserling entendia como informidade corporal é, precisamente, a do misturado, a do inferno verde de Rivera, a forma heterogênea do mestiço. Quando Rosa opta por esse estilo não faz outra coisa do que afastar o significante do lugar-comum das generalizações e das faltas, em direção ao excesso; um estilo detalhado, miúdo, suntuário, contaminado pelo ambiente, constituinte antes que constituído. O outrora suplementar desloca o centro e dos galhos nascem mangas.

É obvio, por outra parte, que o fato de João Guimarães Rosa se interessar negativamente pela "forma keyserlinguiana" não se devia exclusivamente ao uso tendencioso que o Conde fez de La vorágine, mas também, e primordialmente, ao interesse que o modernismo, manifestamente nos seus mais salientes pontais, dedicara à sua obra: Mário, como se viu, valendo-se do "Sinn" na escritura do seu herói sem caráter e Oswald - no Manifesto antropófago de 1928 - tomando posse, via gambiarra, do "bárbaro tecnizado" de Le monde qui nait (1927) como ponto culminante da revolução caraíba (1978, 14). Há, nesses dois casos, estilos diferentes de apropriação: enquanto Mário acata um pouco submissamente o diagnóstico de Keyserling, Oswald o troca de signo para fazê-lo servir a valores opostos daqueles que o produziram como preconceito. "Tupy or not tupy, that's the question": também é obvio que Rosa, malgrado a opinião adversa que Oswald alguma vez manifestara sobre ele,7 não iria criar uma ficção protagonizada por um canibal descendente de tupinambás, sem levar em consideração o pensamento antropofágico, especificamente na vertente oswaldiana.

Optar pelo estilo, recusando a forma, exige uma compreensão diferente das atividades complementares da leitura e da escritura. Acredito que essa opção, em Rosa, pode vincular-se com o famigerado "paradigma indiciário" que há alguns anos postulara Carlo Ginzburg e que prefiro denominar, combinando Nietzsche ([1888] 2004), Ludwik Fleck (1986) e Jean-Luc Nancy (2008), estilo vestigial.8 A opção pelo estilo implica, à maneira do Benjamin leitor de Bachofen (1980), a compreensão da linguagem como um arquivo de semelhanças imateriais, ou seja, como uma arquiescritura, que porta em si, como os traços estudados pela grafologia, muito mais que o conscientemente tencionado pelo falante/escrevente, marcas que exigem "Ler o que nunca foi escrito" (1971, 170).9 Exige também, como para Warburg (2004) e Carl Einstein (2011), relacionar isso nunca escrito com gestos ou vozes apagadas por uma história catastrófica, vozes que, quando pensadas na sua vida póstuma, iluminam profanamente o presente, mostrando nele uma insuficiência ontológica enorme, além da crendice fundamentalmente fincada na pretensão ocidental de viver sem mitologias, ou de colocar outras culturas à margem da história ou mesmo da arte. Implica, essa opção pelo estilo em detrimento da forma, finalmente, como na antropofagia errática postulada por Oswald de Andrade em A crise da filosofia messiânica (1950), relacionar essas vozes com algo capaz de abalar a sociedade patriarcal, a sociedade do negócio e da falta - negadora do ócio, do suntuário e, portanto, da doação - , um matriarcado que sobrevive vestigialmente nas produções culturais de ocidente e pode ser rastreado nelas (cf. 1978, 88). Ou seja, a exigência fundamental de uma opção pelo estilo é a de atentar para o miúdo, o corriqueiramente desprezado pelas abstrações totalizadoras; atentar para tudo que entrou no corpo do texto apenas como marca de um contato, mas sem pretender ser um reflexo ou uma abstração consciente do dado.

Em "Meu tio o Iauaretê" há marcas de, entre outros, dois mitos, profundamente relacionados com o matriarcado e com o seu esmagamento ocidental e patriarcalista: a Lenda de Yuruparý e Dioniso.10

De Nietzsche ([1871] 1992) e da revista Acéphale (2005) que, através da figura de Dioniso se empenhava na década de 30 numa reapropriação do pensamento nietzschiano, por esses anos sequestrado pelo fascismo, podemos tomar algumas características desse deus e do culto a ele devotado. Para eles, o culto de Dioniso era uma espécie de comunismo originário, uma ginecocracia, em que a vida cívica se sustentava por uma promiscuidade de elementos diferentes e não hierarquizados. Filho de Zeus e da mortal Sêmele,11 Dioniso se vincula com a estrangeiridade,12 com a ebriedade, com a infância, com a festa, com a luxúria, com o feminino, com o instintivo, com o popular, com o periférico, com o demoníaco, com o animal, com o sexual, etc.; em oposição ao Estado, à pátria, ao princípio de individuação, à autoridade, à forma, enfim, que Nietzsche identifica com Cristo e com Apolo. Dioniso, super-homem, como deus da desindividuação é o próprio nome do Anticristo, representa uma luta contra os poderes estabelecidos, uma sobressocialização perante a ordem social dada; por isso, a religião dionisíaca privilegia os vínculos por afinidade em detrimento dos vínculos de raça ou sangue, reúne os homens ao redor, não de ações definidas, mas da convicção de que a existência é o único valor absoluto e de que, carecendo de um sentido dado, ela é, em si mesma, trágica (cf. Nietzsche [1871] 1992; Bataille et al. 2005).

O dionisíaco também é um dispositivo de memória, porque, para além da forma, exige rastrear a força, a vontade de ser. O trágico, em palavras de Nietzsche, é "o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como arquiprazer" ([1871]1992, 152), ou seja, uma compreensão do pensamento como um jogo entre a forma que se constitui e a força que o abre ao devir. Isso quer dizer que não há vestígio errático sem recalque, que não há imagem aberta sem Nome-do-pai (Antelo 2009b, 8). Levada até o seu limite devastador, a forma se nega a si própria, manifestando lacunarmente tudo que oculta; levada até o seu limite, a pura força se institui, se formaliza.

Bem, o fato é que em dois dos nomes do protagonista de "Meu tio o Iauaretê" há ressonâncias dionisíacas: como anticristo ressoa em Antonho de Eiesus13 e em seu devir romano, Baco, que ressoa no nome Bacuriquirepa.

Na iconografia de Dioniso, esse deus sempre é associado a um felino de grande porte (leopardo, tigre, pantera), e à videira. Isso manifesta algumas dessas polaridades que Warburg aprendeu de Freud e de Nietzsche e que recolhem forças contrárias: o vinho que aproxima os homens (Eros) e a satisfação imediata de necessidades que os afasta (Ananké). Lembremos: o protagonista de Rosa fica mais expansivo à medida que se embebeda com cachaça, mas também fica mais agressivo, espreitando como um jaguar o seu interlocutor, doutor da cidade, que quer devorar.

O protagonista da novela, aliás, diz ter nascido "em hora em que o sejuçu tava certinho no meio do alto do céu",14 a mãe dele lhe diz que ele é a sétima estrela dessa constelação (Rosa 1976, 148). Sejuçu é a mesma constelação que nós conhecemos como Pléiades, precisamente as ninfas que cuidaram de Dioniso após o seu segundo nascimento e que vemos no céu perseguidas pelo caçador Órion. Ele, o protagonista, é a sétima estrela desse sete-estrelo, a menos visível - pode ser vista somente pelo telescópio e em apenas algumas fases do ano. Ovídio explica, nos Fastos, que essa sétima estrela, Mérope, corresponde à única das Pléiades que teve a ousadia de relacionar-se com mortais, especificamente com Sísifo, e de ter uma descendência mestiça. Ela tem vergonha e se esconde no céu, por isso é quase invisível (2001, 136).

Sejuçu, ou as Plêiades, é também o ascendente materno de Yuruparý, e também aparece com o nome de Cy (ou Ceucy) na epopeia do Herói sem nenhum caráter, perseguindo Macunaíma pelo continente inteiro. Yuruparý é um herói legislador amazônico, fasto e nefasto, um híbrido de origem divina, animal, vegetal, mineral e humana, que tenta instituir entre os Tucanos a lei do sol, uma lei masculina e musical. Alguns intérpretes, como Héctor Orjuela, veem no mito uma poderosa evidência do Matriarcado, principalmente pelo fato de explicar a passagem da matriliniearidade para a patrilinearidade, e do poder das mulheres para o poder masculino - um mito que dá conta da existência efetiva das Amazonas (cf. 1982). Talvez por essa razão, desse mito também se valeu José Eustasio Rivera para compor a sua lenda da Mapiripana, nodal em La vorágine, que conta a maneira como uma sereia mítica da Amazônia se vinga de um missionário, bêbado e estuprador de crianças, que quer erradicar a superstição pagã da selva. Ela demonstra para esse padre que é ele, o homem civilizado e branco, quem produz a barbárie na selva, ou seja, que el sueño de la razón produce monstruos. (A mãe do protagonista de Rosa também é uma sereia amazônica, Iara; Toosa, o título do livro projetado e nunca publicado, acima mencionado, é também o nome de uma sereia mítica). Ainda poderiam ser enunciadas muitas outras coisas sobre esse mito deslumbrante, mas prefiro, por enquanto, dizer algo sobre os lugares da sua vigência (figura 3).

15

O povoado de Iauaretê, do município brasileiro de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, está localizado no ponto exato onde o Rio Uaupés adentra o território brasileiro após percorrer uma extensa zona desde suas nascentes na Colômbia e delimitar por largo trecho a fronteira entre os dois países. Na outra margem, como num espelho, está Yavaraté, pequena cidade do departamento colombiano de Vaupés. São transliterações diferentes dos mesmos nomes: Vaupés é Uaupés; e Iauaretê equivale a Yavaraté. Esse lugar é muito importante em La vorágine, pois lá está o sepulcro de uma criança que tem um papel simbólico central nesse romance. Segundo os mapas linguísticos de Queixalós e Renault-Lescure,16 tanto em Iauaretê como em Yavaraté habitam Tarianos, da família Aruák, e Tucanos. Esse rio, Uaupés ou Vaupés, desemboca no Rio Negro, ou Guainía, no município brasileiro de São Joaquim. Nas bacias desses rios, principalmente entre índios das famílias Aruák, Tucano e Tupi-guarani, sobreviveu por centúrias a Lenda de Jurupari ou Yuruparý, que no final do século XIX foi transcrita em língua ñe'engatú (tupinambá) pelo índio Maximiano José Roberto e posteriormente traduzida ao italiano pelo célebre explorador Ermanno Stradelli (1891). Alguns especialistas, colombianos e brasileiros, há tempos debatem sobre a origem nacional desse mito, sem perceberem que ele está muito além do Tratado de Tordesilhas, pois vige sem a necessidade de uma nacionalidade, inclusive porque é anterior à demarcação dessas fronteiras.

Tanto Rosa quanto Rivera trabalharam nos departamentos de fronteiras dos seus respectivos países17 e sabiam da lenda, assim como de Yavaraté/Iauaretê. O uso que fazem deles, com certeza, relaciona-se com uma vontade de ir para além da fronteira, com a percepção de que na margem está o que não pode ser aprisionado numa forma.

O protagonista da estória, que daqui em diante chamarei de Sobrinho-do-Iauaretê, conta a sua vida para um interlocutor silente, um doutor provindo da cidade, como Rosa e Rivera. O Sobrinho é um mestiço do fazendeiro Chico Pedro e da tacunapéua Mar'Iara Maria. Do pai recebe o nome Antonho de Eiesus; da mãe, Bacuriquirepa. Expropriado de nascimento, maltratado pela sua aparência e pelo seu sangue, ele é usado (falidamente) por fazendeiros como matador e jagunço. Tentando fugir dessas tarefas, o Sobrinho-do-Yavaratê aceita trabalhar para outro fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, criador de gado, que o encarrega de "desonçar a região", indo morar no meio da selva, junto com o preto Tiodoro. Lobisomem produzido para expandir a fronteira agrícola, o Sobrinho sobrevive matando as onças que ameaçam permanentemente o gado nesses ermos do Mato Grosso do Sul. Cabe lembrar que "zaguncho", ou seja, "zagaia", formou posteriormente a palavra jagunço, um homem-ferramenta, definido pela sua utilidade, como o onceiro, que usa dessa ferramenta para matar jaguares e assim expandir a "civilização" que o produziu, depois o engoliu, depois o cuspiu do quente da boca... como a todos os fujões da justiça, ou jababoras, das redondezas, como todos os fugitivos de La vorágine. O Sobrinho aprende o ofício de tigreiro com três zagaieiros, também negros, Nhô Inácio, e os irmãos Uarentin Maria e Gugue Maria, que o chamam de Macuncozo. Como esses irmãos e a mãe índia, "Maria" é o nome da onça amada pelo protagonista: Maria-Maria. Maltratado, discriminado, expropriado como esses homens e essa mãe índia, o Sobrinho vai para uma cabana no meio do deserto verde e, após matar muitas onças, ele começa a se identificar com elas, começa a se aproximar do totem materno. Dado que o parentesco classificatório entre alguns povos ameríndios é matrilinear, particularmente entre os tacunapéua-araweté (a família materna do Sobrinho), é o tio materno quem ocupa o papel de ancestral masculino (daí o título da narrativa): "eu sou onça. Jaguaretê tio meu, irmão de minha mãe, tutira18... Meus parentes!..." (Rosa 1976, 145). Essa decantação rumo à herança materna, que quer excluir tanto o legado sanguíneo branco, quanto o vínculo de afinidade com os negros tigreiros, evidencia-se na narrativa pela rejeição dos nomes recebidos. Através dessa rejeição, o Sobrinho-do-Iauaretê se empenha por desfazer o nó da própria identidade, que poderíamos representar assim:

Ah, eu tenho todo nome. Nome meu minha mãe pôs: Bacuriquirepa. Breó, Beró, também. Pai meu me levou pra o missionário. Batizou, batizou. Nome de Tonico; bonito, será? Antonho de Eiesus... Despois me chamavam de Macuncozo, nome era de um sítio que era de outro dono, é - um sítio que chamam de Macuncozo... Agora tenho nome nenhum, não careço. (Rosa 1976, 144)19

Mas rejeitar os nomes não é suficiente. O Sobrinho-do-Yavaratê começa, não mais a desonçar a região, mas a desgentá-la, começa uma caçada brutal dos humanos que moram nas redondezas do casebre que habita. Os mata e devora, ou dá como oferenda às onças, querendo assim se aproximar do totem materno. Só que há um problema, algo que longe de afastá-lo do pai branco, que deplora, o aproxima tragicamente dele: é o dispositivo que usa para escolher as suas vítimas, que prefiro mostrar nesta tabela (tabela 1):

Sete pecados, como as sete estrelas de Sejuçu - e precisamente, pecados capitais. O Sobrinho sente de uma maneira muito íntima o mal-estar desse dispositivo, ao ponto de afirmar que todas essas pessoas morreram de "doença". Ele declara estar triste por isso, repetindo em chave rústica algo que o Euclides de À margem da história já fazia: disfarçar de seleção natural algo que, na verdade, se julga a partir dos pecados capitais cristãos, e que implica uma doença do progresso, e mesmo do olhar julgador, quer dizer, a guerra civil e expansionista,20 a própria voragem civilizatória que impõe domesticação a tudo que não conhece através de tudo que exclui. O pai branco é também um canibal, note-se, mas bulímico.21 A preferência alimentar aproxima o Sobrinho desse seu pai branco, "pai de todo mundo": "Eh, onça gosta de carne de preto. Quando tem um preto numa comitiva, onça vem acompanhando, seguindo escondida, por escondidos, atrás, atrás, atrás, ropitando, tendo olho nele" (Rosa 1976, 151). Lembremos, e usemos aqui a própria expressão de Haroldo na sua explanação sobre a correspondência com Rosa: "as vítimas prediletas da onça, na estória, eram, todas elas, pretos" (Campos 2009, CCXLI). Trata-se de uma seletividade muito forte, e problemática, vista a afinidade que a personagem tem com os zagaieiros negros (Marias, como a onça, a mãe e a prostituta poupada), tão oprimidos, discriminados e expropriados quanto ele. Apesar de intuir esse parentesco, o Sobrinho incorpora o ponto de vista do pai, inclusive pelo fato de querer para si uma identidade unitária. Digamos que, apagando o Nome-do-pai, se assegura a sua volta. Ele volta como um mediador absoluto, tronco central que impede aos galhos um olhar de afinidade. Como explica a historiadora Tânia Almeida Gandon, assumir uma única identidade, para um mestiço, não necessariamente implica numa libertação, e pode ser uma perpetuação do trauma causado pela colonização.22 Para dizê-lo com uma fórmula de Silviano Santiago: "a pureza coagula o monstro" (1998, 44).

Contra a compreensão da impureza como algo superável, ou ainda pior, como prova de uma "democracia racial" dada, "Meu tio o Iauaretê" nos propõe a mistura como índice de um processo infindável de identificação, agonística, trágica, fissurada, plena de confrontações, conflitos, diferenças; de escolhas estratégicas e finitas que reenviam sempre ao enigma da vida.

Parafraseando a Raúl Antelo, diríamos que não há imagem aberta sem Nome-do-pai; nem há identidade dada, mas só processos de identificação conjuntos, imaginários e móveis (2009a; 2009b), como as constelações de Benjamin. Obliterando esse Nome-do-pai, pode incorrer-se no apagamento das vozes que esse nome ocultou, da história catastrófica em que se sustenta toda metafísica do progresso. Chela Sandoval, em texto em que aproxima o feminismo cyborg de Donna Haraway (1995) da sua própria proposta de um feminismo situado em tempos de globalização e neoliberalismo, dá uma definição da consciência mestiça que em muito se aproxima da leitura que estou tentando, especificamente no tocante à não-obliteração dos Nomes-do-pai, única garantia contra a perpetuação da doença do homem civilizado. Precisamente Sandoval, na sua postulação de um feminismo do Terceiro Mundo estadunidense a partir de uma consciência cyborg opositiva/diferencial, retoma de Haraway a própria situação como "la descendencia ilegítima del capitalismo patriarcal" (2004, 92), e vindica uma cosmovisão mestiça, em que predominem os vínculos de afinidade sobre o parentesco sanguíneo, ou seja, em que as relações entre sujeitos sejam construídas sobre e pela diferença. Para exemplificar essa cosmovisão, Sandoval se vale do seguinte diagnóstico de Alice Walker:

Somos el africano y el traficante. Somos el indio y el colono. Somos opresor y oprimido... somos los mestizos de Norte América. Somos negros, sí, pero también somos "blancos", y somos rojos. Pretender funcionar como solo uno, cuando realmente eres dos o tres, conduce, creo, a la enfermedad psíquica: la gente "blanca" ya nos ha mostrado esa locura. (apud Sandoval 2004, 93)

Essa loucura, na lúcida apropriação de Sandoval, é um referente de opressão que não poderia apagar-se sem apagar também a própria situação do oprimido, a singularidade da mescla-que-vive e que deve manter o significante do Uno, ou da totalidade, ou da pureza, ou da Monolíngua (se quisermos traduzir isso à língua derridiana), como o seu negativo absoluto. Como tão bem compreendemos com "Meu tio o Iauaretê", se decantar rumo ao Uno seria a psicopatia. Em memória dos vencidos, a narrativa convida a lidar com os restos, com as ruínas que escapam ao controle de toda psicopatia purificatória e dos seus valores, supostos universais.

Voltemos brevemente sobre esses valores, outrora revolucionários, e sobre a sua relação com isso que aqui se denomina "vínculos de afinidade". Se esses vínculos são os privilegiados, é importante pensar: 1) que afinidade não é fraternidade, pois o que une não é um laço de sangue; 2) que a afinidade não toma a liberdade como um pressuposto, pois se os implicados fossem livres, não precisariam estabelecer vínculos estratégicos; 3) que afinidade não é sinônimo de igualdade, porque se tratando de afinidade há sempre uma escolha do vínculo e, portanto, uma preservação ou uma necessidade da diferença. Enfim: "Afinidad: relación no por lazos de sangre, sino por elección, atracción de un grupo químico nuclear por otro, avidez" (Haraway 1995, 263).

Ora, "Meu tio o Iauaretê" não coloca só um problema de consciência, sabemos todos que esse é um conceito problemático, inclusive porque é um dos pressupostos dos protocolos representacionais mencionados nas primeiras linhas deste artigo. Não basta fazer uma inversão simplória, tampouco uma apologia da opressão dos opressores. Isso porque a antropofagia não se fundamenta na consumpção de corpos - isso faz o canibalismo civilizatório (antropo-emético) -, mas na produção de corpos (Antelo 2001, 273).

Não se trata de um revanchismo vulgar: "Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio" (Nietzsche [1871] 1992, 130). O que nos propõe "Meu tio o Iauaretê", e que dá mais uma volta ao parafuso da "situação" cyborg, acima referenciada, se vê com clareza na "situação narrativa". A novela é, como La vorágine, uma narração emoldurada, em que um narratário se apresenta como transcritor ou editor de um original achado. No caso de La vorágine, o próprio Rivera se apresentava como organizador dos manuscritos de Cova, achados na floresta, com o que se fazia mais verossímil um narrador morto; mas Rivera ia além disso, e colocava no início do romance, à maneira de moldura, a sua própria fotografia em gesto melancólico, acompanhada da seguinte inscrição: "Arturo Cova en las barracas de Guaracú. Fotografía tomada por la madona Zoraida Ayram" (figura 5).

No caso da narrativa assinada por Guimarães Rosa, não é uma foto, mas um travessão que abre a fala do onceiro, um sinal só escrevível ou legível, mas não falável, algo que só existe no universo da letra, no universo do doutor que escuta e transcreve, essa espécie de diplomata ou turista de visita na selva (lembre-se: Rosa e Rivera o foram). É uma espécie de escritura mimetizada, ou travestida de fala, que afasta para muito longe a hierarquia entre quem fala e quem escreve, assim como as ordens de precedência e antecedência que comumente se associam com essas atividades. Operação e tarefa políticas, sem dúvida. Com esse travessão esse "Nhor" - chamado de "lobo gordo" e "sem medo" pelo Sobrinho (Rosa 1976, 126; 150) - dá conta da sua intervenção de escritura e da sua própria situação, diferente daquela que transcreve: a do onceiro canibal a quem matou para não morrer devorado. Nessa fala ou autobiografia transcrita, isto é, devorada, estão os vestígios, as onomatopeias, o rosnar do jaguar, seu espreitar, a língua "yeral" ou "ñe'engatú" misturada com português, os estertores agônicos, o recalcado, todos os nomes, os preconceitos, a tristeza, a forclusão da Lei, os mitos, etc., com exceção da fala do próprio transcritor. Assim, sem abstrações nem interpretações de parte desse copista, onceiro-turista que voluntariamente se deixa à margem da estória, essa fala se faz um arquivo do nunca escrito, memória das vozes vencidas e anômicas,23 uma arquiescritura.

Esses jogos com a moldura são espécies do mimetismo, ou seja, da entrada do ambiente no corpus de letras que denominamos texto. Se o autor é o que está nos limites do texto, como ensina Foucault, ou seja, se está na moldura e, de repente, vem para o fundo, então é a própria precedência o que está em xeque. À margem da estória, esse homem branco, esse bárbaro tecnizado e vestido, renuncia à precedência ou a função de mediador absoluto entre o existente e a interpretação do existente, reproduz com o próprio silêncio o silenciamento histórico do outro, dando lugar a quem nunca teve lugar. O que cai com essa operação é a prioridade ontológica:24 a fala é lida porque se escreveu, essa escritura existe porque transcreve uma fala. São atividades codependentes, impensável uma sem a outra, impensável um espírito que se corporifica ou um conteúdo que toma forma. É o ambiente, o que está na moldura ou no limite, o que vem para dentro do texto, tornado ele também o arquivo de um contato. Afinidade, não consanguinidade; arquiescritura; avidez estratégica e horizontal; disseminação.

Assim como na initiisterra selvática se indefinem as fronteiras, a prioridade ontológica perde a sua vigência, pois num páramo sem deus, todos somos segundos.


* Argradeço o apoio de Manuel Franco Avellaneda na fase preparatória deste trabalho, que não teria sido possível sem o seu diálogo e doação constantes. Agradeço também a Artur de Vargas Giorgi, Ana Carolina Cernicchiaro e Luz Adriana Sánchez Segura pela atenta leitura e sugestões sobre as versões preliminares do texto.

1 Veja-se, a propósito, "Una crítica acéfala para la modernidad latinoamericana": "Los diagnósticos setentistas [...] trabajaban, cada uno a su modo, por una modernidad capaz de neutralizar antagonismos explícitos, aunque relativamente débiles. Esa neutralización se llamó 'transculturación' o 'supra-regionalismo' y se orientó hacia un régimen autonomista de lectura. Constatamos, sin embargo, que ese libre juego de los imperativos sociales produjo, en diversos grados y con variadas características, una sociedad monocéfala, en clave nacional o estatal, o en ambas, pero siempre atrofiada en su aplastante esterilidad hacia lo nuevo. La escena contemporánea de América Latina, irregularmente libre y vital, nos ofrece, en cambio, una cultura policéfala, en que los antagonismos vitales se manifiestan de manera cada vez más constante y explosiva. Pero esa irreductible heterogeneidad, esa policefalia simbólica son un claro indicio de que solo una crítica que rescate el carácter acéfalo de la existencia podrá cuestionar el retorno a las formas autonomistas de pensar la cultura, que no son otra cosa sino retornos reductores a la unidad, a un mundo anterior al des-astre y todavía habitado por Dios (llámese esa divinidad Verdad, Nación o Justicia)" (Antelo 2008, 134).

2 Segundo anotação manuscrita de Aracy Moebius de Carvalho, esposa do escritor, sobre o caderno tombado com o número ACGR2256, aos cuidados do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Em diante, os números catalográficos do IEB acompanharão as citações de materiais consultados no arquivo.

3 Em "A linguagem do Iauaretê", reproduz-se um trecho da resposta de Rosa perante a dúvida que o concretista manifestara sobre a procedência de uma palavra misteriosa. Vejamos o trecho no contexto da citação de Campos: "[...] o termo Macuncozo, que à primeira vista poderia se tomar também por um vocábulo de fatura tupi, carreia na realidade um novo estrato significativo ao relato. Não o tendo podido identificar em léxicos tupis que consultei, recorri, intrigado, ao autor. Guimarães Rosa, através de carta (26-IV-63), forneceu-me uma preciosa elucidação, que me permito transcrever, pela importante chave de técnica da composição que nela se contém: '[...] o macuncozo é uma nota africana, respigada ali no fim. Uma contranota. Como tentativa de identificação (conscientemente, por ingênua, primitiva astucia? Inconscientemente, por culminação de um sentimento de remorso?) com os pretos assassinados; fingindo não ser índio (onça) ou lutando para não ser onça (índio), numa contradição perpassante, apenas, na desordem, dele, final, o sobrinho-do-iaguaretê emite aquele apelo negro, nigrífico, pseudo-nigrificante, solto e só, perdido na correnteza de estertor de suas últimas exclamações'. Cabe aqui observar que as vítimas prediletas da onça, na estória, eram, todas elas, pretos. Tentando dizer-se preto, o homem-onça recorre a um último expediente para tranqüilizar o seu interlocutor e, assim, ver se escapa à morte" (Campos 2009, CCXLI).

4 A seguir, um trecho desse prefácio inédito, segundo a transcrição de Telê Ancona: "É o herói desta brincadeira, isso sim, e os valores nacionais que o animam são apenas o jeito dele possuir aquele paralogismo / o 'Sein' de Keyserling (sic) a significar, imprescindível a meu ver, que desperta empatia. Uma significação não precisa ser total pra ser / mais / profunda. É por meio do 'Sein' [...] que a arte pode ser aceita dentro da vida. Ele é que / estabelece / faz da arte e da vida um sistema de vasos comunicantes, equilibrando o líquido que agora não turtuveio em chamar de lágrima" (Andrade apud Lopez 1972, 112). Cf. a definição de "Sinn", ou "sentido", em Ferrater-Mora: "El sentido es, en rigor, un mundo esencialmente abierto, que consiste fundamentalmente en su abertura constante, en un proceso creador -y expresivo- interminable. De ahí que el sentido, siendo la realidad, no sea únicamente la realidad que 'hay', sino más bien la realidad que puede haber; el sentido es, en el fondo, el verdadero principio, el fundamento de todo ser y de todo devenir" (1964, 1055-1056).

5 A epígrafe do fragmento citado é bastante eloquente a respeito do sentido dessa proliferação infinita: "A matemática não pôde progredir, até que os hindus inventassem o zero. O DOMADOR DE BALEIAS" (Rosa 1968, 148). Isso quer dizer, se o relacionamos com a reflexão oriental sobre a série numérica de Severo Sarduy em La Simulación, que na origem não há uma presença, mas um vazio, e que toda presença é já sempre secundária: "En Oriente se diría que el saber en sí mismo es un estado del cuerpo, es decir, un ser compuesto, una simulación de ser -de ser ese saber- , que no hace más que recordar el carácter de simulación de todo ser -al manifestarse como ese ser. [...] Reverso del saber que se posee [...] en Oriente encontramos, en el centro de las grandes teogonías -budismo, taoísmo-, no una presencia plena, dios, hombre, logos, sino una vacuidad germinadora cuya metáfora y simulación es la realidad visible, y cuya vivencia y comprensión verdaderas son la liberación. // Es el vacío, o el cero inicial, el que en su mímesis y simulacro de forma proyecta un uno del cual partirá toda la serie de los números y de las cosas, estallido inicial no de un átomo de hipermateria -como los postulan las teorías cosmológicas actuales- sino de una pura no-presencia que se trasviste en pura energía, engendrando lo visible con su simulacro" (Sarduy [1982] 1999, 271-1272) [destaques no original].

6 Rosa possuía de Caillois o livro Babel. Orgueil, confusion et ruine de la littérature (1948). Duas cartas dão conta de outros contatos entre os autores. Transcreve-se, a seguir, a carta de 22 de novembro de 1965, remetida a Guimarães Rosa por Antonio Candido: "Meu caro Embaixador: Ontem, conversando com o crítico uruguaio Monegal, ouvi dele que considera você o maior escritor em prosa da América Latina. Achei pouco. Mais tarde, conversando com o Ungaretti, disse-me ele que o Caillois considera você o maior escritor em prosa do mundo, neste momento. Como vê, a verdade progride. Mas eu lhe peço lembrar que o primeiro a dizê-lo foi este seu criado... Antonio Candido" (IEB/USP Cx12, 1044/145-01). Em outra carta, endereçada a Rosa pelo seu tradutor alemão Curt Meyer-Classon, em 22 de abril de 1965, há uma referência similar ao autor de O mito e o homem: "Em Hamburgo, conversei com Roger Caillois. Ele disse: 'Moi du moins, je défendrai Rosa (no prêmio 'Formentor'), et Ledig (Rowohlt) aussi. Nous allons voir...'" (apud Rosa 2003, 284).

7 "O problema não é enriquecer o idioma, é enriquecer o Brasil. Não é mais tempo para ficarmos brincando com a sintaxe, inventando palavras, dormindo no estilo. Isso é beletrismo, é trabalho para diletante. Em suma, não me apaixona mais. Depois, a de Guimarães não é a língua brasileira, é uma invenção sua, talentosa sim, mas sem raízes e que redunda numa lamentável perda de tempo" (Andrade 1954, s.p.).

8 Opto por essa denominação pensando, sobretudo, em estilo de pensamento, conceito cunhado pelo médico e epistemólogo polonês Ludwik Fleck (1986). Não uso paradigma - retomado por Ginzburg diretamente de A estrutura das revoluções científicas (1962) de Thomas Kuhn - precisamente pelo que esse conceito mobiliza de compartimentagem dos saberes e pela concepção evidentemente historicista do conhecimento que alimenta (cf. Delizoicov et al. 2002). Embora a reflexão de Carlo Ginzburg seja iluminadora em muitos lugares - principalmente naqueles em que remonta historicamente o paradigma até ligá-lo com antecedentes divinatórios, detetivescos ou médicos - ela chega por momentos a se permear da pouca atenção que Kuhn manifesta por áreas de extensão do conhecimento não hegemônicas, quer dizer pelas margens, o que leva Ginzburg p.ex. a negligenciar uma figura da relevância contemporânea de Aby Warburg, ou a contrapor ao indiciário um paradigma galileano próprio das ciências experimentais (Ginzburg 1989). Uma abordagem vestigial não trabalha sobre totalidades operacionais (as obras) que remetam a totalidades históricas ou sociais (a realidade, a nação, a identidade, etc.), e isso exclui de começo a separação taxativa entre ficções e documentos ou a hierarquização dos materiais segundo um critério pré-determinado de valor. Para uma aproximação entre o conceito de história em Walter Benjamin e a construção do fato científico em Ludwik Fleck cf. Otte 2012.

9 Muito dessa exigência pode ser lido, retrospectivamente, nas reflexões benjaminianas sobre "A tarefa do tradutor", publicadas em 1923 na edição alemã das Tableaux Parisiens de Charles Baudelaire. Concentrando-se muito mais na traduzibilidade, ou seja, na potência, do que na tradução propriamente dita, definida nesse ensaio como "uma forma", Benjamin pensa na tarefa do tradutor como a dedicação amorosa à sobrevivência de um gesto, ou de um conjunto de gestos de escritura, na passagem de uma língua à outra. De novo, estamos perante a opção por um estilo, um jeito, um modo (o que nunca se escreve), em detrimento da forma: "a tradução deve, ao invés de procurar assemelhar-se ao sentido do original, ir reconfigurando, em sua própria língua, amorosamente, chegando até aos mínimos detalhes, o modo de designar do original, fazendo assim com que ambos sejam reconhecidos como fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmentos de um vaso" (Benjamin [1923] 2001, 207) [destaques nossos].

10 Embora Oswald de Andrade considerasse que Nietzsche tinha vulgarizado o pensamento de Bachofen, é dessas duas leituras que ele, principalmente deriva a sua proposta de "uma Errática, uma ciência do vestígio errático, para se reconstituir essa vaga Idade de Ouro, onde fulge o tema central do Matriarcado" (1978, 88).

11 Na mitologia grega, Dioniso era filho de Zeus e Perséfone. Esquartejado e devorado pelos Titãs, mas salvo por Atena e levado a Zeus, que engoliu seu coração, deu origem ao novo Dionísio Zagreu, filho da mortal Sêmele.

12 Dioniso é um deus oriental, daí que comumente seja associado a felinos de grande porte, inexistentes ou muito escassos no continente europeu. Nietzsche remonta o culto de Dioniso até uma pré-história na Ásia Menor e na Babilônia ([1871] 1992, 30).

13 Ant+onho= Ant(i)-: prefixo, com a acepção de "em frente de, de encontro a, contra, em lugar de, em oposição a" + -onho: sufixo, com certo valor quantificador que tangencia a noção de aumentativo, como em: enfadonho, medonho, risonho, tardonho, tristonho, etc. (Dicionário Houaiss 2001, s.p.). Antonho de Eiesus, portanto, poderia ser lido como "contrário de Jesus", "oposto a Jesus", "anticristo".

14 O encontro entre o doutor e o protagonista-narrador se dá em momento simétrico a esse nascimento. Nascimento e morte, portanto, coincidem quando: "Sejuçu já tá alto: olha as estrelinhas dele..." (Rosa 1976, 140).

15 Destaques nossos.

16 Veja-se http://www.cartographie.ird.fr/linguas.html

17 Desde 1956 João Guimarães Rosa ocupou a chefia do Departamento de Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, participando, aliás, das reuniões diplomáticas prévias à assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (1978). José Eustasio Rivera, entre 1921 e 1924, trabalhou como advogado da Comissão Colombiana de Fronteiras; a partir de 1925, integrou a Comissão Investigadora de Relações Exteriores e Colonização.

18 "[...] sendo tutira em tupi o tio irmão da mãe, as afirmações apontam para um parentesco classificatório matrilinear, onde, no nosso código, os tios irmãos da mãe são pais, mas no código do narrador os pais são tios" (Galvão 2008, 21).

19 Destaque nossos.

20 Apesar de usar a frase do historiador e teólogo holandês Barlaeus, "ultra iquinotialem non peccavi", ou seja, "não existe pecado abaixo do equador", para caracterizar a vida da região, e de remeter os amazonenses à Ilha de Marapatá, lugar onde se deixa a consciência antes de entrar na floresta, Euclides julga, e caracteriza como doença, encarregada de sábia seleção natural, algo que é da ordem das assimetrias sociais. Assim, ele identifica a precariedade com a maldade, e a "eliminação generalizada dos incompetentes" pune, como o Sobrinho em "Meu tio o iauaretê", pecados capitais: "Não há fraudes que lhe minorem as exigências. Caem-lhe sob o exame incorruptível, por igual, - o tuberculoso inapto à maior atividade respiratória nos ares adurentes, pobres de oxigênio, e o lascivo desmandado; o cardíaco sucumbido pela queda da tensão arterial, e o alcoólico candidato contumaz a tôdas as endemias; o linfático colhido de pronto pela anemia e o glutão; o noctívago desfibrado nas vigílias, ou o indolente estagnado nas sestas enervantes; e o colérico, o neurastênico de nervos a vibrarem nos ares eletrizados, descompassadamente, sob o influxo misterioso dos firmamentos deslumbrantes, até aos paroxismos da demência tropical que o fulmina, de pancada, como uma espécie de insolação do espírito. A cada deslize fisiológico ou moral antepõe-se o corretivo da reação física. E chama-se insalubridade o que é um apuramento, a eliminação generalizada dos incompetentes. Ao cabo verifica-se algumas vêzes que não é o clima que é mau; é o homem" (Da Cunha 1922, 57-58)[destaques nossos].

21 Em Tristes Trópicos Claude Lévi-Strauss explicita a diferença entre sociedades antropofágicas e antropoeméticas: "debemos persuadirnos de que si un observador de una sociedad diferente considerara ciertos usos que nos son propios, se le aparecerían con la misma naturaleza que esa antropofagia que nos parece extraña a la noción de civilización. Pienso en nuestras costumbres judiciales y penitenciarias. Estudiándolas desde afuera, uno se siente tentado a oponer dos tipos de sociedades: las que practican la antropofagia, es decir, que ven en la absorción de ciertos individuos poseedores de fuerzas temibles el único medio de neutralizarlas y aun de aprovecharlas, y las que, como la nuestra, adoptan lo que se podría llamar la antropoemia (del griego emeín, "vomitar"). Ubicadas ante el mismo problema han elegido la solución inversa que consiste en expulsar a esos seres temibles fuera del cuerpo social manteniéndolos temporaria o definitivamente aislados, sin contacto con la humanidad, en establecimientos destinados a ese uso. Esta costumbre inspiraría profundo horror a la mayor parte de las sociedades que llamamos primitivas; nos verían con la misma barbarie que nosotros estaríamos tentados de imputarles en razón de sus costumbres simétricas" (1988, 441-442).

22 "Assumir uma identidade cultural traz, no entanto, problemas psicológicos e ideológicos para um mestiço. Antes de mais nada a seu próprio olhar, dada a dificuldade de integrar em si mesmo aspectos dessemelhantes das histórias vividas pelos seus ancestrais num contexto de senhores e de escravos. Dificuldade esta agravada pelo fato de que as injustiças sociais do passado se prolongam, transmutadas, numa história presente marcada pelas desigualdades" (Gandon 1997, 163).

23 Nisso se assemelha, e não por acaso, à guerra tupinambá como memória anautonômica e hipertélica, estudada por Manuela Cunha e Viveiros de Castro em "Vingança e temporalidade: os tupinambá": "A guerra de vingança tupinambá é uma técnica da memória, mas uma técnica singular: processo de circulação perpétua da memória entre os grupos inimigos, ela se define, em vários sentidos, como memória dos inimigos" (cf. 1985, 205).

24 A expressão é de Severo Sarduy em La simulación, livro fundamentado em grande parte nas teorias do mimetismo de Roger Caillois. La simulación é uma continuação, uma complexificação, das reflexões do teórico cubano sobre o barroco latino-americano. Veja-se a maneira em que, da obra ao texto, Sarduy destaca o valor do trompe-l'oeil enquanto efeito de leitura: "Duplicar la realidad en la imagen, llegando a veces hasta lo hipertrófico de la precisión, a la simulación milimétrica, o al despilfarro de los detalles: el ejecutante del trompe-l'oeil como un demiurgo secundario, envidioso y maniático, ve limitada a esta perversión su práctica. No así el adicto a esas imposturas: combinando el trompe-l'oeil con su modelo, o más bien, confrontando en un mismo plano de la realidad el objeto y su simulacro, como dos versiones de una misma entidad, éste puede crear como un trompe-l'oeil al cuadrado, un goce mayor en el manejo de las imitaciones, otro disfrute en ese juego sin fin del doble, en que ninguna de las versiones es detentora de la precedencia o de la substancia, en que no hay jerarquía en lo verosímil, es decir, prioridad ontológica" ([1982] 1999, 1287).


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Vélez Escallón, B. O. (2014). “Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória. Literatura: teoría, historia, crítica, 16(1), 131–164. https://doi.org/10.15446/lthc.v16n1.44329

ACM

[1]
Vélez Escallón, B.O. 2014. “Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória. Literatura: teoría, historia, crítica. 16, 1 (ene. 2014), 131–164. DOI:https://doi.org/10.15446/lthc.v16n1.44329.

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(1)
Vélez Escallón, B. O. “Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória. Lit. Teor. Hist. Crít. 2014, 16, 131-164.

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VÉLEZ ESCALLÓN, B. O. “Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória. Literatura: teoría, historia, crítica, [S. l.], v. 16, n. 1, p. 131–164, 2014. DOI: 10.15446/lthc.v16n1.44329. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/44329. Acesso em: 18 abr. 2024.

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Vélez Escallón, Bairon Oswaldo. 2014. «“Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória». Literatura: Teoría, Historia, crítica 16 (1):131-64. https://doi.org/10.15446/lthc.v16n1.44329.

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Vélez Escallón, B. O. (2014) «“Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória», Literatura: teoría, historia, crítica, 16(1), pp. 131–164. doi: 10.15446/lthc.v16n1.44329.

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[1]
B. O. Vélez Escallón, «“Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória», Lit. Teor. Hist. Crít., vol. 16, n.º 1, pp. 131–164, ene. 2014.

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Vélez Escallón, B. O. «“Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória». Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 16, n.º 1, enero de 2014, pp. 131-64, doi:10.15446/lthc.v16n1.44329.

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Vélez Escallón, Bairon Oswaldo. «“Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória». Literatura: teoría, historia, crítica 16, no. 1 (enero 1, 2014): 131–164. Accedido abril 18, 2024. https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/44329.

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1.
Vélez Escallón BO. “Meu tio o Yavaratê” — à margem da estória. Lit. Teor. Hist. Crít. [Internet]. 1 de enero de 2014 [citado 18 de abril de 2024];16(1):131-64. Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/44329

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