Publicado

2017-01-01

Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo

On Values and Norms Hilary Putnam and the Search for Consensus between Moral Obligation and Relativism

DOI:

https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147

Palabras clave:

H. Putnam, J. Habermas, moral, relativismo, valores (pt)
H. Putnam, J. Habermas, morality, relativism, values (en)

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  • Carlos Roberto Bueno Ferreira Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Analisa-se a possibilidade de conciliar o ceticismo diante das teorias morais e a ideia de que a filosofia moral é o tribunal supremo de toda justificativa moral. As máximas universalmente válidas não podem ser tomadas como mandamentos descritivos nem cair num relativismo individualista. H. Putmann procura desconstruir a separação habermasiana entre valores e normas, e mostra a necessidade dessa conciliação.
The article analyzes the possibility of reconciling skepticism with moral theories and the idea that moral philosophy is the supreme arbiter of all moral justification. We cannot take universally valid maxims as descriptive rules nor can we fall into an individualistic relativism. H. Putnam seeks to deconstruct Habermas’ separation of values and norms, and, in doing so, he shows the need for such a reconciliation.

Sobre valores e normas

Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo

On Values and Norms

Hilary Putnam and the Search for Consensus
between Moral Obligation and Relativism

Carlos Roberto Bueno Ferreira

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Porto Alegre - Brasil

 

RESUMO

Analisa-se a possibilidade de conciliar o ceticismo diante das teorias morais e a ideia de que a filosofia moral é o tribunal supremo de toda justificativa moral. As máximas universalmente válidas não podem ser tomadas como mandamentos descritivos nem cair num relativismo individualista. H. Putmann procura desconstruir a separação habermasiana entre valores e normas, e mostra a necessidade dessa conciliação.

Palavras-chave: H. Putmann, J. Habermas, moral, relativismo, valores.

ABSTRACT

The article analyzes the possibility of reconciling skepticism with moral theories and the idea that moral philosophy is the supreme arbiter of all moral justification. We cannot take universally valid maxims as descriptive rules nor can we fall into an individualistic relativism. H. Putnam seeks to deconstruct Habermas’ separation of values and norms, and, in doing so, he shows the need for such a reconciliation.

Keywords: H. Putnam, J. Habermas, morality, relativism, values.

Introdução

Gostaríamos de pensar que há um meio-termo entre o ceticismo dos que são contra teorias morais e acham, portanto, que a filosofia moral deveria ser substituída por outra área do conhecimento (como a antropologia cultural ou a psicologia experimental) e a posição insustentável de que a filosofia moral é o tribunal supremo de toda justificação moral. Essa posição parte de pensarmos em uma filosofia moral como participante de destaque no processo de investigação moral, contudo sem que se incorra em um modelo de seleção de valores fixos e apriori.

Se, por um lado, a posição da moral metafísica de Kant resta enfraquecida na sociedade liberal moderna, por outro, a disseminação atual da “naturalização/relativização” da moral cobra um preço alto.

No capítulo intitulado “Value sand Norms”, de seu livro The Collapse of the Fact. Value Dichotomy and Other Essays (2002), Hilary Putnam busca traçar o verdadeiro papel dos “valores” na construção/seleção das “normas”. Utilizando como argumentação a Teoria da Ação Comunicativa, Putnam tenta desconstruir a abrupta separação entre valores e normas presente na obra de Habermas.

Não nos parece razoável defender-se que normas universais do tipo kantianas possam esgotar toda a ética objetiva, tampouco podemos dizer que os valores são meras contingências decorrentes das histórias de seus respectivos “mundos da vida”.

Normas e valores estão interligados, assim como fatos e valores são indissociáveis. Nossas máximas universalmente válidas, sejam elas poucas, sejam muitas, contêm conceitos éticos estritos e, portanto, não podem ser tomadas por mandamentos meramente descritivos do que deveria ser a correta conduta moral. Tampouco podemos cair no relativismo de considerar que cada lei somente possui validade conforme a valoração individual de cada destinatário. Por isso, é necessário um meio-termo entre a vinculação normativa absoluta e o relativismo.

Como podemos observar, estamos tratando de uma abordagem linguística sobre o que é valore como ele compõe nossas máximas e leis.

Putnam cita uma famosa passagem de Quine para reforçar que o “tecido de sentenças legado pelos nossos pais é cinza; branco com convenção e preto com fato, contudo não há razões substanciais para concluir que existam fios pretos nem brancos” (Quine 406; cit. em Putnam 2002 118). Isso reforça que esse tecido, que representa a nossa realidade, não pode ser claramente dissociado em fios pretos (fatos) e brancos (convenção). É justamente essa indissociação que Putnam tenta provar alegando o entanglement entre fato e valor. Comecemos, então, pelo que o autor convencionou chamar de entrelaçamento fato-valor.

O entrelaçamento fato-valor

Segundo Putnam, não se sustenta uma divisão pura entre fato e convenção; mesmo os empiristas devem conceder que a ciência pressupõe valores, experiências e convenções. Embora conseguíssemos separar o significado de “valor” de uma concepção estritamente ética, podemos verificar que a ciência ainda pressupõe valores epistêmicos.

O pragmatismo clássico sustenta que valor e normatividade são parte de toda a experiência humana. Assim, não seria concebível que a ciência buscasse se despir de quaisquer julgamentos de valor, porquanto estes fazem parte essencial da produção científica em si. Julgamentos de valor não são somente os que decorrem de avaliações éticas ou morais, mas também os que convencionam a coerência, a razoabilidade e a racionalidade.

Existem, portanto, valores epistêmicos e valores éticos. Valores éticos seriam os expressos em verdades normativas como: “roubar é errado”; valores epistêmicos seriam valores que nos guiam na escolha entre hipóteses sobre a visão correta de mundo (coerência, simplicidade etc.). Valores epistêmicos estariam entrelaçados com a observação objetiva. Isso, contudo, não significa que objetividade seja sinônimo de valor epistêmico.

A matemática, segundo Putnam, é um exemplo de descrição objetiva sem que haja um objeto (cf. Putnam 1998; 2002). É preciso deixar de pensar em objetividade de maneira puramente descritiva. A linguagem nos permite descrever o mundo em que vivemos, porém essa não é sua única função. Ela também nos permite questionar a própria forma como vemos o mundo.

O entrelaçamento entre fato e valor não é somente perceptível no caso dos valores epistêmicos. Ele fica ainda mais evidente se tomarmos conceitos ético sem contextos linguísticos. O vocabulário necessário para que um positivista lógico descreva seus “fatos” é uma ínfima parte do arcabouço comunicativo que nós, como seres humanos, desenvolvemos para a simples tarefa de interação social.

Putnam utiliza a palavra cruel para demonstrar na prática a indissociação entre fato e valor. Tomemos a seguinte frase: “O governador é cruel”. Podemos verificar que, ao mesmo tempo, foi feita uma crítica ao governador como pessoa e como administrador público. Em todo caso, poderíamos ter dividido a frase em dois contextos semânticos, um relacionado à atuação do governador como pessoa e outro se referindo à sua atitude como administrador, da seguinte forma: “ele é um governador cruel, mas uma ótima pessoa” (Putnam 2002 23).

Ainda, não podemos negar que se faça uma assertiva meramente descritiva utilizando a palavra cruel, como é o caso de um historiador que escreveu que certo imperador fora cruel com seus inimigos. Não há uma separação nítida entre os predicados usados em uma enunciação fática e os decorrentes de um juízo de valor. Nas palavras de Putnam:

“Cruel” simplesmente ignora a suposta dicotomia fato/valor e alegremente se permite ser usado às vezes com propósito normativo e às vezes como termo descritivo (de fato, o mesmo é verdade para o termo “crime”). Na literatura, tais conceitos são frequentemente referidos como “thick ethical concepts”. (2002 35)

Os predicados que podem ser usados simultaneamente para servir a ambos os fins –factuais-descritivos e valorativos– têm sido chamados de conceitos éticos estritos (thick ethical concepts) em contraposição aos conceitos éticos tênues (thin ethical concepts). Como exemplos de conceitos estritos, temos as palavras honestidade, justiça, fome, crime etc. Em suma, podemos dizer que conceitos éticos estritos possuem, ao mesmo tempo, um grau semântico e um conteúdo descritivo, e representam, dessa forma, contraprovas à instalação da dicotomia fato-valor.

Os empiristas que defendem a dicotomia fato-valor decerto refutam essa constatação. Os não cognitivistas negam que existam conceitos éticos estritos ao afirmarem que se tratam de meros conceitos factuais, sem implicações éticas ou normativas. Assim, ao dizer que alguém é valente, por exemplo, estamos diante de uma descrição (metafisicamente descomprometida) de um mero fato natural.

Outro argumento é que, caso existissem esses conceitos estritos, eles sempre seriam fatoráveis ou decomponíveis em uma descrição puramente atitudinal, desprovida de conteúdo valorativo. Assim, cruel representaria uma característica imputada a alguém, e não um juízo de valor acerca da pessoa. O juízo de valor seria uma significação que somente existiria pela perspectiva do locutor. Certamente isso não se sustenta.

Facilmente podemos identificar que as implicações da utilização da palavra cruel não podem ser reduzidas na definição: “aquele que causa grande sofrimento”. Da mesma forma, “sofrimento” não significa somente “dor”, nem “grande” pode ser definido com “quantidade elevada”. Devemos, ainda, considerar o contexto, o que deixa a análise ainda mais complexa e reforça o entrelaçamento entre fato e valor.

Putnam exemplifica que antes da invenção da anestesia um médico, ao realizar uma cirurgia, causava um “grande sofrimento” para o paciente, mas, ainda assim, não podemos dizer que se trata de um ato de crueldade (cf. 1990 82). A solução não cognitivista de ignorar a natureza ética e normativa de determinadas palavras não parece ser resposta válida para o problema apresentado, mas sim uma tentativa desesperada de manter viva a dicotomia fato-valor por meio de argumentos diferentes.

Para os empiristas clássicos, um “fato” era, no fundo, somente algo traduzível em uma impressão sensível, e a teoria humeana servia de base para que se pudesse apontar uma dualidade entre o que “era” e o que “deveria ser”. Na modernidade, o empirismo foi substituído pelo positivismo lógico e pelas teorias de significado verificáveis, que fortificou a dicotomia entre fatos e valores (cf. Putnam 1990 87).

Essa transição não levou a um enfraquecimento da dicotomia fato-valor, mas sim se buscou justificar tal dualidade por meio de outros argumentos. Hoje, não estamos muito longe disso. Em que pese não mais se aceitar alguns dos velhos argumentos, correntes de pensamento como o relativismo não são senão novas formas nas quais podemos visualizar semelhantes dicotomias.

No fisicalismo, por exemplo, o que se defende é a existência de um conceito absoluto do que é o mundo. A premissa é que existiriam verdades independentes de perspectivas e observadores. Assim, cria-se uma dualidade entre o que “realmente é o caso” e aquilo que depende da perspectiva de outros (cf. Putnam 1990 90).

Essa posição não nega que sentenças éticas podem ser verdadeiras ou falsas, mas afirma que elas não possam ser verdadeiras ou falsas independentemente de uma visão perspectiva de mundo. Por isso, tal posição teve de passar a se chamar relativismo ao invés de não cognitivismo.

Sejam elas posturas decorrentes de um posicionamento mais não cognitivista, sejam de uma doutrina relativista, podemos constatar que existem razões que nos tentam a pensar de forma dicotômica quando nos referimos a fatos e valores. Como pudemos ver ao longo da evolução teórica, a dicotomia fato-valor sempre encontrou uma maneira de permanecer vigorando.

Mas quais são esses motivos que ainda nos levam a traçar essa linha divisória? Primeiramente, existe a tendência de colocarmos os julgamentos valorativos fora da esfera da razão.Com efeito, é muito mais simples rotularmos algo como um “julgamento de valor” e, portanto, classificarmos com apenas uma impressão subjetiva de alguém do que fazer uma apreciação metafísica do que realmente somos, tentando verificar quais as implicações que resultam da valoração de uma determinada situação de fato.

Esse exercício socrático de avaliarmos nossas convicções íntimas e testá-las em face da experimentação reflexiva com o compromisso de resolvermos nossas questões éticas não é um procedimento que desejemos a todo momento na nossa vida prática. Não há nada de errado nisso. Entretanto, podemos verificar que a utilização concreta da dicotomia fato-valor funciona como uma forma de “cortador de assunto”. Quando A diz uma frase, B pode simplesmente assumir que o que foi dito é meramente a opinião de A e terminar o diálogo ali mesmo.

Devemos resistir à justificação de que existe uma explicação metafísica sobre a possibilidade do conhecimento ético. Ora, a ideia de se procurar explicar o conhecimento ético normativo em termos absolutos é, em si, um absurdo. Ademais, o fato de não se poder encontrar definições em termos absolutos para conceitos eticamente estritos somente corrobora com a teoria de Putnam do entrelaçamento entre fato e valor.

A solução, portanto, não pode ser uma que envolva conceitos inexoráveis nem distinções filosóficas que sejam dirigidas à formação de dicotomias. Não devemos desistir da discussão racional nem procurar um conceito “absoluto” que seja aplicado somente em determinados contextos que afastam situações difíceis.

Em conclusão, podemos dizer que somos tentados por várias razões a manter essa separação abrupta entre o que é fático-objetivo e o que é valorativo-subjetivo. Seja por motivos de ordem prática, funcional, seja por comodidade filosófica, a busca por um conceito absoluto não pode sobrepujar os contextos e os valores simplesmente para manter sua completude. Para Putnam, a solução deve sempre ser buscada de forma democrática, cooperativa e falível.

Valores e normas

Assim como na dicotomia fato-valor, Putnam não aceita com facilidade a ideia de uma separação abrupta entre valores e normas. De tudo que foi dito até aqui, não se poderia esperar que o autor se posicionasse de forma diversa. Contudo, a questão levantada passa a ser a possibilidade de normas universais do tipo kantiana poderem exaurir o que é eticamente objetivo.

Para abordar o assunto, Putnam utiliza-se do posicionamento de Jürgen Habermas, segundo o qual, haveria uma separação entre o que é valor e o que é norma (cf. Putnam 2002 108-132).

Por “norma”, Habermas define uma obrigação universalmente válida, formada com base na racionalidade comunicativa. “Valores”, por sua vez, seriam vistos de uma maneira naturalística, como produtos sociais contingentes dos mais variáveis “mundos da vida”. Em outras palavras, as normas informam as decisões com relação ao que se deve fazer, os valores informam as decisões com relação a que conduta é mais desejável (cf. Habermas 1995 114-115).

Para Habermas, existe basicamente uma norma de obediência universal: a norma da ação comunicativa. Na referida teoria habermasiana, a ação comunicativa representa a comunicação baseada no ideal do discurso racional e, assim, seria governada por normas de sinceridade, verdade e não manipulação.

Isso não significa que a norma da ação comunicativa seja a única que possua validade ética universal. A ação comunicativa é justamente o processo pelo qual serão selecionadas todas as demais normas de obediência universal.

Putnam confidencia que, em um de seus diálogos com Habermas, o referido filósofo europeu teria dito que: “[n]ós precisamos de alguns imperativos categóricos, mas não muitos” (2002 114). Isso significa que Habermas busca que se faça uma diferenciação entre o que é moralmente pouco aconselhável e o que é incondicionalmente errado.

Normas, sendo afirmações deontológicas universais, devem ser uma seleção básica de imperativos, uma constituição democrática que não contenha um número muito amplo de mandamentos, sob pena de se acabar em um conjunto autoritário de obrigações. Por isso, Habermas teme a abundância de imperativos categóricos e anuncia que a única norma universal é a norma da ação comunicativa.

Outros filósofos contemporâneos tentaram salvar Kant da acusação de formalismo vazio. John Rawls (1997), Chistine Korsgaard (1996) e Barbara Herman (2001) tentaram acrescentar conteúdo ético para recuperar essa abordagem kantiana instrumental. Habermas, embora não negue a inspiração da obra de Kant, escolheu um caminho um pouco diferente ao assumir que a discordância ética é um fato da vida e não pode ser afastada de forma definitiva. É absurda a ideia de que a filosofia tem o dever de nos apresentar uma solução categorizante de todos os nossos dissensos morais e éticos.

Nesse sentido, a posição de Habermas pode ser vista como um meio-termo, pois coloca a filosofia como um participante de importância e destaque nas discussões éticas, sem que se faça passar por um tribunal moral autoritário. Ao invés de entregar um sistema moral com uma seleção definitiva de condutas morais, Habermas propõe uma única regra que funciona como procedimento para determinar como se resolverão nossas disputas e desacordos morais (cf. 1991 137). Nas palavras de Putnam, Habermas seria uma espécie de “filósofo moral kantiano minimalista” (cf. 2002 108).

Entretanto, mesmo diante dessa abordagem menos categorizante, o que Putnam não consegue aceitar é a divisão entre valores e normas, pois entende que normas kantianas universais não são capazes de esgotar o que é objetivamente ético; além disso, existe algo a mais nos “valores” que as meras contingências determinadas pelos diversos “mundos da vida”.

A norma da ação comunicativa requer que defendamos nossos “valores” por meio do procedimento deliberativo. Isso significa fundamentalmente que devemos considerar os outros sempre como fins, nunca como meios. Somente valores que passarem pela prova da razão comunicativa serão legitimados.

Putnam escreve que, certa feita, foi desafiado por Habermas a apontar um exemplo de “valor” que não fosse representativo apenas da preferência individual ou coletiva dentro de “mundos da vida”. A resposta de Putnam foi que “[e]ra preferível um mundo no qual existem uma variedade de concepções moralmente permissíveis de prosperidade humana que um mundo no qual todos concordam com apenas uma concepção” (2002 112).

Embora diversidade de ideias não seja uma norma em termos habermasianos, Putnam argumenta que um mundo regido pela diversidade é melhor que um no qual tudo já tenha sido acordado. Dessa forma, valores não precisam ser gerais de tal sorte que formem normas universalmente imponíveis. Valores e normas são interconectados, mas não há motivos para crer que certos valores específicos tenham de se tornar universais de tal maneira que sejam elevados a um consenso absoluto.

Segundo Putnam, essa confusão pode ser observada na obra de Christine Korsgaard. Percebe-se um padrão de rejeição do realismo valorativo substantivo em autores que se consideram kantianos. No caso de Korsgaard, em seu entendimento da obra de Kant, ela não considera que os objetos das nossas inclinações sejam bons ou maus em si mesmos. Nós não desejamos coisas porque as percebemos como boas, mas nossa atração inicial por elas é um impulso psicológico natural (cf. Korsgaard 1998 52).

Assim, nossas inclinações não são ainda valores. Tampouco nossa atração inicial por elas é uma valoração. Somente consideramos os valores quando adotamos as máximas (leis) que nos determinam o que valoraremos ou não, ou mesmo que nos determinem a agir de acordo com esses valores.

Para Korsgaard, na teoria de Kant, nossos valores são criados por materiais psicológicos pelas bases naturais de interesses, e assim não poderia a razão ser guiada for fins substanciais. De acordo com esse posicionamento, somente existe um princípio da razão prática: o princípio de que devemos escolher nossas máximas como leis universais (cf. Korsgaard 1996 60).

Putnam percebe que mesmo as máximas às quais decidimos nos submeter de forma universal contêm termos valorativos. Esses termos são quase sempre thick ethical terms. Termos como cruel, sensível, humilhante, bondade e justiça. Máximas como “evitar crueldade” ou “maximizar a bondade” já possuem um caráter valorativo. Da mesma maneira que na dicotomia fato-valor, na relação entre normas e valores, existem sentenças que não podem ser fatoradas em componentes “valorativos” e outros meramente “descritivos”.

Esse problema é inerente à abordagem kantiana. Conforme se pôde notar do trabalho de Korsgaard, os kantianos buscam princípios característicos da própria razão prática, tratando valores como inclinações ou fatos psicológicos. Essa postura desesperada de tentar manter a utilização da dicotomia inclinação-razão não permite que se veja a maneira como os termos éticos estritos desafiam todas as dicotomias entre fato-valor (cf. Putnam 2002 130).

Essa simples constatação não só afasta a possibilidade de normas puras (livres de conteúdo valorativo) como cria um novo problema: se as nossas máximas contêm conceitos ético estritos, torná-las universalmente válidas vai se tornar uma “dor de cabeça” proporcional ao conteúdo ético de cada um desses termos. Isso significa que as leis que são reguladas pela minha razão podem manter certa universalidade formal, contudo o seu conteúdo não pode ser determinado sem uma dose de relativismo.

Putnam adverte que, embora o desejo de se “naturalizar” a ética esteja muito difundido, o preço que se paga é alto. Os naturalistas costumam negar que as sentenças éticas exprimem julgamentos independentes. Para eles, a ética é tratada como algo relativo que deve ser justificado de fora.

Assim, na abordagem naturalista, a ética pode ser justificada pela evolução natural (como no exemplo do altruísmo como evolução social para a manutenção da espécie), pelo utilitarismo (a exemplo dos julgamentos éticos que consideram a maximização da utilidade) ou mesmo pelo contratualismo (no caso da seleção de princípios éticos como pressupostos de imparcialidade).

Essa estratégia sedutora, argumenta Putnam, é a mesma que levou ao positivismo lógico. Dá-se ao cético tudo que ele deseja menos o mínimo necessário para que eu possa seguir em controle dos meus próprios sentidos. Assim, esse mínimo garantirá que possamos continuar com a ideia de conhecimento predicativo e, consequentemente, possamos fazer ciência.

Conclusão

Muito embora Putnam não considere Habermas um positivista nem um reducionista, tampouco um naturalista, o desejo de tratar todos os discursos sobre valores fora dos limites estreitos do discurso moral, como se fossem negociações entre “mundos da vida”, é, no fundo, uma motivação positivista.

Para Putnam, Habermas deveria restringir a reivindicação da ética do discurso. Se Habermas concordasse em dizer que a ética do discurso é uma parte da ética, uma parte importante e distinta da ética, contudo não uma que possa se sustentar sozinha sobre tudo, ele estaria mais próximo de conseguir alcançar o meio-termo que se está propondo neste trabalho.

Aceitar que valores éticos sejam racionalmente discutidos e, portanto, não necessitem ser relativizados não é a mesma coisa que tomar valores aprioristicamente ou mesmo de forma autoritária. O receio de soar metafísico nos leva a uma abordagem cautelosa em busca de um meio-termo.

Putnam aduz que, desde que a sociedade liberal afastou a obediência autoritária em normas divinas, temos participado de uma ética falibilista. Dizer que existe mais que a ética do discurso não desmerece a importância da ética do discurso.

Esse meio-termo que buscamos entre mandamentos metafísicos e meros relativismos deve ser a base para a teoria moral que embasa nossas normas.

Putnam conclui o capítulo alegando que, na ética, nós precisamos tanto de insights aristotélicos como de inspirações kantianas. Embora esse meio-termo entre Aristóteles e Kant não seja uma missão das mais fáceis, não é difícil simpatizar com a ideia de buscar, em nossa imperfeita capacidade de reconhecer as exigências feitas sobre nós (pelos mais variados valores), aquilo que provê conteúdo à ética.

Referências

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Bueno Ferreira, C. R. «Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo». Ideas y Valores, vol. 66, n.º 163, enero de 2017, pp. 261-7, doi:10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147.

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[1]
Bueno Ferreira, C.R. 2017. Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo. Ideas y Valores. 66, 163 (ene. 2017), 261–271. DOI:https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147.

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Bueno Ferreira, C. R. Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo. Ideas Valores 2017, 66, 261-271.

APA

Bueno Ferreira, C. R. (2017). Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo. Ideas y Valores, 66(163), 261–271. https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147

ABNT

BUENO FERREIRA, C. R. Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo. Ideas y Valores, [S. l.], v. 66, n. 163, p. 261–271, 2017. DOI: 10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/idval/article/view/50147. Acesso em: 25 abr. 2024.

Chicago

Bueno Ferreira, Carlos Roberto. 2017. «Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo». Ideas Y Valores 66 (163):261-71. https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147.

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Bueno Ferreira, C. R. (2017) «Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo», Ideas y Valores, 66(163), pp. 261–271. doi: 10.15446/ideasyvalores.v66n163.50147.

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[1]
C. R. Bueno Ferreira, «Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo», Ideas Valores, vol. 66, n.º 163, pp. 261–271, ene. 2017.

Turabian

Bueno Ferreira, Carlos Roberto. «Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo». Ideas y Valores 66, no. 163 (enero 1, 2017): 261–271. Accedido abril 25, 2024. https://revistas.unal.edu.co/index.php/idval/article/view/50147.

Vancouver

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Bueno Ferreira CR. Sobre valores e normas Hilary Putnam e a busca de um meio-termo entre a vinculação moral e o relativismo. Ideas Valores [Internet]. 1 de enero de 2017 [citado 25 de abril de 2024];66(163):261-7. Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/idval/article/view/50147

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