Ciencia Política
2389-7481
Universidad Nacional de Colombia
Colombia
https://doi.org/10.15446/cp.v19n37.110693

Recibido: 4 de septiembre de 2023; Aceptado: 16 de diciembre de 2024

A tentativa de derrubar a democracia brasileira e a reação do governo Lula em 2023

El intento de derrocar la democracia brasileña y la reacción del gobierno de Lula en 2023

The attempt to overthrow Brazilian democracy and the reaction of the Lula government in 2023

R. Mattos Gonçalves, https://orcid.org/0000-0003-3736-4804

Universidade Estadual de Goiás (UEG)Brasil

Resumo

Neste artigo, reconstruímos a tentativa de insurreição reacionária e golpe de estado contra a democracia no Brasil, ocorrida em 8 de janeiro de 2023, e a reação do governo Lula, baseada na institucionalidade e centrada sobretudo no Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tem realizado diversas ações contra os golpistas e as leis armamentistas que foram uma das principais políticas do governo de Jair Bolsonaro. Lula conta com um contexto relativamente favorável, marcado pelo consenso da maioria sobre a preservação da democracia, com a ação do Superior Tribunal Federal (STF), que vem reprimindo os golpistas, e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que proibiu Bolsonaro de disputar eleições até 2030. Mas a derrota do golpismo brasileiro esbarra, por um lado, nas ações do governo que se limitam à institucionalidade, ao mesmo tempo que abre mão de disputar profundamente as instituições e, por outro lado, na conciliação com setores econômicos permeados pelo extremismo. Argumentamos que a solução do problema, isto é, a derrota da extrema-direita, demanda a disputa do estado e da sociedade civil como um todo, sem conciliação.

Palabras clave: Extremismo, extrema derecha, bolsonarismo, golpe de Estado, izquierda, Gobierno de Lula, conciliación.

Resumen

En este artículo, reconstruimos el intento de insurrección reaccionaria y golpe de Estado contra la democracia en Brasil, ocurrido el 8 de enero de 2023, y la reacción del gobierno Lula, basada en la institucionalidad y centrada principalmente en el Ministerio de Justicia y Seguridad Pública, que ha llevado a cabo varias acciones contra los golpistas y las leyes de armas que fueron una de las principales políticas del gobierno de Jair Bolsonaro. Lula tiene un contexto relativamente favorable, marcado por el consenso mayoritario sobre la preservación de la democracia, con la acción del Tribunal Superior Federal (STF), que ha estado reprimiendo a los golpistas, y el Tribunal Superior Electoral (TSE), que prohibió a Bolsonaro presentarse a las elecciones hasta 2030. Sin embargo, la derrota del golpe brasileño choca, por un lado, con las acciones del gobierno que se limitan a la institucionalidad, mientras se renuncia a disputar profundamente las instituciones y, por otro lado, con la conciliación con sectores económicos permeados por el extremismo. Argumentamos que la solución del problema, es decir, la derrota de la extrema derecha, exige la disputa del Estado y la sociedad civil en su conjunto sin conciliación.

Palabras clave: Extremismo, extrema derecha, bolsonarismo, golpe de Estado, izquierda, Gobierno de Lula, conciliación.

Abstract

In this article, we reconstruct the attempted reactionary insurrection and coup d’état against democracy in Brazil, which occurred on January 8, 2023, and the reaction of the Lula government, based on institutionality and centered mainly on the Ministry of Justice and Public Security, which has carried out several actions against the coup plotters and the arms laws that were one of the main policies of the government of Jair Bolsonaro. Lula has a relatively favorable context, marked by the majority consensus on the preservation of democracy, with the action of the Federal Superior Court (STF), which has been repressing the coup plotters, and the Superior Electoral Court (TSE), which prohibited Bolsonaro from contesting elections until 2030. But the defeat of the Brazilian coup bumps, on the one hand, in the actions of the government that are limited to institutionality, while giving up deeply disputing the institutions and, on the other hand, in the conciliation with economic sectors permeated by extremism. We argue that the solution of the problem, that is, the defeat of the extreme right demands the dispute of the state and civil society as a whole without conciliation.

Palabras clave: extremism, far right, bolsonarism, coup d’état, left, Lula government, conciliation.

A tentativa de derrubada do governo de Lula da Silva

Sem doutrina, sem partido e com aversão à política, aí está o fascismo à brasileira dando as caras nesse infausto 08 de janeiro com seus personagens decaídos, vindos de acampamentos nas proximidades de quartéis militares confiando que contariam com sua adesão ao seu movimento. Convictos em suas crenças mágicas, acreditavam que a promoção do caos com a tomada pela força da praça dos Três Poderes e das instalações físicas do poder republicano bastariam, mesmo que sem plano, aos seus propósitos de instalar um governo de exceção, que lhes cairia nas mãos por efeitos do jogo de dominó em que o caos se difundiria irresistivelmente até a ascensão ao poder do personagem a quem atribuíam qualidades míticas, que, aliás, não deu as caras nesselevante de pátio dos milagres. Luiz

Werneck Vianna (2023)

A epígrafe de Luiz Werneck Vianna ilustra a mentalidade dos militantes das hordas bolsonaristas durante a infortunada tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 que abordaremos neste texto. O golpe tinha inspiração bifrontal: o Golpe de 1964, que derrubou o presidente João Goulart e inaugurou uma ditadura de 21 anos —época “áurea” para os bolsonaristas—, e a invasão do Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021. Assim, o golpe bolsonarista era idealizado como um levante do “povo” que tomaria e entregaria em seguida o poder às forças armadas, em mais uma quartelada de nossa história. Os inimigos seriam presos, expulsos do país ou simplesmente metralhados.

Lula da Silva venceu as eleições de 2022 sobre Jair Bolsonaro com a vantagem de 2’139.645 votos, uma margem relativamente estreita para as dimensões do Brasil (TSE, 2023). No domingo, 1 de janeiro de 2023, em Brasília, Distrito Federal (DF), Lula foi empossado e subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado da primeira-dama Janja Silva e de representantes do povo brasileiro: o cacique Raoni Metuktire, líder indígena kayapó; o menino negro Francisco Carlos do Nascimento e Silva; o professor Murilo de Quadros Jesus; a cozinheira Jucimara Fausto dos Santos (participante da Vigília Lula Livre, quando ele esteve preso em Curitiba); o influenciador da inclusão de pessoas com deficiência, Ivan Vitor Dantas Pereira; o metalúrgico Weslley Viesba Rodrigues Rocha; e a catadora de materiais recicláveis, Aline Sousa, além do vice-presidente Geraldo Alckmin e sua esposa, Lu Alckmin (Verdélio e Richter, 2023). Para os organizadores do evento e sua principal animadora, Janja Silva, ali estava representada a diversidade do povo brasileiro.

Uma semana depois disso, no domingo de 8 de janeiro, os bolsonaristas subiram à rampa e invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional (parlamento) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Os prédios dos Três Poderes foram tomados e depredados. Além da destruição, objetos foram roubados, como a toga de um ministro do STF. O ato de subversivismo reacionário1 sugerido, e até mesmo prometido nas entrelinhas, por Bolsonaro durante os quatro anos de seu governo, acontecia enfim, inspirado na invasão do Capitólio dos Estados Unidos por trumpistas dois anos antes, em 6 de janeiro de 2021, após a derrota de Donald Trump nas eleições de 2020. Lá, a tentativa foi de uma insurreição popular reacionária; aqui, a insurreição daria início à tomada do poder pelos militares.

É possível um cotejo entre a tentativa de golpe de estado do 8 dejaneiro de 2023, a tentativa de golpe de 1961 e o golpe de 1964. Talvez aquele que mais possua semelhanças com a última tentativa de golpe seja o de 1961, quando o presidente Jânio Quadros tentou um autogolpe. A comparação entre Quadros e Bolsonaro parece evidente: são lideranças reacionárias, performáticas, com retórica messiânica que apareceram em momentos de profunda crise da República brasileira. Até a partida em um avião como uma espécie de “gatilho” para as forças golpistas, os dois fizeram (Quadros partiu de Brasília para São Paulo, e Bolsonaro para Orlando, Estados Unidos). Mas os contextos são muito diferentes. Quadros governou na época da Guerra Fria e sua tentativa de levar a cabo uma política externa independente, através da aproximação do Brasil ao campo socialista, desagradou os principais veículos de imprensa da época e dividiu as Forças Armadas entre os que apoiariam seu autogolpe ou não (Chaia, 1991, p. 239). Entre seus governos, embora haja algumas rápidas semelhanças, como as medidas econômicas liberais e sua liderança carismática e populista, Quadros governou por apenas sete meses (31 de janeiro até 25 de agosto de 1961) em um processo de isolamento político crescente (Chaia, 1991, p. 231), enquanto Bolsonaro governou com o apoio de parte significativa do Congresso Nacional (o chamado centrão) e, por uma margem relativamente estreita, não se reelegeu presidente em 2022. O janismo não teve o enraizamento na sociedade que o bolsonarismo conquistou por ser orgânico.

Apesar das diferenças entre janismo e bolsonarismo, com evidentevantagem do último no que se refere ao enraizamento social e institucional, sobretudo nos setores evangélicos e no aparato repressivo do Estado, o intento de Bolsonaro muito se assemelhou ao de Quadros naquilo que René Dreifuss (1981, p. 129) analisou: a esperança de conseguir um mandato bonapartista-civil por intermédio de um retorno ao governo. No caso de Bolsonaro, um retorno após ter sido derrotado nas eleições de 2022.

A especificidade de Bolsonaro é que ele buscava uma nova ditadura, tendo o Golpe de 1964 e a ditadura militar como modelos. Segundo Marcelo Badaró Mattos (2020): “A defesa sistemática da ditadura militar e, particularmente, de suas dimensões de terrorismo de Estado, como a tortura e a eliminação de opositores políticos”, em conjunto com “a representação da ditadura como um período ‘áureo’ da história recente do país” (p. 169), foi uma constante na longa carreira política de Bolsonaro. O golpe de velho tipo —baseado no putsch militar— que tantas vezes serviu às classes dominantes brasileiras, desde que um levante militar derrubou a monarquia em crise para proclamar, em 1889, uma das repúblicas mais desiguais do planeta e que serviu para derrubar, em 1964, o governo nacional-reformista de João Goulart, não fazia mais tanto sentido porque um golpe já havia sido dado, em 2016, contra o governo de Dilma Rousseff. E o apoio dos Estados Unidos, fundamental em 1964, não veio. O presidente Joe Biden dificilmente apoiaria um golpe para beneficiar um trumpista convicto (Bolsonaro).

Os “modelos” de golpe e de regime político para Bolsonaro, isto é, o Golpe de 1964 e a Ditadura Militar (1964-1985), não poderiam ser simplesmente repetidos. Segundo o historiador Gilberto Calil, a “nova direita” vem se reorganizando no Brasil desde os anos 1980, durante a redemocratização, e, pelas décadas seguintes, a simbiose da extrema-direita com a sociabilidade neoliberal “devastadoramente imperialista, antidemocrática e antipopular” (Calil, 2018, p. 5 e Mattos, 2020, p. 183) se mostrou fértil. Segundo o cientista político Jefferson Barbosa, que também percebe uma (re)organização anterior ao golpe, “O 8/1 não pode ser pensado apenas como um dia, um acontecimento, e sim como um processo de organização de tendências da extrema-direita brasileira que vem se fortalecendo e se aglutinando nos últimos dez anos” (Barbosa, Nogueira, 2024).

É nesse processo de longa reorganização da direita desde a redemo-cratização nos anos 1980, na recente reorganização da extrema-direita no novo século por meio da internet (sobretudo das redes sociais), e na grave crise que se abate sobre a esquerda brasileira desde os levantes de 2013, que a tentativa de golpe está contextualizada.

Contando com o beneplácito do exército e da polícia militar, os bolsonaristas que estavam acampados nos arredores do quartel-general, somados a outros que foram até Brasília de ônibus, invadiram rapidamente e quase sem resistência os edifícios públicos. O evento ainda está sendo apurado pelas autoridades e pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Atos Antidemocráticos, mas pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que a invasão bolsonarista tinha sido planejada como parte de um golpe de estado (Costa, 2023). Arquitetava-se que a situação de caos causada em Brasília se espalharia pelo país, e as Forças Armadas teriam que ser convocadas pelo presidente Lula para reestabelecer a ordem em uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) típica, que seria convertida em uma tomada militar do poder como conclusão da insurreição reacionária.

A tentativa de golpe bolsonarista de 8 de janeiro de 2023, mesmonão derrubando o governo eleito e as instituições que foram alvo do quebra-quebra, mostrou que setores do Estado estão entranhados pelo bolsonarismo, como grande parte das polícias e das Forças Armadas, partes do Poder Judiciário, além do grande número de parlamentares bolsonaristas que estão em diferentes partidos e foram (re)eleitos nas eleições de 2022.

Um exemplo da penetração extremista no exército foi a inédita autorização para os acampamentos bolsonaristas, montados logo após o segundo turno das eleições de 2022 no Setor Militar Urbano (SMU), uma área de segurança onde fica o Quartel-General (QG) do Exército. A autorização foi dada pelo Comando Militar do Planalto (CMP), responsável pela defesa do Distrito Federal (DF), Goiás, Tocantins e Triângulo Mineiro, na área correspondente à 11.ª Região Militar. O CMP proibiu ainda que a Polícia Militar do DF fosse acionada para retirar do local os bolsonaristas acampados. Segundo um general do CMP, eles tinham o “direito” de estar lá (Costa, 2023, p. 17).

Nesses acampamentos, boa parte da massa que participou da intentona bolsonarista foi mobilizada. Lá também foi planejado um atentado a bomba para explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília em 24 de dezembro, véspera de Natal, causando um clima de caos para “provocar as Forças Armadas a decretarem ‘estado de sítio’ e realizarem uma intervenção militar” (Talento e Abbud, 2022). A ideia de dominar o país à mão armada encanta a extrema-direita.

Também a Polícia Militar (PM), que é a mais numerosa entre as polícias e a responsável pelo controle e repressão de mobilizações deste tipo, está em grande parte bolsonarizada. Um fato que mostra tal situação foi o quebra-quebra que ocorreu em 12 de dezembro de 2022, depois que um indígena adepto do extremismo que tentou invadir o hotel onde Lula estava hospedado foi preso. A Polícia Federal (PF) interceptou e o prendeu no ônibus onde estava com outros bolsonaristas, que seguiram a viatura da PF e, com o reforço de acampados no QG do Exército, promoveram um quebra-quebra na capital. Ninguém foi preso. O comandante do batalhão de choque da PM, coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, ouvido pela CPI dos Atos Antidemocráticos, disse: “por incrível que pareça, os caras sumiram” (Costa, 2023, p. 20). São fartas as imagens do 8 de janeiro nas quais os policiais fazem uma escolta de acompanhamento dos bolsonaristas até os locais da destruição. O comando da PM, mesmo sabendo das manifestações e com toda a movimentação de ônibus trazendo militantes de outros estados, preferiu não mobilizar a tropa e manter soldados de folga.

No Poder Judiciário, as disputas são acirradas. O ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, que esteve à frente da maior parte das ações de repressão aos sujeitos envolvidos nos atos antidemocráticos, tem sofrido críticas que, obviamente, não são neutras e representam posicionamentos frente à realidade nacional em disputa. Conforme revelado, Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral da República e integrante do Ministério Público Federal desde 1984, criticou Moraes por ações como a prisão do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro, envolvido na falsificação de seu cartão de vacinas (Bonin e Borges, 2023). Recentemente, foi revelado que Cid estava envolvido na venda de joias e relógios de luxo que foram presenteados à Presidência da República pelos árabes e nas articulações golpistas. No Brasil, presentes como esses, por lei, não podem ser vendidos ou apropriados por quem ocupa o cargo de presidente.

Da mesma forma, a sociedade civil brasileira —expressão do capi-talismo dependente em crise e da decadência capitalista em geral— segue com amplos setores bolsonarizados. É comum ouvir na esquerda a afirmação de que Bolsonaro foi derrotado, mas o bolsonarismo não. O “agrobolsonarismo” assediou trabalhadores rurais a votar em Bolsonaro nas eleições de 2022 e é uma expressão eloquente disso (De Olho nos Ruralistas, 2023, p. 35).

Segundo o levantamento “As origens agrárias do terror”, feito pelo De Olho nos Ruralistas - Observatório do Agronegócio no Brasil, a articulação golpista envolveu empresários do agronegócio e do setor logístico, fazendeiros, madeireiros e garimpeiros (De Olho nos Ruralistas, 2023, p. 11). Várias organizações ruralistas estiveram na organização e financiamento do terrorismo, como a produtora de arroz Urbano Agroindustrial, as cooperativas Lar e Coopavel, a distribuidora de agrotóxicos Agrosanta e o Sindicato Rural de Castro; líderes de associações setoriais do agro-negócio participaram do quebra-quebra em 8 de janeiro, como o ex-presidente da Associação dos Criadores de Brahman do Brasil (ACBB) e o diretor vice-presidente da Região Sudeste na Associação Brasileira da Indústria do Feijão (Abifeijão) (De Olho nos Ruralistas, 2023, p. 11-13).

Apoiaram a tentativa de golpe empresas como as proprietárias deônibus que levaram militantes à Brasília, a Cooperativa Agropecuária do Noroeste Mineiro (Coanor) de Unaí (estado de Minas Gerais), a Italianinha Transportes de Matelândia (Paraná) e a Viação Garcia/Brasil Sul, nas regiões Sul e Sudeste; a distribuidora de agrotóxicos Life Agro Insumos, de propriedade da esposa do vice-governador do Rio Grande do Sul; a distribuidora de peças de tratores Agroterra de Santarém (PA); e a organizadora de leilões de gado bovino Clube dos Amigos Leilões de Quirinópolis (Goiás) (De Olho nos Ruralistas, 2023, p. 13).

Setores dos bancos e das finanças aderiram ao governo Bolsonaro e ao bolsonarismo, como o presidente do Banco Central Roberto de Oliveira Campos Neto. É possível que apoiariam sem problemas um golpe de estado que o mantivesse no poder.

Outra articulação na sociedade civil veio do Instituto Voto Legal (IVL), do engenheiro Carlos Rocha, que era proprietário de uma empresa subcontratada para construir as primeiras urnas eletrônicas para o TSE, em 1995, de acordo com as especificações do Tribunal. A máquina não era uma invenção dele, mas Rocha queria receber royalties por cada urna fabricada e entrou em um litígio, mas acabou perdendo o processo. Desde então, ele passou a integrar um pequeno e barulhento grupo que questiona as urnas, argumentando que não seriam seguras (Costa, 2023, p. 18). Em um documento dito “confidencial” com data de 30 de novembro de 2022, o IVL (2022) defende a auditoria das urnas - em clara adesão ao discurso de Bolsonaro de que os votos deveriam ser impressos para poderem ser auditáveis (Westin, 2021). Por fim, Bolsonaro acabou cassado e proibido de disputar eleições por oito anos, contados a partir das eleições de 2022, exatamente por ter defendido em uma reunião com embaixadores estrangeiros que as urnas poderiam ser fraudadas (Tribunal Superior Eleitoral, 2023).

As articulações na sociedade civil se refletiram no Parlamento.Apoiaram a quebradeira em Brasília ou criticaram a prisão de golpistas vários parlamentares, como a deputada federal Carla Zambelli (Partido Liberal - PL), o ex-vice-presidente de Bolsonaro e senador Hamilton Mourão (partido Republicanos), a deputada federal Silvia Waiãpi (PL), o senador Magno Malta (PL), o senador Luis Carlos Heinze (partido Progressistas - PP), o deputado federal Ricardo Barros (PP), o deputado Pedro Lupion (PP) e o deputado federal José Medeiros (PL) (De Olho nos Ruralistas, 2023, p. 19-20).

Durante seu mandato (2019-2022), Jair Bolsonaro governou fomentando a barbárie capitalista com a liberação de armas, a invasão de terras indígenas, a queimada militante das florestas, a destruição dos direitos trabalhistas com a Reforma da Previdência (2019) —em continuidade à Reforma Trabalhista (2017) do governo de Michel Temer, que destruiu as conquistas trabalhistas de quase oito décadas— fez o maior número de privatizações de todos os tempos, e arrasou com grande parte do patrimônio público nacional, além de cortes nas verbas destinadas à ciência e à educação. Após o fim de seu mandato, veio à tona o incentivo que o governo Bolsonaro deu ao garimpo ilegal em terras indígenas, violando direitos humanos e ocasionando o “genocídio yanomami” (NEAZ, 2023). O Brasil foi atingido por um amplo e sistemático retrocesso.

Os quatro anos de governo Bolsonaro foram marcados pelo grande desmonte nacional apoiado pelo chamado centrão, isto é, a ampla coalizão de partidos conservadores que domina o Congresso Nacional, contra o qual a esquerda não tem deputados suficientes para barrá-lo. Bolsonaro deu grande poder ao Centrão, entregando ao seu líder, Ciro Nogueira, grande parte do orçamento estatal, 150 bilhões de reais (Ventura, 2022), e criando o Orçamento Secreto de 3 bilhões de reais, entregue a deputados, em troca de apoio (Brasil de Fato, 2021).Outro aspecto de seu governo foi o completo rebaixamento e desmoralização da Presidência da República. Bolsonaro aparecia em público frequentemente, às vezes diariamente, dizendo impropérios e absurdos, agredindo os repórteres que cobriam o governo. Os casos mais chocantes se referem à pandemia da COVID-19, quando ele, várias vezes, debochou dos mortos e enfermos e se desresponsabilizou do combate à pandemia (Queiroz, 2022). Seus atos de logorreia podem parecer simples deslizes de um inculto ou excessos de “sinceridade” apreciada por seus adeptos.

O extremismo verbal de Bolsonaro é uma questão que mereceatenção. Politicamente falando, o rebaixamento e a desmoralização do cargo de presidente, aliado à entrega do orçamento estatal ao Centrão, vêm ao encontro do enfraquecimento da Presidência e do fortalecimento do Parlamento em um processo de instauração de um semiparlamentarismo não anunciado. Considerando a dificuldade de Lula com o Parlamento em seu atual mandato, ao qual tem feito muitas concessões, pode-se dizer que esse processo obteve significativo êxito. Isso vai bem além de se ter maioria ou não no Congresso.

Basicamente, esse é o entulho dos anos bolsonaristas com o qual Lula tem que lidar. As consequências de tanta destruição são tão graves que levariam décadas para reconstruir apenas uma parte. A tudo isso se soma a destruição promovida pelo governo de Michel Temer (2016-2018) das leis trabalhistas no que tinham de proteção ao trabalhador. A tutela legislativa que caracterizava a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi desmontada pela Reforma Trabalhista de 2017; os trabalhadores foram equiparados aos patrões no âmbito da lei, e o negociado passou a predominar sobre o legislado, de modo que a CLT, como um todo, perdeu seu caráter de proteção dos trabalhadores (Alencar, 2023, p. 161).

Somado à destruição das conquistas históricas dos trabalhadores, avançaram no Brasil, como no mundo, as formas de trabalho “uberizado”, isto é, o trabalho por aplicativos, que são caracterizadas pela completa desregulação legislativa, já que cada plataforma cria suas próprias regras a título de “termos de uso” que beneficiam a própria empresa. Segundo o sociólogo Ricardo Antunes, os trabalhos por aplicativos “são trabalhos com jornadas extenuantes, percebendo baixos salários (especialmente nos países da periferia), em uma lógica aparentemente ‘impessoal’, onde os ‘algoritmos’ comandam e controlam os tempos, os ritmos e as atividades realizadas, sempre com mais intensidade e com metas a serem diariamente superadas” (Antunes, 2023, p. 525).

Esse processo de destruição dos direitos sociais e trabalhistas tem repercussões mais amplas do que se possa imaginar. Os trabalhadores autônomos, isto é, sem vínculo legal com as empresas —o que é cada vez mais comum—, são tratados como “empreendedores”. O “empreendedor” disfarça sua realidade social de trabalhador sem direitos, acreditando que subiu na escala social e que não é mais um subalterno, quando vive exatamente o oposto. Pode-se dizer que o “empreendedorismo” é uma das ideologias mais disseminadas pelo capital na sociedade, sendo uma espécie de versão laica da “teologia da prosperidade”. Para a esquerda, um de seus fundamentos se esfumou: a consciência de classe, que uniu o povo em suas lutas e em momentos críticos da nação, está vigorosamente soterrada pelo transformismo massivo da classe trabalhadora. O “novo” trabalhador com consciência empreendedora está pronto para abraçar o extremismo, pois já não se reconhece entre seus iguais, em sua classe. Não vê razão na organização sindical e nos movimentos sociais, por exemplo, ou na importância das conquistas das classes populares que se materializaram nas leis trabalhistas do passado e em políticas públicas, como a saúde e a educação públicas. Tudo isso é visto como um “gasto”, quando se supõe que poderia ganhar mais se nada disso existisse. A principal base social de qualquer governo de esquerda, mesmo que moderado, é a classe trabalhadora; todavia, esta se encontra profundamente fragmentada e desorganizada, em um processo de profunda subalternização, o que é um risco para as forças que lutam contra a ascensão da extrema-direita.

Diante desse quadro político e social de profunda crise do capita-lismo no Brasil, que se reflete nas instituições que são completamente desacreditadas pelo povo, é que se questiona: Como o governo Lula tem reagido e como tem se colocado diante das acirradas disputas que marcam a sociedade?

O governo Lula versus golpismo e extrema-direita

A forma pela qual o governo Lula tem enfrentado a direita, isto é, a partir da institucionalidade que agora comanda, é insuficiente a médio e longo prazo. Por enquanto, o governo conta com o clima favorável, em defesa da democracia, que se instaurou após a tentativa de insurreição reacionária em 8 de janeiro. Lula também tem contado com o apoio não pronunciado e institucional do STF e do TSE, sobretudo na figura dos ministros Alexandre de Moraes e Benedito Gonçalves, que têm sido duros com Bolsonaro e seu entorno, mais duros com os bolsonaristas, diga-se de passagem.

No enfrentamento da direita, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, liderado por Flávio Dino, tomou a frente. O ministro atraiu a indignação bolsonarista e sofreu ameaças com suas ações, como o limite ao porte de armas e clubes de tiro, que eram o carro— chefe das políticas de promoção da dita “liberdade” individual do governo Bolsonaro. Várias declarações de Dino atraem a ira bolsonarista, como: “Tem desvio de gente que compra arma porque é caçador e aluga para facção [criminosa]. A Polícia Federal no Rio apreendeu em uma única cidade mais de mil armas que seriam destinadas ao crime organizado” e “[…] Existe liberdade em matar, cometer crime, liberdade em fraudar, em desviar arma? Que liberdade é essa?” (Augusto e Martins, 2023).

A autorização para o porte de arma chamada de “Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC)” fomentada pelo governo Bolsonaro, praticamente liberou o acesso às armas de praticamente todos os calibres, com exceção das armas automáticas. Qualquer cidadão, sem qualquer treinamento ou perícia com armas, podia ir até um clube de tiro e, após testes muito simples - como atirar contra um alvo com uma espingarda de chumbinho e um exame psicotécnico banal - receber um registro de CAC e comprar armas. E, uma vez compradas, poderia revendê-las para outros CAC ou emprestar seu registro para criminosos adquirirem armas pesadas. Jamais se vira no país tal “liberdade”. Entre 2019 e 2022, 1.354.751 novos armamentos entraram em circulação no país (Oliveira, 2023), sem contar os ilegais sem registro.

Nesse processo, um clube de tiro ensinava até crianças a atirar (Leal, 2023), contrariando as normas existentes de proteção da criança e do adolescente e qualquer senso de civilidade. Lamentavelmente, como resultado da sociabilidade extremista da era Bolsonaro, ocorreram no país ataques armados às escolas, vitimando e ferindo crianças, adolescentes e professores, sendo que mais da metade dos atentados aconteceu nos últimos 4 anos (Bond, 2023). O governo respondeu criando um grupo de trabalho (GT) formado pelos ministérios da Educação, Justiça e Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania, e Secretaria-Geral da Presidência (Brasil de Fato, 2023). Grupos extremistas atuam com a cooptação de crianças e adolescentes, que “acontece preferencialmente online, em fóruns, chats de vídeos e de jogos online como Minecraft, Roblox e Fortnite, além de outros espaços de discussão” (Pires, 2022). A atuação governamental, com uso de inteligência para detectar esses grupos e indivíduos antes que a ação ocorra, é fundamental. Todavia, apenas ela é insuficiente, sendo necessário criar ou fortalecer sociabilidades que desmobilizem o extremismo e recebam os jovens, o que não pode ser feito exclusivamente de cima para baixo.

Os espaços da sociabilidade bolsonarista (clubes de tiro, clubes demotociclistas, igrejas fundamentalistas etc.) não vão ser enfraquecidos e desmobilizados somente por ações que partem da institucionalidade governamental. Ações das organizações de esquerda, como partidos, movimentos, sindicatos e associações devem se ampliar e disputar a cultura popular e os espaços de sociabilidade; em suma, as mentes e os corações do povo. Os governos passam, mas as organizações na sociedade civil ficam, são mais duradouras, não se limitam a mandatos de 4 anos e devem ser criadas e fortalecidas.

O Ministério da Justiça comandado por Dino fez importantes avanços. Em 9 de julho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, comparou os professores a traficantes de drogas em um ato pró-armamentista que aconteceu no DF. Dino ordenou à Polícia Federal que analisasse os discursos proferidos no evento, com o objetivo de “identificar indícios de eventuais crimes, notadamente incitações ou apologias a atos criminosos” (Dino, 2023). Os professores têm sido atacados como “doutrinadores” pela extrema-direita há pelo menos uma década. Além do Ministério da Justiça, vários sindicatos de professores do ensino básico e do superior abriram processos contra o deputado. Essa reação é fundamental, mas não pode se limitar ao âmbito jurídico. O combate à extrema-direita deve descer ao chão da vida das pessoas simples e disputar o senso comum.

Outro avanço importante se refere à investigação do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, ativista e socióloga Marielle Franco (Partido Socialismo e Liberdade - PSOL), morta em 14 de março de 2018. O Ministério da Justiça conseguiu avançar nas investigações e prender o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, que confessou ter dirigido o carro usado no atentado e confirmou que o ex-PM Ronnie Lessa foi o atirador. Lessa apontou o deputado Chiquinho Brazão como mandante.

Em relação aos envolvidos no 08 de janeiro, a PF prendeu sete membros da cúpula da Polícia Militar do DF (PM-DF), inclusive o comandante-geral, que é suspeito de omissão nos atos golpistas. Os policiais teriam contribuído para que os bolsonaristas conseguissem entrar nos prédios dos Três Poderes (Carta Capital, 2023). Embora ações assim sejam urgentes, debelar a extensa bolsonarização das polícias demanda uma ampla reformulação das polícias como um todo.

Ainda em relação ao combate ao extremismo, não temos mais espaço para abordar em detalhe, mas merecem menção a identificação e análise de 220 atos do ex-presidente Bolsonaro considerados nocivos à democracia e ao sistema de garantia de direitos pela Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL) em parceria com a Fundação Rosa de Luxemburgo, da Alemanha, envolvendo 25 pesquisadores (Sampaio, 2023).

Além disso, merecem menção as ações do ministro Silvio de Almeida, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. Almeida já tinha se destacado como intelectual pelos seus estudos publicados sobre a questão do direito em Jean-Paul Sartre e Georg Lukács e sobre o racismo. Durante a pandemia do COVID-19, Almeida foi um defensor do Sistema Único de Saúde (SUS) e, enquanto ministro, defendeu a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Agência Senado, 2023). Almeida tem se distinguido por assumir a responsabi lidade do Estado na violência que viceja historicamente na sociedade brasileira." [eliminar párrafo]" Além disso, merecem menção as ações do ministro Silvio de Almeida, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. Almeida já tinha se destacado como intelectual pelos seus estudos publicados sobre a questão do direito em Jean-Paul Sartre e Georg Lukács e sobre o racismo. Durante a pandemia do COVID-19, Almeida foi um defensor do Sistema Único de Saúde (SUS) e, enquanto ministro, defendeu a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Agência Senado, 2023). Almeida tem se distinguido por assumir a responsabi lidade do Estado na violência que viceja historicamente na sociedade brasileira.

Como vimos no tópico anterior, parte de setores importantes da economia nacional esteve diretamente envolvida no 08 de janeiro. Estes mesmos setores formam lobby e estão bem representados no Congresso Nacional. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), “flerta” com os setores mais radicalizados do agronegócio, da mineração e do garimpo, que procuram avançar sobre as terras indígenas. Um exemplo eloquente de Lira foi a articulação para aprovar, em 30 de maio de 2023, o Projeto de Lei 490/2007 do chamado marco temporal, que estabelece “uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição” (Agência Câmara, 2023), favorecendo aqueles setores que são a base social do bolsonarismo.

Recentemente, o Presidente Lula comentou a relação política com Lira:

Arthur Lira é nosso adversário político desde que o PT foi fundado. Ele era nosso adversário e vai continuar sendo adversário […] Ele não está aqui como Arthur Lira; ele está aqui como presidente de uma instituição que o Poder Executivo precisa mais dela do que ela do Poder Executivo. Não é Lira que precisa de mim. Eu é que mando os projetos feitos pelos ministros, pela sociedade. Eu é que preciso dele para colocar em votação. (Universo Online, 2023)

Pode-se interpretar a afirmação de Lula como pragmática e conciliatória com os setores econômicos representados por Lira. A aproximação com setores econômicos hegemônicos tem marcado a articulação em torno das principais reformas encabeçadas pelo governo até agora. Com o novo arcabouço fiscal, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), tem arrancado elogios de representantes pragmáticos do mercado financeiro e bancário (Osakabe, 2023; Serrano e Caldeira, 2023). A reforma tributária, à qual Haddad tem igualmente se dedicado, pode ser esfacelada se conduzida pela conciliação com as oligarquias partidárias do Congresso Nacional e deixar de contribuir decisivamente para solucionar uma questão fundamental e histórica do Brasil: a imensa desigualdade social reafirmada na distorção de que os pobres pagam mais impostos que os ricos —uma das contradições que dão vida à extremadireita—. A conciliação pode custar a instituição de impostos progressivos e a taxação dos lucros e dividendos dos ricos, e acabar jogando mais água no moinho do extremismo, que se beneficia do discurso antiplutocrático.

É fundamental considerar que “o bolsonarismo teve vitórias significativas nas eleições para o Congresso Nacional, para as assembleias estaduais e governos de estado, constituindo-se como força política incontornável no jogo político, com importante presença política e institucional” (Maciel, 2023). Assim, a visão “institucionalizante” de Lula se mostra problemática, porque as instituições não são neutras, seguem e seguirão em acirrada disputa. O Ministério da Defesa, se não fosse ocupado por um conservador como José Múcio, poderia ladear o Ministério da Justiça no combate ao extremismo e seria fundamental para sanear as Forças Armadas do bolsonarismo e da fascistização. É uma contradição o fato de que o governo se baseia sobretudo na ação institucional, mas, ao mesmo tempo, não disputa as instituições em profundidade.

A política de aproximação ou aliança com setores da burguesia tendea enfraquecer a luta contra o golpismo nacional que está entremeado em partes significativas do capitalismo e da institucionalidade estatal. Apesar das penalidades aplicadas e das prisões, os ânimos da extremadireita não dão indicações de que vão se arrefecer. Um canto entoado por mulheres presas pelos ataques aos prédios dos Três Poderes no 8 de janeiro, quando saíam da Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF), conhecida como “Colmeia”, é uma amostra de como vão os ânimos dos extremistas: “Viva, família! Vamos voltando! A temporada na Colmeia está acabando. Nossa prisão foi ilegal e fere os princípios da CF [Constituição Federal] nacional. Olê, olê, olê, olê. Fui para a Colmeia, foi por mim e por você. Olê, olê, olê, olê. Voltei para a casa para a verdade aparecer” (Santos, 2023).

Conclusão

Após a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, do fracasso da tentativa de golpe em 2023, da inelegibilidade do ex-presidente até 2030 e do avanço das investigações que podem prendê-lo a extrema-direita está procurando se reorganizar reestabelecendo a efetividade de seus instrumentos, como a fábrica de notícias falsas (fake news) que impulsionou vigorosamente a campanha eleitoral vitoriosa nas eleições de 2018, e encontrar um novo líder. O extremismo nacional conta com boas e numerosas trincheiras no estado e na sociedade civil para a sua rearticulação. Tudo isso não será combatido e derrotado se o governo Lula e a esquerda apostarem apenas na institucionalidade e se pautarem pelo imediatismo das lutas mais urgentes. É necessária uma preparação organizacional de fôlego, pensada para médio e longo prazo e para além das eleições, para derrotar a extrema-direita que se transformou em uma força incontornável de hoje e do futuro a bom prazo. Cada espaço da sociedade e do estado deve ser disputado e tomado —um por um— da extrema-direita. E o malfadado golpe de 2023 entra para a história como mais uma tentativa do autoritarismo nacional de tomar e deter o poder de forma ditatorial.

Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves

Doctor en Historia. Profesor del Curso de Historia de la Universidad Estadual de Goiás (UEG) y del Programa de Posgrado en Historia (PPGHIS). Autor de los libros: Los juristas orgánicos de la Dictadura y la Revista Brasileña de Filosofía (1964-1968); (2022) y La restauración conservadora de la filosofía: el Instituto Brasileño de Filosofía y la autocracia burguesa en Brasil (1949-1964); (2020). Líder del Grupo de Investigación en Historia, Intelectuales e Ideologías (GPHII).

Segundo Antonio Gramsci, o subversionismo reacionário corresponde ao subversivismo popular das classes subalternas, incapazes de se situar historicamente, de compreender o Estado e, consequentemente, de possuírem consciência de classe. Para Gramsci, essa modalidade de subversionismo é muito comum entre classes intermediárias e baixas que são moral e intelectualmente decadentes. Essas classes se voltam para a direita nos momentos decisivos da história e sua “‘coragem’ desesperada” (Gramsci, 2002, p. 191) sempre prefere ter os aparatos armados do Estado (polícias e exército) como aliados. No lugar de um espírito nacional e estatal em sentido moderno, essas classes adotam o chauvinismo. (Gramsci, 2002, p. 189-193) Na política, a exemplo de Mussolini, o subversivismo reacionário se caracteriza por um “blanquismo” distorcido, isto é, por tentativas de golpes de mão que não visam uma revolução (como Louis-Auguste Blanqui visava), mas, ao contrário, uma reação. Segundo Gramsci, o “blanquismo” de Mussolini se viu reduzido à “materialidade da minoria dominadora e do uso das armas no ataque violento. O enquadramento da ação da minoria no movimento do massas e o processo que faz da revolta o meio para uma transformação das relações sociais, tudo isso tinha desaparecido.” (Gramsci, 1977, p. 312) Para Gramsci, os burgueses se viam atemorizados e espantados diante de Mussolini, ao mesmo tempo que colocavam ao seu serviço “uma espécie de novo monstro, [supostamente] revolucionador de situações reais e criador de história. Nada é mais falso.” (Gramsci, 1977, p. 313). Pode-se dizer que no contexto brasileiro, o “novo monstro” da burguesia corresponde ao “messias salvador” dos subalternos, no interior do fenômeno do subversivismo reacionário.

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