Fuente: Autoría propia
A captura da paisagem por imagens e palavras
La captura del paisaje por imágenes y palabras
Capturing the landscape through images and words
La capture du paysage par l’image et les mots
Lúcia Maria de Siqueira Cavalcanti Veras
Universidade Federal de Pernambuco
lucia.veras@ufpe.br
https://orcid.org/0000-0002-0288-7325
Cómo citar este artículo:
Veras, L. M. S. C. (2025). A captura da paisagem por imagens e palavras. Bitácora Urbano Territorial, 35(II): 11-25.
https://doi.org/10.15446/bitacora.v35n2.117336
Recibido: 31/10/2024
Aprobado: 29/5/2025
ISSN electrónico 2027-145X. ISSN impreso 0124-7913. Universidad Nacional de Colombia, Bogotá
[1] Este artigo deriva de parte da pesquisa de doutorado (Veras, 2014), cuja metodologia foi ratificada no pós-doutorado (Veras, 2021).
(2) 2025: 11-25
Autora
01_117216
Explora-se neste artigo a criação de procedimentos metodológicos para captura de percepção e compreensão de paisagem com vistas à sua conservação, tendo como objeto de reflexão o Cais José Estelita, no Centro Histórico da cidade do Recife, no Nordeste do Brasil, ameaçado por empreendimentos modernos que privilegiam a verticalização e promovem grandes impactos na paisagem. Apoiada por teóricos como Georg Simmel, Augustin Berque e Gordon Cullen, entre outros, e ancorada nas recomendações da Convenção Europeia da Paisagem, reforçada pela Carta da Paisagem das Américas, sobre a importância da ausculta à população como ferramenta de planejamento e gestão pública, a pesquisa adota três exercícios de paisagem, denominados de Máscaras de Preferência Visual, Fotopinturas e Cartões-postais, tendo a Imagem e a Palavra como categorias de reflexão e compreensão de paisagem. Para isso, foram ouvidas 78 pessoas, resultando na comprovação metodológica da força da imagem como linguagem para desencadear uma reflexão pela palavra, confirmando a hipótese de que há paisagens que identificam cidades e que, mais do que cartões-postais, configuram-se como paisagens-postais.
Palavras-chave: proteção de paisagem, percepção, metodologia, planejamento
Resumen

Este artículo tiene por objetivo explorar la creación de procedimientos metodológicos para captar la percepción y comprensión del paisaje con miras a su conservación, teniendo como objeto de reflexión el Cais José Estelita, en el Centro Histórico de la ciudad de Recife, en Brasil, amenazado por los emprendimientos inmobiliarios modernos que favorecen la verticalización con impactos en el paisaje. Apoyado por los teóricos como Georg Simmel, Augustin Berque y Gordon Cullen, por ejemplo, y ancorado en la Convención Europea del Paisaje, reforzada por la Carta del Paisaje de las Américas, sobre la importancia de escuchar a la población como herramienta de planificación y gestión pública, la investigación adopta tres ejercicios de paisaje, denominados Máscaras de Preferencia Visual, Fotopinturas y Tarjetas Postales, teniendo la Imagen y la Palabra como categorías para reflexionar y comprender el paisaje. Por lo tanto, se entrevistó a 78 personas, en donde se obtuvo la comprobación metodológica de la fuerza de la imagen como lenguaje para desencadenar la reflexión a través de las palabras, comprobando la hipótesis de que existen paisajes que identifican a las ciudades y que más que tarjetas postales se configuran como paisajes-postales.
Palabras clave: protección del paisaje, percepción, metodología, planificación
Abstract

This paper explores the creation of methodological procedures for capturing the perception and understanding of landscape with a view to their conservation, using as its object a case study the Cais José Estelita, in the Historic Center of the city of Recife, in Northeast Brazil, which is threatened by modern developments that favor verticalization and promote major impacts on the landscape. Supported by theorists such as Georg Simmel, Augustin Berque, and Gordon Cullen, among others, and anchored in the recommendations of the European Landscape Convention ― reinforced by the Charter of the Landscape of the Americas ― on the importance of public consultation as a tool for planning and public management, the research adopts three landscape exercises, called Visual Preference Masks, Photopaintings, and Postcards, using Image and Word as categories for landscape reflection and understanding. For this purpose, 78 people were heard, resulting in methodological confirmation of the power of images as a language to trigger reflection through words, confirming the hypothesis that there are landscapes that identify cities and that, more than postcards, constitute themselves as postal landscapes.
Keywords: landscape protection, perception, methodology, planning
Résumé
Cet article explore la création de procédures méthodologiques permettant de saisir la perception et la compréhension du paysage en vue de sa conservation, en prenant comme objet de réflexion le Quai José Estelita, situé dans le centre historique de la ville de Recife, au nord-est du Brésil, menacé par des projets modernes favorisant la verticalisation et provoquant de forts impacts paysagers. Appuyée sur les théories de penseurs tels que Georg Simmel, Augustin Berque et Gordon Cullen, entre autres, et fondée sur les recommandations de la Convention Européenne du Paysage, renforcées par la Charte du Paysage des Amériques, quant à l’importance de l’écoute des populations comme outil de planification et de gestion publique, la recherche adopte trois exercices paysagers, appelés Masques de Préférence Visuelle, Photopintures et Cartes postales, ayant l’Image et le Mot comme catégories de réflexion et de compréhension du paysage. À cette fin, 78 personnes ont été interrogées, ce qui a permis de confirmer méthodologiquement la force de l’image comme langage déclencheur de réflexion par la parole, validant ainsi l’hypothèse selon laquelle il existe des paysages qui identifient les villes et qui, au-delà de simples cartes postales, se constituent en véritables paysages-postales.
Mots-clés : protection du paysage, perception, méthodologie, planification
Introdução
Este artigo trata de paisagem como categoria do pensamento, mais especificamente de procedimentos metodológicos para captura de percepção e compreensão de paisagem. Tem como pano de fundo e simultaneamente como elemento propulsor dessa reflexão as bordas de uma ilha no chamado Cais José Estelita, no bairro de São José, Centro Histórico da cidade do Recife, no Nordeste do Brasil, fortemente ameaçado por empreendimentos modernos que privilegiam a verticalização e promovem grandes impactos na paisagem.
De forma generalizada, ameaças são consequência da ausência de instrumentos jurídicos de proteção de paisagens, embora a regulação se fragilize diante da força da especulação imobiliária. Do ponto de vista do planejamento, ainda que a paisagem esteja surgindo como argumento de conservação, a formalização dessa conservação é tardia, se comparada às manifestações de proteção da arquitetura, por exemplo (Castel-Branco, 2012). No Brasil, em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) ― atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) ―, instituiu o Decreto-Lei no 25, reconhecido como marco e ponto de partida para todas as ações futuras de proteção da paisagem brasileira. Em seu parágrafo 2º do Art. 1º, foram inseridas as paisagens e os sítios naturais sujeitos a salvaguarda, aqueles de “feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”.
No entanto, como protagonista de um instrumento legal, a paisagem só ganha força com a Convenção Europeia da Paisagem (CEP), tratado internacional impulsionado pelo Conselho da Europa, em 2000 (Zoído Naranjo, 2009). Trata-se do primeiro instrumento de referência internacional exclusivamente dedicado à paisagem, voltado ao reconhecimento jurídico e desenvolvimento de políticas de paisagem, apontando a necessidade de se estruturar procedimentos que possibilitem e estimulem a participação da população na definição dos “objetivos de qualidade paisagística” que condicionem o planejamento (Zoído Naranjo, 2009).
Ao inserir a população nessa definição, o instrumento privilegia o olhar coletivo que considera a diversidade de percepções ―de especialistas e de não especialistas―, acreditando que a paisagem deve respeitar as dinâmicas que se aproximam daquilo que se deve proteger, gerir e ordenar (CEP, 2000). Assim, com vistas à extração do que se considera Objetivos de Qualidade Paisagística, define-se a consulta pública como processo que garante a participação, inserindo no planejamento os objetivos de qualidade associados aos desejos vindos da percepção sobre determinadas paisagens.
A Convenção não estabelece os procedimentos para essa participação, deixando essa decisão a cargo de cada país que a adote. No entanto, evidencia que leituras visuais de objetos isolados e sem multiplicidade de olhares já não responderiam às questões colocadas, quando a paisagem como conceito passou a ser definida como aquela que “designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e/ou humanos” (CEP, 2000). Esta compreensão coloca a população como agente ativo da implementação de políticas de paisagem, o que passou a exigir a definição de procedimentos para que essas apreensões e desejos de paisagem considerassem outras percepções, não só a visual, e outros olhares, não só o do especialista.
Este artigo, que trata de paisagem com vistas à sua conservação, tem como propósito expor a criação de um método de captura de percepção e compreensão de paisagem de um recorte histórico muito especial da cidade do Recife, no Brasil, alinhando-se às recomendações da Convenção Europeia da Paisagem (2000), hoje reforçadas pela Carta da Paisagem das Américas (2018), quando a participação da população na identificação de valores passou a ser considerada “condição necessária às decisões públicas de planejamento, conservação, gestão e desenho de novas paisagens [...]” (Carta da Paisagem das Américas, 2018). Considera-se, assim, a perspectiva da população para promover um planejamento e gestão que fortaleçam as políticas públicas de valorização da identidade dos lugares.
Com tal objetivo, estrutura-se o texto (i) apresentando o recorte do Recife que impulsionou a criação de uma metodologia de percepção de paisagem, expondo, em seguida, (ii) a construção dos procedimentos metodológicos com base na Imagem e na Palavra como categorias de análise que nos aproximam da paisagem como conceito, seguindo para (iii) os exercícios de paisagem pela imagem ―Máscaras de Preferência Visual, Fotopinturas e Cartões-postais―, provocadores da reflexão pela palavra, fechando a discussão com as (iv) conclusões que nos levaram ao entendimento de uma determinada paisagem como paisagem-postal, capturada pela imagem e pela palavra como categorias de análise.
O Recife Paisagem, Objeto de Reflexão
Permanências e transformações se expressam com vigor na paisagem das cidades, ainda que as transformações estejam mais próximas do entendimento de paisagem pelo movimento tanto da dinâmica de quem a apreende quanto por aquilo que é apreendido como paisagem. No entanto, inúmeras cidades, em sua vitalidade social e política, conservam permanências ao longo dos séculos, assegurando a estabilidade de paisagens que as identificam. A equação equilibrada entre permanências e transformações exige do planejamento que sejam considerados a preexistência e história dos lugares, a memória assentada e os desejos que projetam para o futuro, necessidades contemporâneas da vida urbana. A gestão das transformações é um desafio para a conservação de paisagens, inclusive de sítios históricos herdados, como é o caso do Cais José Estelita, da Ilha de Antônio Vaz, no bairro de São José, voltado para o estuário do Recife, como ilustra a Figura 1.
O bairro de Santo Antônio e parte do bairro de São José definem uma Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico-cultural do Recife, classificada em 1980 como “Conjuntos Antigos”. Inserida no Plano Diretor da década de 1990, sua proteção foi ampliada no Plano Diretor de 2008, ressaltando-se, como argumento, as suas qualidades paisagísticas. Ainda assim, no limite dessa proteção, foram excluídas as bordas do Cais José Estelita, desconsiderando-se a histórica relação do Recife com suas águas, dando início a um processo de verticalização. E o contraste se evidencia entre as permanências do histórico bairro de São José e as transformações que se anunciam, desqualificando uma frente d’água que ainda resguardava o perfil setecentista do Recife até o início do século XXI.
Esse processo de transformação, pontuado por intervenções que vêm impondo novas escalas urbanas, foi analisado em três tempos de paisagem assim denominados: horizonte nostálgico, verticalização deslocada e horizonte vertical obsceno. Esses três tempos ilustram, na aparência da forma, distintas decisões permitidas pela legislação e inúmeras apropriações que vão ser discutidas nos exercícios de paisagem.
O tempo 1, o do horizonte nostálgico, revela um Recife saudosista e sentimental, aquele que encontra nos memorialistas a referência à arquitetura preservada e relacionada às águas, inserindo como atributo o burburinho cotidiano do comércio popular, mantido até os dias de hoje. Aqui, a predominância das águas dos rios e do mar emoldurava a cidade horizontal, com seu casario e igrejas que remontam do século XVII ao início do século XIX, da ocupação holandesa à lusitana, caracterizando o conjunto barroco de maior importância de Pernambuco. Nem mesmo a moderna avenida Guararapes, edificada em meados do século XX, interferiu na paisagem de borda, visto se distanciar da própria borda, diluindo-se no perfil do cais que caracteriza o Tempo 1, mostrado na Figura 2.
O tempo 2, o da verticalização deslocada, evidencia o início da transformação desta paisagem, com a presença dos modernos edifícios Píer Duarte Coelho e Píer Maurício de Nassau ―conhecidos como “Torres Gêmeas”[1][2]―, construídos entre 2003 e 2008. Com 41 pavimentos e cerca de 135 metros de altura, expõem uma fratura na paisagem, como peças que rompem a escala preexistente e, simultaneamente, simbolizam o início de um intenso processo de transformação.
Entre aprovações e reprovações, a presença desses edifícios provocou uma acirrada discussão na cidade, que expressou, para além do estranhamento na paisagem, uma preocupação resultante da tensão entre o novo e o antigo, o moderno e o histórico e as possíveis transformações do território. Os dois edifícios, projetados para uma população de alta renda, introduziram um padrão de moradia distinto daquele estabelecido, provocando imediata resposta do mercado imobiliário para imposição dessa nova configuração no restante do cais. Foi assim que, em 2008, arrematada em leilão por quatro grandes construtoras do mercado imobiliário local, a modificação de uma área de 101,7 mil metros quadrados, pertencente à União, em trecho não operacional do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas,[3] consolida a intenção da continuidade dessa verticalização, com a proposta de implantação do Projeto Novo Recife, anunciando o Tempo 3, também ilustrado na Figura 2.
O tempo 3, o do horizonte vertical obsceno ―fora de cena e de contexto―, é aquele que se estende por toda a borda e prenuncia o que virá com o Projeto Novo Recife, com mais treze edifícios de padrão semelhante ao dos Píers Duarte Coelho e Maurício de Nassau, aí propondo-se uma ocupação por uso residencial, comercial e hotéis de luxo, verticalizando a frente do cais. Aprovado inicialmente em 2012 pela Prefeitura do Recife, foi considerado por planejadores, acadêmicos, técnicos, artistas e intelectuais como uma das mais equivocadas intervenções urbanísticas do Recife, o que fomentou a mobilização de jovens ativistas convocados pelo Grupo Direitos Urbanos, e mais tarde, em 2014, pelo Movimento Ocupe Estelita, gerando repercussão na cidade e fora dela. Esses movimentos reivindicavam, entre outras questões, a elaboração de um Plano Urbanístico Específico para a ilha, exigido no Plano Diretor de 2008, que também incluísse a preocupação com habitação popular.
Em 2015 esse plano é aprovado pelo poder público municipal, no entanto, tendo considerado o projeto dos empreendedores como referência de partida, os gestores definem parâmetros que consolidam e garantem a implantação do próprio Novo Recife, com algumas modificações para atender parte das reivindicações. Esta nova versão foi novamente aprovada pelo município e homologada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que, embora tenha recomendado a salvaguarda do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas ―o que inviabilizaria o Projeto Novo Recife―, não impôs sua declaratória.
Em 2017, julgando-se a legalidade do processo de compra do terreno e a não salvaguarda do Pátio Ferroviário, os empreendedores finalizaram a derrubada dos galpões e, em 2019, iniciaram a construção das três primeiras torres residenciais, postas à venda em 2021. Especificamente em relação ao novo projeto, ressaltam-se algumas conquistas, fruto da pressão popular, como a diminuição de gabarito nas edificações próximas ao Sítio Histórico, o uso misto, a inclusão de fachadas ativas, a eliminação de muros e gradis, a construção de um parque público de borda e outro na retaguarda, no restante do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas, e o restauro da Igreja de São José. A Figura 2, a seguir, ilustra estes três tempos.
Foram muitos embargos e protestos do Movimento Ocupe Estelita, tendo a paisagem como argumento de luta. Este Movimento, mesmo sem ação formal de planejamento, legitimou a paisagem como um bem público, provocando certos ajustes no projeto, depois de grande disputa. Escutar a população, no entanto, deveria fazer parte do processo de planejamento. Como legitimar uma ausculta e inseri-la no planejamento e gestão de uma paisagem patrimônio? Esta pergunta se junta a outras que guiaram esta pesquisa, explorando-se, em entrevistas, as categorias de análise consideradas na construção dos procedimentos de captura da noção e desejos de paisagem para o Cais José Estelita.
A Imagem e a Palavra como Categorias de Aproximação à Paisagem
Imagens e palavras foram as categorias de análise aqui tomadas como ferramentas de percepção e compreensão de paisagem também para a construção das entrevistas. Além de operativas, surgem do próprio conceito de paisagem que reúne em seu nascimento o deslumbramento de uma imagem que extasia, associada à palavra que descreve o estado de êxtase do que é visto. Assim é a descrição da subida, em 1336, do poeta italiano Francesco Petrarca ao Monte Ventoux, na França, em que relata o contraste entre a dificuldade da escalada e a recompensa do esforço, com a vista para a paisagem distante e para o horizonte que se abre do topo da montanha. Sua experiência paisagística é relatada em forma de carta a um amigo, revelando “a postura moderna do olhar direto sobre o mundo, aquela da secularização da curiosidade, voltando, por assim dizer, à autópsia da natureza, um olhar até então dirigido aos livros” (Besse, 2006, p. 2). Petrarca contribui, assim, para a passagem da Idade Média à Modernidade, quando a transgressão da apreensão da paisagem aproximada pelo olhar direto sobre o mundo expôs na palavra seu deslumbramento, interrogações e fraquezas, abrindo precedente para muitas outras interrogações. Ao pintar com palavras a paisagem capturada, o poeta se alia ao pintor, também italiano, Ambrogio Lorenzetti e ao seu afresco “Os efeitos do bom governo no campo” (1338-1340), que mantém, agora pela pintura, o sentido laico do discurso profano. Aqui, a paisagem é boca de cena e não mais pano de fundo de cenários religiosos, numa dupla operação, da laicização e da perspectiva, que define um vínculo estético entre o sujeito e a paisagem, numa contínua construção de lugares de vivência.
A dupla operação também se estabelece quando as maneiras de ver e de interpretar se submetem aos filtros de quem a captura, e aquilo que é capturado também é fruto de distintas organizações, ideologias, apropriações e relações de poder. Entende-se, assim, que “a apreciação estética da paisagem é um fato cultural no qual o que se sabe (informação visual sobre a paisagem) condiciona e questiona o que se experimenta (a própria vivência da paisagem)” (Nogué, 2008, p. 12).
Diante desses duplos, como extrair um entendimento de paisagem a partir da própria paisagem? A origem do conceito no Ocidente nos respalda inicialmente pelo olhar intencional da arte, ampliado ao entendimento da paisagem como produto da relação que estabelecemos na vivência de nosso entorno (Berque, 2009). Sendo “mais participação que distanciamento, proximidade mais que elevação, [...] é antes de mais nada a experiência da proximidade das coisas” (Besse, 2006, p. 80) que se toma como referência nessa construção, na qual se mesclam a representação como formas de vivência e a vivência alargada da experiência revelada em distintas apropriações da paisagem.
A imagem e a palavra são, assim, tomadas como possibilidades de extrair uma percepção e compreensão de paisagem, para além do vínculo da imagem e da palavra com a pintura e a literatura, tão somente. As duas categorias complementam-se e cumprem a missão narrativa de desencadear a reflexão implícita à intencionalidade que une a consciência aos objetos intencionais ― pensar é pensar em algo ― relacionados a um mundo real no espaço e no tempo. Do ponto de vista epistemológico, o objeto da intencionalidade é inicialmente apresentado pela imagem ― como presença do ausente por ela representado ―, que, por sua vez, provoca a reflexão pela palavra, numa operação de complementaridade e interdependência de linguagens. A imagem é então o ponto de partida da entrevista.
No processo metodológico dessa construção, Georg Simmel, Augustin Berque e Gordon Cullen, permeados por outros autores, como Jean-Marc Besse, Anne Cauquelin, Alain Roger, Javier Maderuelo e Joan Nogué, ancorados pela Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, nos ajudaram a sair da natureza para entrar na paisagem (Simmel, 2009), entendendo-a como lugar da territorialidade humana (Berque, 1994, 2009, 2010), até chegar na cidade como território que se aproxima do Recife-paisagem (Cullen, 1983). Nessa sequência de escalas, os autores definem, respectivamente, caminhos, critérios e maneiras associados a duas formas de aproximação da paisagem, pela intelecção vinda da arte e pela empiria da vida vivida, fruto da experiência cotidiana.
Assim, na construção metodológica desse instrumento que envolve aproximação e afastamento, as imagens se associam ao olhar panorâmico que explora o skyline da paisagem distante, vinculado à arte, e as palavras se associam às relações que se dão na linha de chão, aqui denominada de landline da paisagem, palavra criada para designar o lugar onde se estabelecem relações pela proximidade, vinculada à empiria. Se o olhar capta a imagem pela elasticidade da proximidade e do distanciamento proporcionado pela retina, o desdobrar-se da palavra se revela na exigência de proximidade que permite o diálogo entre indivíduos, situados na linha de chão, sentido topológico vinculado ao espaço público, onde as pessoas estabelecem laços e constroem suas histórias coletivamente.
Compreendendo a inseparabilidade da imagem à palavra, explora-se uma reflexão mais dirigida à cidade, nos levando, em especial, às bordas do bairro de são josé, pelos três exercícios de paisagem explorados a seguir.
O Recife em Exercícios de Paisagem pela Imagem e pela Palavra
Os exercícios de paisagem foram definidos a partir do objeto empírico ―as bordas do Cais José Estelita, no bairro de São José. Em entrevistas semiestruturadas, foram capturadas a noção de paisagem de 78 entrevistados, entre especialistas, artistas e moradores, em três grupos de entrevistados: os que consideram a paisagem pela transformação (arquitetos, legisladores e empreendedores), pela percepção (fotógrafos, cineastas, pintores e escritores) e pelo consumo (moradores). Entre estes, foi dada prioridade aos arquitetos (53,85%), para se avaliar a opinião daqueles que, por ofício, são responsáveis pela feição da cidade, seja na definição de leis, seja por intervenções em planos e projetos.
Para a captura da percepção pela imagem, foram adotados os exercícios denominados máscaras de preferência visual, fotopinturas e cartões-postais. A partir desses exercícios, a palavra é explorada em três perguntas horizontais que atravessam todos os entrevistados e sete verticais, dirigidas a determinados grupos de entrevistados. Entre imagens e palavras, adota-se métodos qualitativos e quantitativos para análise dos resultados.
Não se utilizando de estatística de um sistema de amostragem, mas de um sistema de seleção de um conjunto recortado por critérios pré-estabelecidos, foram associados dados visuais às questões pela palavra, garantindo o máximo potencial comunicativo e inserção na tabulação e análise (Banks, 2009; Bauer & Gaskell, 2008). Adotada a Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), a sua aplicação não se limitou à linguagem extraída da palavra, mas também à linguagem extraída da imagem, pela repetição de gestos e intenções revelados pelas tintas, facilitando a inter-relação das categorias de análise.
Exercício 1: Máscaras de Preferência Visual
A ‘preferência visual’ está inicialmente associada à imagem e à beleza, operação de contemplação estética estabelecida entre o sensível e o inteligível que, no entanto, não se limita à reflexão teórica, mas considera a observação sobre o objeto em si, extrapolando uma abordagem puramente conceitual. Insere-se assim o olhar da paisagem apropriada pela população (especialistas e não especialistas), associando um entendimento estético àqueles que também estabelecem vínculos emocionais às escolhas.
O exercício máscaras de preferência visual origina-se do Método das Preferências Visuais do arquiteto paisagista Carls Steinitz, que procura identificar o que uma determinada população elege como paisagem com qualidade visual a ser conservada, com base em seus elementos componentes (Castel-Branco et al., 2011). Em Portugal, Steinitz trabalhou com três municípios e novecentas fotografias, analisadas por nove variáveis inseridas em programas estatísticos.
Na presente pesquisa, uma só vista panorâmica é trabalhada. Sobre ela, definem-se determinados recortes dessa paisagem que possam provocar o interesse e a reflexão, revelando trechos e escondendo outros, com as denominadas Máscaras de Preferência Visual. Para a escolha da vista panorâmica, capturada pelo olhar do pedestre, tomou-se como critérios: (i) ter vista para as águas da bacia do Pina, (ii) oferecer captura panorâmica com profundidade visual, (iii) definir ângulo de visada que permita a identificação de edificações históricas e modernas do bairro de São José e (iv) permitir identificar o contraste entre elementos históricos e elementos modernos e contemporâneos na paisagem.
É escolhida uma vista panorâmica retirada do molhe de arrecifes olhando para o bairro de São José, seguindo uma exigência prático-estética de Cartier Bresson por fotografia em preto e branco, para, assim, nos afastarmos da natureza (colorida) e nos aproximarmos de sua estrutura (Bresson, 1974 como citado por Soulages, 2010). A vista panorâmica em questão está exposta na Figura 3.
Nesse skyline, identificam-se quatro igrejas, o casario histórico, os edifícios modernos (1950, 1960) e as duas torres do início do século XXI, os Píers Duarte Coelho e Maurício de Nassau. Ressaltados estes elementos, foram definidas seis Máscaras de Preferência Visual, correspondendo a seis recortes sobre essa imagem. Assim, essas ‘janelas’ recortadas revelaram:
(i) a água da bacia do Pina; (ii) o horizonte da borda do bairro de São José sem as Torres Gêmeas; (iii) as duas Torres Gêmeas no horizonte do bairro de São José; (iv) a água da bacia do Pina e os principais monumentos históricos; (v) os monumentos históricos e (vi) o diálogo horizontal da borda de São José, admitindo-se intervenções contemporâneas com mesmo gabarito da cidade preexistente (Veras, 2017, p.157).
A Figura 3 ilustra esta vista panorâmica e as seis Máscaras como opção de escolha.
Sendo o primeiro dos exercícios e com base em uma fotografia em preto e branco, a estrutura da imagem é esmiuçada na palavra que escolhe uma das Máscaras, revelando apreensões em relação à harmonia ou desarmonia associadas à escala, à forma, à composição, à história e preexistências e, em seguida, despertando outras referências associadas à apropriação e vivências. E a força da horizontalidade predomina. Ainda que fossem oferecidas opções de escolha pontuais, a borda como fita se impôs no resultado, com 92% dos entrevistados preferindo as vistas apresentadas pelo conjunto horizontal da paisagem, sendo 37% para a Máscara do horizonte sem torres (MPV 2) e 55% para a Máscara do diálogo horizontal (MPV 6), numa clara alusão, feita pelos arquitetos, à “arte do relacionamento” ressaltada por Cullen (1983, p. 80), pelo ritmo, repetição de ângulos e elementos horizontais.
As reflexões sobre finitude e infinitude da forma urbana, relacionadas, respectivamente, à cidade colonial e à cidade moderna, foram exploradas como argumentos reveladores da noção de paisagem vinculada à arte, principalmente pelos arquitetos, artistas e intelectuais. E muitas outras reflexões são desencadeadas, inclusive pelo incômodo causado pela imposição das ‘máscaras’, limitando os desejos de compreensão de uma totalidade. O incômodo foi proposital, como estratégia metodológica preparatória para o próximo exercício, o das fotopinturas, no qual haveria a liberdade de manipular a imagem e recriá-la numa totalidade, usando-se tintas sobre uma fotografia, como exposto a seguir.
Exercício 2: Fotopinturas
O uso de fotografias vincula-se ao método de foto-elicitação, definido por Banks (2009) como aquele que utiliza imagens prontas em entrevistas semiestruturadas, tanto para despertar reflexão de memórias passadas quanto para projetar possibilidades de futuro. Mas o limite do método se dá pelas escolhas de imagens apresentadas, não permitindo a recriação de novas imagens, tantas quanto forem as entrevistas realizadas. As máscaras de preferência visual tentam romper com a reflexão sobre uma única imagem ao fatiá-la em janelas de observação. Mas não permite o olhar para o todo, nem o olhar plural para a paisagem, capaz de recriá-la. Assim, adota-se como segundo exercício o método das Fotopinturas.
A fotopintura vai além da Foto-elicitação, porque permite a manipulação de imagens pelo entrevistado, recriando possibilidades associadas à sua compreensão de paisagem e desejos de futuro sobre um panorama apresentado. O exercício consiste em sobrepor tintas de quatro tonalidades sobre a mesma fotografia utilizada nas Máscaras de Preferência Visual, obedecendo a quatro comandos: (i) branco para eliminar elementos indesejados da paisagem, (ii) vermelho para inserir elementos desejados, (iii) amarelo para indicar o que conservar e (iv) azul para ressaltar a natureza, aqui definida pela água e céu.
Ao final, a fotopintura é concluída com um slogan, no qual o entrevistado denomina a sua intervenção justapondo às imagens, uma síntese pela palavra, como ‘ancoragem’ recíproca entre as duas linguagens, diminuindo as ambiguidades e possibilitando um entendimento mais completo do objeto.
Assim, sobre uma única imagem, foram produzidas 78 novas paisagens, classificadas por grupos que guardavam semelhanças tanto pelo gesto de intervenção quanto pelos argumentos sobre a imagem produzida. Os resultados definiram ‘chaves de leitura’ como categorias de análise: (1) arquitetura, (2) linha de borda, (3) intervenção mais relevante (entre arquitetura e espaço público na linha de borda) e (4) natureza na paisagem. Essas chaves de leitura foram desdobradas em itens de análise específicos que respondem aos núcleos de sentido das “escolhas paradigmáticas significativas” (Bauer & Gaskell, 2008, p. 331).
A Figura 4 ilustra o procedimento, da definição da imagem panorâmica a ser manipulada à definição das cores e comandos de intervenção, expondo-se em seguida uma amostra representativa de três dos oito tipos de intervenção detectados, aqueles da “paisagem do retorno”, da “paisagem do diálogo horizontal” e da “paisagem da imposição vertical”.
Entre esses três tipos, a fotopintura do ‘retorno’ volta ao século XIX, na qual são excluídos todos os edifícios modernos a partir do século XX. A do ‘diálogo horizontal’ considera a relação respeitosa entre passado e presente, conservando-se as preexistências e seu protagonismo na paisagem, já a da ‘imposição vertical’ faz da cidade preexistente ‘nota de rodapé’ como metáfora, impondo o novo fora de escala e de contexto.
Dos três gestos ―do retorno, do diálogo e da imposição―, as fotopinturas do diálogo horizontal foram propostas por cerca de 70% dos entrevistados, dos quais 30 arquitetos e 25 não arquitetos, revelando o grau de rejeição tanto para um retorno ao século XIX quanto para a escala do Novo Recife prevista para o cais José Estelita.
O exercício das Fotopinturas foi o que despertou maior reflexão. A liberdade de intervenção para a criação de novas paisagens permitiu que todos os entrevistados expressassem suas críticas, inquietações e desejos de futuro. Assim, foram eliminados elementos indesejados e inseridos outros, conservados o que se compreendeu como de valor e ressaltada ou não a natureza, pelo azul do céu e da água. O sentido de apropriação aqui despertado completa-se na palavra sintetizada pelo slogan e por muitas outras reflexões, reunindo razão e sentimento.
Sob a teoria trabalhada, as 78 Fotopinturas conduziram a definição das chaves-de-leitura, gerando as categorias de análise para explorar questões relacionadas à arquitetura, ao espaço público e à natureza na e da paisagem. A Fotopintura prepara o entrevistado para o exercício dos Cartões-postais, quando o entendimento de paisagem como reveladora de cidades é retomado, associando o Recife a outras paisagens identitárias do Brasil e fora do Brasil, entendidas como paisagens-postais.
Exercício 3: Cartões-postais
A ausculta da população para apreensão de uma compreensão de paisagem fecha-se com o exercício dos Cartões-postais. A resposta à hipótese de que existem paisagens que identificam cidades encontra nos cartões-postais a possibilidade de relacionar memórias urbanas de distintos períodos e apropriações afetivas à imagem da cidade. Além disso, ao serem reconhecidos como instrumentos de propaganda e não só como veículos de correspondência (Kossoy, 2002), são fotografias cuidadosamente elaboradas que privilegiam recortes de cidade facilmente identificados.
A escolha dos cartões-postais teve como critérios a definição de imagens: (i) que revelem o sítio natural da cidade, (ii) que identifiquem o Recife histórico, (iii) que identifiquem o Recife da modernidade e (iv) que identifiquem a relação entre o Recife histórico e o moderno. A captura da imagem ―a voo de pássaro ou pelo olhar do pedestre― também a associa ao skyline e ao landline, do afastamento e da aproximação de apreensão da paisagem.
Privilegiando as águas e a arquitetura, a Figura 5 identifica as visadas trabalhadas e situa o local de onde foram capturadas: (A) Rua da Aurora no Capibaribe, (B) Praia de Boa Viagem, (C) Ponte da Boa Vista e Guararapes, (D) estuário, pontes, planície e ilhas (D), Ponte Princesa Isabel e os bairros Boa Vista e Santo Antônio, (E) São José e os novos edifícios de borda, (G) Igreja de São Pedro, pátio e casario, (H) e a Rua do Bom Jesus, no centro da cidade.
O cartão-postal que revela o estuário do Recife (D), com suas pontes, planície e águas, doces e salgadas, capturado a voo de pássaro e, portanto, mais próximo do skyline, foi apontado pela maioria como aquele que mais identifica o Recife. E, entre todos, o da Rua da Aurora (A) foi apontado como o que mais emociona. Em contrapartida, o cartão-postal da paisagem que olha para a borda de São José (F), com os Píers Duarte Coelho e Maurício de Nassau, foi apontado como aquele que menos identifica o Recife e menos emociona.
Identificar e emocionar cumpriram a função de desencadear a reflexão pela palavra e, a partir destas reflexões, outras foram feitas sobre a paisagem do Recife, de cidades do Brasil e de fora do Brasil. No Brasil, o Rio de Janeiro foi apontada como a cidade que melhor se identifica pela paisagem, e, em especial, pela força de sua natureza, seguida por Salvador, também condicionada pela natureza. Fora do Brasil, a cidade de Paris foi a mais citada, no entanto, aqui é referida pelos ícones da arquitetura como a Torre Eiffel, e não pelo conjunto da paisagem onde a torre se insere. Na sequência, Londres e Nova Iorque são citadas, e a cidade de Veneza é trazida à reflexão pela associação com o Recife das águas, também conhecido como ‘Veneza brasileira’.
O exercício comprova que as paisagens dos cartões-postais identificam certas cidades. Arraigadas na memória como ícones, são apontadas, inclusive, por quem as conhece apenas pelos ‘cartões-postais’. Mas comprova-se também que há, para além da imagem de ‘cartão-postal’ associada à beleza, outras referências de compreensão e apropriação dos lugares.
No conjunto, os três exercícios desencadearam inúmeras reflexões pela palavra, comprovando a força da imagem como linguagem, preparando os entrevistados para outras questões, agora pela palavra, complementando os exercícios de imagem.
Conclusão
O pano de fundo que provocou a definição de uma metodologia de pesquisa, pelas questões críticas e emaranhado que levanta e sobre os quais se assenta, ressalta-se com força para além da própria metodologia, escapando aqui e acolá como condição de explicitação dos próprios procedimentos adotados. Seria impossível descrever essa metodologia sem partir de um mergulho no objeto empírico em si, aqui entendido como indutor de um desenho metodológico ancorado nos estudiosos de paisagem e de outros que lhe tangenciam e sobre as questões que brotam das bordas dessa ilha do Recife, no Nordeste do Brasil. O Cais José Estelita, ao tangenciar sem se inserir em um recorte do território protegido por lei municipal, não foi reconhecido legalmente como patrimônio e, por isso, passa por intenso processo de verticalização que vem com a implantação do Projeto Novo Recife.
A legislação é definidora de paisagens, embora a paisagem como conceito não tenha sido considerada nos instrumentos de planejamento do centro histórico do Recife. Ainda que não justifique, reconhece-se que a inclusão da paisagem na legislação e consequentemente em decisões de planejamento e gestão é processo que vem se desenhando no Brasil[4], apoiado pela Convenção Europeia da Paisagem (2000) e pela Carta da Paisagem das Américas (2018).
A pesquisa se estrutura sobre dois desafios: o problema em si, que aponta a desconstrução de uma paisagem icônica da cidade do Recife por intervenções desastrosas aprovadas pelo poder público municipal, e a construção de um procedimento metodológico que pudesse provocar uma reflexão ao extrair da população o seu entendimento de paisagem, inquietações e desejos de futuro para as bordas de São José. Entre os dois desafios, priorizou-se o processo metodológico validado pelos resultados da própria pesquisa e mais tarde consolidado pela adaptação do método na Cidade do México, em pesquisa de pós-doutorado voltada à conservação de paisagens-postais na América Latina (Veras, 2021).
Diferentemente da ideia de “cartão-postal”, aqui o foco é dado à identificação de ‘paisagens-postais’ como aquelas que identificam cidades, seja pelo que é visto e percebido, seja pelo que é sentido e apreendido como lugares apropriados pela memória, em argumentos que reúnem razão e sentimento. A aproximação e o afastamento fornecidos pelo skyline e pelo landline da paisagem, explorados pela imagem e pela palavra, permitiram revelar as bordas do bairro de São José, no Recife, como uma ‘paisagem-postal’, comprovando a hipótese de que há paisagens que identificam cidades.
A força desta pesquisa está nos exercícios de paisagem pela imagem como provocadores da reflexão pela palavra. Se as máscaras de preferência visual causaram incômodo por não permitir apreensão da totalidade, as fotopinturas desafiaram os entrevistados como corpo de prova revelador de suas formas de percepção e desejos de futuro. Estava nas mãos de cada entrevistado o gesto de transformação pelo pincel e tintas conduzidos por seus argumentos. O exercício dos cartões-postais fecha o ciclo ao consolidar a ideia de identificação de cidades pela imagem desses instrumentos de comunicação. Do conjunto, destaca-se o das Fotopinturas como o mais provocador e inusitado, porque é aí que é possível extrair com força a percepção de paisagem de cada entrevistado, permitindo que, sobre uma única imagem, 78 novas paisagens fossem construídas como exercício crítico de reflexão.
O que nos revela a população é matéria-prima a ser inserida nas políticas públicas que tratam do planejamento e da gestão urbana. Significados, valores, necessidades e anseios são essências extraídas de quem vive os lugares, sendo a ausculta ponto de partida e de chegada para a construção de futuros desejados. Exercícios que estimulem a consciência de paisagem podem ser compreendidos como ferramentas de planejamento que considerem as idiossincrasias e diversidades como ingredientes indispensáveis aos projetos de cidade.
Referências
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[2] Denominação associada às torres nova-iorquinas que compunham o World Trade Center, atacadas e destruídas em 2001, que também se destacavam pela altura no centro de Nova Iorque.
[3] Remanescente de inestimável valor histórico e cultural, o Pátio é ponto de partida da primeira linha férrea do Nordeste e segunda do Brasil, da antiga Recife and São Francisco Railway Company. Do ponto de vista da conservação (lógica de funcionamento e materialidade), o Pátio é reconhecido como íntegro exemplar da memória ferroviária brasileira (Freyre, 2017).
[4] Encontra-se em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei nº 2.898/2024, que propõe a criação da Política Nacional da Paisagem, formulada pela Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (ABAP) e pela Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA).
Lúcia Maria de Siqueira Cavalcanti Veras
Arquiteta, mestre em Geografia e doutora em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com pós-doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em Desenho, Planejamento e Conservação de Paisagens e Jardins da Universidad Autónoma Metropolitana (México). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora do grupo de pesquisa do CNPq Pensar Paisagem, vinculado ao Laboratório da Paisagem da UFPE. Participou da elaboração da Carta da Paisagem das Américas (IFLA Américas, 2018) e atualmente participa do projeto Recife Cidade Parque – Plano de Qualidade da Paisagem, desenvolvido em parceria entre a UFPE e o município do Recife.
Autora
A captura da paisagem por imagens e palavras
Este artigo trata de paisagem como categoria do pensamento, mais especificamente de procedimentos metodológicos para captura de percepção e compreensão de paisagem.
Figura 1. Cidade do Recife e bairros históricos de São José e Santo Antônio, na Ilha de Antônio Vaz. Localização do Cais José Estelita voltado para o estuário da Bacia do Pina. Fonte: Elaboração própria.
Figura 2. Os três tempos de paisagem do Cais José Estelita: do horizonte nostálgico, da verticalização deslocada (com os Píers Duarte Coelho e Maurício de Nassau) e do horizonte vertical obsceno, este último em fotomontagem com base na divulgação do Projeto Novo Recife, aprovado em 2012.
Fonte: Veras, 2014, pp. 60, 180, 209, editada pelo autor.
Figura 3. Exercício de Paisagem 1: Máscaras de Preferência Visual. Vista panorâmica do Cais José Estelita e as seis Máscaras de Preferência Visual: (1) água, (2) horizonte sem torres, (3) torres sem horizonte, (4) água e monumentos, (5) monumentos e (6) diálogo horizontal.
Fonte: Veras, 2014, p. 201, editada pelo autor.
Figura 4. Exercício de Paisagem 2: Fotopinturas. Vista panorâmica do Cais José Estelita e os comandos de intervenção orientando-se o uso das cores e slogan. Amostras de três tipos de intervenção: (1) Paisagem do retorno, (2) Paisagem do diálogo horizontal e (3) Paisagem da imposição vertical.
Fonte: Veras, 2014, pp. 201, 236, 245, 289, editada pelo autor.
Figura 5. Exercício de Paisagem 3: Cartões-postais. Cartões-postais trabalhados e prováveis pontos de visada de onde foram capturados. Em ordem decrescente, aponta-se do que mais para o que menos identifica o Recife e do que mais para o que menos emociona o entrevistado.
Fonte: Veras, 2014, p. 340, editada pelo autor.