Artigo de pesquisa
Islândia: o florescimento da ilha peruana na fronteira
Islandia: the blossoming of the Peruvian island at the border
Islandia: el florecimiento de la isla peruana en la frontera
Editores: Nohora Carvajal, Carlos Zárate Fecha de envío: 2017-04-29 Devuelto para revisiones: 2017-06-26 Fecha de aceptación: 2017-07-26 Como citar este artigo: De Souza, A.S. Nascimento & De Oliveira, J.A. (2017). Islândia: o florescimento da ilha peruana na fronteira. Mundo Amazónico, 8(2): e64514.https://doi.org/10.15446/ma.v8n2.64514 |
Alex Sandro Nascimento de Souza1, José Aldemir de Oliveira2
1Alex Sandro Nascimento de Souza. Mestre em Geografia da Universidade Federal do Amazonas; doutorando pelo curso de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas; Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas em Tabatinga (UEA/CSTB).alexgeobc@hotmail.com
2José Aldemir de Oliveira. Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Amazonas.
j-aldemir@uol.com.br
Resumo
A partir de uma perspectiva pautada na análise do cotidiano nas cidades de fronteira, apresenta-se breve estudo e reflexões sobre Islândia no Peru. Localizada precisamente às margens do rio Javari no lado oposto a Benjamin Constant (Brasil), essa cidade amazônica vem apresentando proeminência urbanística na destacada fronteira. Nos últimos dez anos a expressão "fronteiras vivas", oriunda de uma política de ocupação das fronteiras do governo peruano, no sentido de povoar como direito efetivo da posse do território, se concretiza na cidade acima citada com implemento de obras urbanísticas, como feira municipal, área comercial, escolas de tempo integral e internato, ginásio esportivo e novas passarelas de concreto. No que tange à engenharia de várzea e o direito a cidade, Islândia se sobressai nos últimos anos às demais cidades da fronteira.
Palavras-chave: fronteira; urbanismo; Amazônia; engenharia, várzea.
Islandia: the blossoming of the Peruvian island at the border
Abstract
This paper focuses upon a place called the Vertical Village, a building in the center of Rio de Janeiro inhabited exclusively by indigenous peoples from different ethnic groups belonging to different parts of the country. In this paper, we discuss questions related to the experience of being indigenous in a city, the construction of a residential space as a village, and the constitution of indigenous identity in the urban context. Following the paths of three inhabitants of the building, the questions considered emerge from their transiting between cities and villages, frontiers either real or imaginary, prejudices and expectations of indigenous identity.
Keywords: frontier; urbanism; Amazon; engineering; floodplain.
Islandia: el florecimiento de la isla peruana en la frontera
Resumen
Desde una perspectiva guiada por el análisis diario en las ciudades fronterizas, se presenta un breve estudio y reflexiones sobre Islandia, en Perú. Situada a orillas del río Yavarí, frente a Benjamin Constant (Brasil), esta ciudad amazónica ha adquirido protagonismo urbano en esta zona fronteriza. Durante la última década la expresión "fronteras vivas", procedente de una política de ocupación de las fronteras del gobierno peruano como un derecho efectivo de posesión del territorio de las personas, se concretiza en la mencionada ciudad con la implementación de obras urbanísticas como el mercado municipal, escuelas de tiempo integral e internado, centro de deportes y nuevas vías de concreto. En cuanto a la ingeniería de la várzea y el derecho a la ciudad, Islandia destaca en los últimos años frente a otras ciudades fronterizas.
Palabras clave: frontera; urbanismo; Amazonia; ingeniería,várzea.
Islândia e o cotidiano amazônico na fronteira
Islândia: florescimento urbanístico na fronteira Amazônica
O presente artigo é um desdobramento de pesquisas iniciadas com dissertação de mestrado e tese de doutoramento em um contexto de estudos sobre cidades, rede urbana, comércio e fronteira. Nesse aspecto da aproximação do entendimento da dinâmica de cidades localizadas em áreas de fronteiras, vislumbra-se descrição das formas e equipamentos urbanos com base em registros visuais, fotografias da cidade peruana. Dividiu-se o artigo em dois momentos: na primeira parte, com o subtítulo "Islândia e o cotidiano amazônico na fronteira", a partir de informações coletadas entre 2012 e 2014, tratamos de descrever as formas urbanas e aspectos da vivência cotidiana na cidade em destaque; já na segunda parte, com o subtítulo "Islândia: florescimento urbanístico na fronteira Amazônica", a partir de informações coletadas entre 2015 e início de 2017, se realiza descrição de mudanças e transformações nas formas e nos equipamentos urbanos de Islândia e seu possível destaque regional.
Islândia, como o nome já denota, é uma pequena ilha peruana localizada na fronteira Brasil–Peru, acercada pelas águas do rio Javari. Um sítio urbano que se estabelece em um terreno de várzea. Toda a área em que se assenta a cidade fica completamente submersa nos longos períodos de enchente amazônica. Tal peculiaridade na região lhe confere o pseudônimo de "Veneza peruana" ou "Veneza do Javari".
Essa cidade não apresenta tanto glamour quanto a cidade europeia, entretanto transborda de especificidades amazônicas, habitada por uma população que resiste ao tempo e às adversidades econômicas, sociais e ambientais. Com uma engenharia de várzea, em determinados momentos tortuosas, vem se adaptando e resistindo às intempéries da floresta, da geografia e da hidrografia Amazônica.
Enquanto suas pares de fronteira nos últimos anos se agonizam em caos urbanístico de ruas esburacadas e degradação de espaços públicos, vinculadas a engodos políticos que geralmente se referem às dificuldades de implemento de obras devido às constantes chuvas e enchentes, Islândia destoa da aparente inércia paralítica na fronteira. Nos últimos anos, essa cidade tem demonstrado que é possível ir além, que a vida depende do rio, mas este não a comanda, que é possível se livrar do cativeiro da terra, de que se pode vencer os obstáculos ouvindo as vozes e conhecimentos da Amazônia.
Islândia apesar de se localizar na periferia geográfica de um Estado-Nação, de se situar em um ambiente de fronteira que envolve controle e disputas territoriais que transcendem os poderes do Estado, em um ambiente de migrações e de vidas voláteis, é um lugar cheio de vida, de culturas e modos de vidas específicas, que cultivam esperança no direito a dignidade, a um presente e futuro social possível.
Islândia: o florescimento da ilha peruana na fronteira
Como diria Bertha Becker (2013) em "A urbe amazônida", os núcleos urbanos foram as pontas de lança para a ocupação do território, pequenos aglomerados com poder mais simbólico do que efetivo, mas que garantiram sua posse. Esses aglomerados, como salienta a autora, viveram "surtos econômicos", mas não promoveram o desenvolvimento regional. O município de Islândia se localiza no extremo sudeste do Peru, na zona distrital de Loreto, se enquadra nesse cenário de fronteira vinculado à perspectiva de ocupação, no caso inicial ao surto econômico da borracha amazônico, porém, como as demais cidades viveram longos períodos de esquecimento político e agonia econômica.
Como o próprio nome sugere, sua configuração geográfica é de ilha, circundada pelos rios Solimões e Javari, na fronteira com o Brasil. Possui aproximadamente 3.000 (três mil) habitantes, de acordo com informações cedidas pela prefeitura municipal de Islândia.
Figura 1. Localização da cidade de Islândia (Peru) e Benjamin Constant (Brasil). Fonte: Souza (2015: p.114).
Em linhas gerais, a literatura, com seus debates e refutações, dimensiona as cidades localizadas em áreas de fronteira como cidades gêmeas, cidades pares ou cidades vizinhas, cidades onde se materializa o ilegal social e econômico, o mundo de periferia, o tráfico de drogas e o ócio (Aponte 2012; Zárate 2008). Considera-se para esse estudo essas cidades como pares ou cidades vizinhas, pois apresentam peculiaridades em suas formações históricas, obedecem a lógicas globais econômicas, porém atingidas em diferentes proporções por suas respectivas políticas de governo e seus agentes internos de produção do espaço, mas que vão além de percepções e de agendas políticas, pois apresentam também outras dimensões e formas de resistência de vidas amazônicas (Martins 2012; Calvino 1990).
De forma sucinta podemos visualizar o cenário da ilha turística peruana por meio de um fragmento de texto cedido pela prefeitura de Islândia:
Nesse fragmento de texto cedido pela prefeitura de Islândia percebemos claramente imbuído o sentimento patriótico de representar a nação, apesar das dificuldades com relação aos serviços públicos (saúde, educação, comunicação, falta de profissionais), a distância da metrópole e a visão contrastante dos equipamentos urbanos com relação a Benjamin Constant. Na figura 1 denota-se a ligação econômica regional com Iquitos, de forma concisa explicita parcialmente o circuito comercial dos equipamentos e produtos que abastecem Islândia, bem como Benjamin Constant.
O acesso brasileiro ao município ocorre via fluvial. O trajeto de Benjamin Constant a Islândia realiza-se por meio de pequenas embarcações denominadas de “catraias” ou “canoão”, grandes canoas com motor de popa de baixa potência (o rabeta), cobertas com lona de plástico, palha ou zinco, com capacidade “segura” para aproximadamente onze passageiros, sem coletes salva-vidas.
Apesar de ser uma área de fronteira, nessa trajetória as fiscalizações são esporádicas, quase inexistentes. Porém isso não significa que a travessia seja realizada sem regras. Existem acordos locais quanto ao transporte de passageiros, que são realizados pelas associações de “catraieiros” (os senhores que pilotam as catraias) de ambos os países. Os acordos estipulam normas e restrições, como por exemplo, as canoas devem ser sinalizadas com bandeiras de ambos os países, os catraieiros só podem efetivar a travessia comercial entre as cidades se estiverem associados a uma das duas associações existentes nos respectivos países, e com a permissão de somente levarem os passageiros até o país de destino. O retorno do passageiro só pode ser realizado por outra catraia do país em que o passageiro se encontrar, salvo nas exceções de frete. A passagem de uma viagem custa hodierno (janeiro de 2017), no valor da moeda fronteiriça, a média de R$ 4,00 (quatro reais). Atualmente existem aproximadamente vinte catraieiros associados em Benjamin Constant, que fazem uma média diária de quinze viagens com passageiros, o que caracteriza a paisagem entre as cidades em um vai e vem contínuo de pequenas embarcações.
Com a marcha lenta da catraia e o som característico que elas produzem, o que se visualiza de dentro delas é uma paisagem com balsas e flutuantes (comerciais e residenciais) que vão delineando a margem do rio. Ressalta-se que são nessas balsas e flutuantes de origem peruana, que se disponibilizam produtos de preço acessível de grande relevância no abastecimento econômico da cidade de Benjamin Constant, os materiais de construção (zinco, ferro, cimento), no transporte (gasolina, motocicletas, motocarros), os materiais de pesca (linhas de pesca, malhadeiras, rabetas), bebidas em geral (refrigerantes, cervejas) e materiais de panificação (trigo, fermento).
No período da vazante dos rios Javari e Solimões, temos a impressão que existe uma continuidade de casas flutuantes que se interligam de ambos os lados (Brasil e Peru). Porém, com um olhar mais aproximado, percebemos que existe uma descontinuidade e desproporcionalidade de casas comerciais flutuantes, ou seja, o rio Javari promove a cisão entre os dois territórios. No período inicial da pesquisa (2012-2013), contabilizou-se aproximadamente cinquenta e sete casas flutuantes comerciais do lado peruano e apenas quatro casas flutuantes comerciais do lado brasileiro.
Figura 2. Estabelecimentos comerciais flutuantes peruanos em frente a Benjamin Constant. Fonte: Souza (2015: p.49).
Na figura acima, se observa no canto direito inferior a cidade Benjamin Constant (Brasil). Acima, no canto esquerdo, uma serraria de Islândia e no centro da imagem, na confluência dos rios Javari e Solimões, situam-se as casas flutuantes comerciais de origem peruana. Somente nesse perímetro concentram-se aproximadamente trinta e duas casas comerciais flutuantes. Quanto maior a proximidade da cidade de Benjamin Constant, maior a quantidade de casas flutuantes peruanas. Isso porque a demanda de consumo, dos objetos, utensílios, produtos e equipamentos disponibilizados nas referidas casas comerciais flutuantes é oriunda predominantemente da cidade de Benjamin Constant.
Em Benjamin Constant (Brasil), a maior parte das mercadorias de origem não brasileiras é adquirida principalmente nas casas comerciais flutuantes que se localizam ao longo do rio Javari nas imediações de Islândia (Peru), as quais são abastecidas por grandes embarcações que fazem periodicamente o eixo fluvial Iquitos/Islândia. Nesse mesmo âmbito, existe também uma parcela significativa de comerciantes que mantém contatos com parentes ou fornecedores empresários que adquirem essas mercadorias em Iquitos e mandam por meio das referidas embarcações.
Os comerciantes trabalham no limiar da (i)legalidade, pois se deve ter cautela na forma como as mercadorias entram definitivamente em Benjamin Constant. Apesar da fiscalização não ser permanente, já houve muitos casos de apreensão de mercadorias, principalmente quando se trata de grandes volumes de cargas em materiais de construção e gasolina, o que significa grandes prejuízos considerando as pequenas dimensões econômicas desses comerciantes.
A manobra realizada pelos comerciantes peruanos, brasileiros e população em geral mantêm um padrão. As mercadorias são adquiridas nas casas comerciais flutuantes e transportadas nos denominados “canoãos” ou “rabeta” de Islândia até Benjamin Constant (10-15 min. de navegação). Eles atracam nas margens do rio e as mercadorias rapidamente são desembarcadas. Simultaneamente as mercadorias são desembarcadas e embarcadas nos denominados “motocarros”, motocicletas que possuem uma carroça acoplada na traseira. Esses veículos também são adquiridos nas casas flutuantes de Islândia a preço acessível aproximadamente R$ 5.000,00 (cinco mil reais), preço bem inferior se adquirido em Manaus que custa em média R$ 8.000,00 (oito mil reais), no período da referida pesquisa (2012-2013). Salienta-se que os motoristas que dirigem esses veículos são em suma da própria cidade e fazem parte de associação organizada com presidente, vice-presidente, tesoureiro, secretário. Trabalham com tabela de preços para transportar mercadorias em área urbana, área rural e ou intraurbana (de Benjamin Constant a Atalaia do Norte).
Ao longo da margem do rio nas proximidades de Islândia, nos interstícios da floresta surgem serrarias e movelarias ativas, com centenas de metros cúbicos de madeira in natura amarradas dentro do rio ou empilhadas nas grandes balsas. Salienta-se que a mão de obra empregada nessas madeireiras de Islândia é em suma oriunda da cidade de Benjamin Constant.
Lentamente a cidade de Islândia vai surgindo relevando uma paisagem com palafitas, casas suspensas de madeira, igreja, torre de telefonia, rádio, e hotel, formas predominantes em cidades amazônicas ou “cidades na selva” (Oliveira 2000). A priori imagina-se que sejam somente as estruturas da orla de Islândia que apresentam essa característica de suspensão. Entretanto, quanto mais o visitante se aproxima do local, a surpresa se torna maior. Seja nas margens do rio ou adentrando o perímetro urbano todas as casas, ruas (passarelas) e instituições foram construídas acima do nível das enchentes do rio.
A sazonalidade do rio em certa intensidade molda a vida do citadino de Islândia, o cotidiano que se realiza de acordo com a enchente e a vazante dos rios Solimões e Javari. Percebe-se um estilo de vida que se adapta e modifica as condições das intempéries amazônicas, pode-se encontrar na cidade tanto um pequeno cassino de jogos de azar como vendedores de “peixe seco” e comidas típicas, bem como homens e mulheres do grupo religioso israelita com suas vestimentas diferenciadas.
Na estrutura das construções, percebe-se claramente a preocupação com a enchente do rio, todas apresentam praticamente o mesmo nível de altura, aproximadamente quatro a cinco metros acima do nível do terreno de várzea. O que predomina na cidade são residências feitas de madeira, palafitas bem alongadas, em contraste com as instituições municipais construídas de alvenaria. As residências são construídas de acordo com as passarelas, as quais são sensivelmente mais altas do que as residências, em virtude das últimas enchentes extrapolarem os níveis anteriores. As passarelas são feitas de alvenaria, e ou madeira com largura de aproximadamente dois metros e meio, com corrimão em ambos os lados, sem grade de proteção.
O diferencial está no fato das passarelas corresponderem às ruas de uma cidade típica atual. As passarelas de alvenaria delineiam as áreas próximas ao rio, ou seja, são as ruas centrais que recepcionam os visitantes. Ao longo dessas passarelas vão se anexando pequenas pontes que saem das casas ou algumas residências se constituem uma espécie de alongamento de ligação com as mesmas. Nas áreas relativamente mais afastadas da orla predominam passarelas de madeira, com início de construção de alvenaria. De acordo com a prefeitura, há um projeto em andamento para se alongarem as passarelas de alvenaria para todas as áreas da cidade.
No período de 2012 a 2014 a referida cidade conta com as seguintes instituições: prefeitura, hospital, uma escola, uma delegacia, empresa de telecomunicação, uma termelétrica, duas igrejas, cassino e pequena área comercial. Salienta-se que já existem obras em construção que futuramente constituirão banco internacional, escola municipal, e área de atendimento ao turista.
A prefeitura composta por prefeito e vereadores é o centro distrital de cinquenta e oito comunidades distribuídas ao longo do rio Javari e Solimões. As instituições atendem a população da área urbana e das comunidades próximas, assim como peruanos que residem em Benjamin Constant. Entretanto, brasileiros que busquem auxílio no hospital local pagam pelos serviços prestados.
A igreja que se localiza na passarela de frente da cidade é de origem católica. Porém, adentrando a cidade podemos encontrar também a igreja do grupo religioso israelita, que é construída em madeira. Não há registro de outras igrejas. Na área comercial, a passarela ganha contornos improvisados, se alongando com complemento de madeira até a porta dos comércios. Nesses estabelecimentos encontram-se produtos diversos, em geral importados, brinquedos, roupas, calçados, perfumes, entre outros artigos do lar. Esses estabelecimentos têm características similares aos estabelecimentos peruanos que se encontram em Benjamin Constant, se fixam na área portuária e utilizam qualquer espaço como vitrine comercial. Salienta-se que dificilmente se encontram brasileiros vendendo nessas áreas comerciais. Existe também um pequeno cassino que contém de oito a dez máquinas caça-níquel, que são uma alternativa de diversão e lazer na região.
Em área relativamente afastada, encontra-se a termelétrica da cidade, que tem potencial insuficiente para atender a demanda e só dispõe dos serviços em horários preestabelecidos pela prefeitura. De acordo com informações dos moradores, funciona no turno matutino das 06:00 às 10:00 horas e no noturno das 19:00 às 24:00 horas. Entretanto, alguns estabelecimentos comerciais possuem geradores próprios. Ressalta-se que existe um projeto ou acordo em andamento entre as prefeituras para que a cidade de Benjamin Constant forneça eletricidade à cidade de Islândia (Souza 2015).
Nesse contexto, os produtos congelados como frangos, carnes, linguiças e outros não podem ser armazenados na referida cidade por muito tempo e são adquiridos periodicamente na cidade de Benjamin Constant.
No ir e vir das pessoas em Islândia é comum encontrar crianças, jovens, adultos, principalmente de origens Tikuna. São pescadores, agricultores, comerciantes, israelitas, estrangeiros (brasileiros, colombianos, estadunidenses, canadenses). No período da vazante, podem-se encontrar jovens que jogam futebol no final de tarde com a camisa da seleção brasileira e agora também da seleção argentina.
Nos pequenos restaurantes encontram-se uma variedade de comidas típicas como: ceviche, lomo saltado, arroz chaufa, chicharrón, entre outros. Encontram-se à noite com facilidade bancas de churrasco com predominância do frango e peixe, se encontra também comidas típicas como o fañi (frango ou carne com arroz, condimentos, enrolados em palha e cozidos em fogo a lenha). Essas bancas de churrasco se situam concentradas principalmente nas passarelas imediatas ao rio, mas também são encontradas algumas mais adentro da cidade. Vale ressaltar que essa culinária rica em ingredientes amazônicos e exógenos são um atrativo para a população daquela região, bem como de forasteiros de outras nacionalidades, como descrito anteriormente.
Naquela cidade de fronteira também é comum a presença de pessoas oriundas de Tabatinga, Benjamin Constant e Atalaia do Norte (cidades brasileiras). Essas pessoas que buscam lazer aos finais de semana e feriados, uma espécie de turismo pendular que aprecia o cardápio variado na culinária e bebidas peruanas.
Islândia uma cidade de várzea com peculiaridades amazônicas em desenvolvimento vem se preparando para novas realidades políticas e econômicas, desponta nas práticas comerciais da região, visualiza uma demanda turística fronteiriça e serve como entreposto de mercadorias destinadas a Benjamin Constant.
Islândia: florescimento urbanístico na fronteira Amazônica
A partir de pesquisas de campo realizadas nos períodos de 2012 a 2014, e recentemente nos anos de 2016 e 2017 se percebem visualmente mudanças significativas no cenário urbanístico da cidade peruana. Essas mudanças que envolvem uma engenharia de várzea surpreendente se sobressaem na área de fronteira Brasil–Peru. Atualmente Islândia concretiza planos urbanísticos como a substituição total das passarelas principais de madeira pelas de alvenaria, além do prolongamento e ajuste das mesmas para área mais distantes, promovendo o aumento do perímetro urbano da cidade.
Figura 3. Novas passarelas em Islândia. Fonte: Souza (pesquisa de campo, janeiro de 2017).
Outro detalhe no prolongamento e substituição das passarelas está na adaptação das mesmas ao nível máximo que as últimas enchentes atingiram. Note que na imagem acima, a passarela que desvia à direita da principal, eleva-se quase que um metro. Com melhor detalhe na figura abaixo, que também representa o ginásio escolar desportivo.
Figura 4. Novas passarelas em Islândia e ginásio esportivo. Fonte: Souza, pesquisa de campo (janeiro de 2017).
Há que se considerar as dimensões do ginásio que é poliesportivo: voleibol, futsal, handbol e basquetebol. Com telas de proteção por todos os lados para evitar que a bola saia do perímetro e possivelmente caia nas águas do rio. Outro detalhe, além da boa fundação, se verifica o sistema de esgoto e o armazenamento da água, que é um problema geral na cidade suspensa. As novas instituições já apresentam essa preocupação com a fragilidade local e oferecem melhores condições de tratamento de esgoto e abastecimento da água, utilizando-se também da água da chuva.
Figura 5. Escola de tempo integral e internato em Islândia. Fonte: Souza (pesquisa de campo, janeiro de 2017).
Na figura acima se identificam à direita a casa dos professores, ao centro duas caixas de armazenamento de água, à esquerda a escola para o Ensino Médio e ao fundo esquerdo o Internato. De acordo com moradores da cidade, essas escolas visam ao atendimento prioritário da população de crianças peruanas que residem nas comunidades peruanas e de crianças peruanas que residem em Benjamin Constant. As escolas e internato contam com dormitórios para as crianças e também para os professores que são majoritariamente de Caballococha e Iquitos.
De acordo com uma professora que se apresentava no local, a escola funciona de seis em seis meses e atende os níveis equivalentes no Brasil de Ensino Fundamental e Médio com implemento recente ao Ensino Médio, que não havia anteriormente na cidade, ou seja, os jovens que desejavam avançar nos estudos tinham que ir para Benjamin Constant ou Tabatinga. Geralmente os mais adultos se direcionavam para estas cidades devido à questão de atividade no comércio.
Outro âmbito a destacar no que tange ao urbanismo é exatamente a construção de áreas comerciais de melhor organização. Identificaram-se atualmente os denominados Mercado Municipal de Islândia, que atende aos produtores agrícolas, e o Centro Comercial de Islândia, uma área de comércio de produtos industrializados.
Situada na rua imediata à passarela que delineia a margem do rio, precisamente no lado esquerdo da igreja católica, o mercado municipal foi construído de madeira, apresenta tons improvisados, subdividido espacialmente por pequeno boxe comercial, por bancas de madeira envelhecidas, bem como por produtos agrícolas expostos ao chão da feira. Encontram-se frutas e verduras produzidas localmente, peixes e carnes (frescos e secos na salmoura). Ressalte-se que no período de 2012 a 2014 identificamos que não havia esse local específico de comercialização, e que frutas, verduras, carnes e peixes eram expostos em qualquer lugar, rua, esquina de Islândia.
Figura 6. Mercado municipal de Islândia.Fonte: Souza (pesquisa de campo, janeiro de 2017).
Verificou-se também a nova área comercial de produtos industrializados, com perímetro construído em alvenaria, subdividido em aproximadamente quinze boxes comerciais de produtos importados adquiridos em geral em Iquitos. Apresenta organização espacial padrão no interior das lojas, com aproveitamento de todo espaço como vitrine de exposição, equipamentos organizados em prateleira, dependurados em paredes, teto, ou organizados ao longo do chão do estabelecimento.
Figura 7. Centro comercial de Islândia Fonte: Souza (pesquisa de campo, janeiro de 2017).Figura 7. Centro comercial de Islândia. Fonte: Souza (pesquisa de campo, janeiro de 2017).
De acordo com moradores locais e representantes da prefeitura há outros projetos de melhorias urbanísticas de Islândia, como por exemplo construção de uma praça em frente à prefeitura, local que atualmente é utilizado como campo de futebol nos períodos em que as águas fluviais permitem.
Para além da descrição do visível de aparatos urbanos de uma cidade localizada na fronteira é possível sentir e viver outras dimensões que se metamorfoseiam no tempo e no espaço. De acordo com Martins: “[…] nesse conflito, a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade [e como ele mesmo salienta], é isso que faz dela uma realidade singular” (2012: p. 133), na qual se verificam conflitos e tolerância com o outro, num espaço relativo que você também se insere como o outro simultaneamente, pois na faixa de fronteira estudada é frequente estar aqui e estar lá, ou estar lá e estar aqui sejam espacialmente ou temporalmente.
As relações multiculturais e as multiterritorialidades inferidas por Costa (2010) se dinamizam em um espaço poroso. Nesse sentido podemos evidenciá-las na cultura, nos costumes alimentares e no idioma. Nessas cidades fronteiriças em que se realizou a presente pesquisa é comum crianças, jovens e adultos arriscarem um portunhol (mistura de português com espanhol). O contato frequente entre comerciantes, políticos, médicos, pedreiros, carpinteiros, borracheiros e outras atividades permite e contribui para esse conhecimento. De forma bem generalizada a população local na culinária tem como ingrediente principal em suas receitas a utilização da banana, que, aliás, não é a “pacovão”, como na capital do estado do Amazonas, que é conhecida na região como “banana peruana”. Também há como costume o consumo no café da manhã do patacón ou patacão (expressão adaptada pelos moradores), rodelas de bananas peruanas amassadas e fritas. No Dicionário Amazonês de Sérgio Freire (2011), que seleciona expressões e termos usados no Amazonas, encontramos a palavra curite, que significa dindim ou sacolé em outras regiões do Brasil. Esse termo adaptado do idioma peruano é usado na região do Alto Solimões: sucos de fruta congelados em pequenas sacolas de plástico são conhecidos como curite. O consumo e o preparo de ceviche, lomo saltado, chicharrón, comidas típicas peruanas que envolvem os ingredientes peixes e carnes se tornaram comum em Benjamin Constant e nas demais cidades fronteiriças. Também fazem parte da prática nas cidades de fronteira o consumo destes alimentos e a influência musical dos vallenatos, ritmos dançantes peruanos e colombianos que está presente nos bares, boates e lares da cidade na fronteira. Além, do consumo de bebidas como o pisco, a cerveja Cusqueña
, a Pilsen (origem peruana), Brahma, Itaipava (Brasil) e Águila (Colômbia), um consumo transfronteiriço.No contexto das práticas realizadas no cotidiano em festividades relacionadas ao nacional peruano, uma parcela significativa de peruanos residentes em Benjamin Constant se dirige à Islândia, em que temos como principais atividades festivas a Independência Peruana e a municipalidade distrital de Islândia. Nesses momentos ocorrem programações esportivas que também envolvem atletas de Benjamin Constant e outras cidades brasileiras, bem como desfiles e queima de fogos. Nessas festividades o clima é de tolerância e de convivência pacífica, um clima que vai além de leis e normas de seus respectivos Estados-Nação. E assim a vida segue na fronteira com dilemas, frustrações, litígios, alteridades e resistências.
É comum nos embates teóricos salientar que as cidades localizadas em áreas de fronteiras são o locus do litígio e da tensão. Porém nesses lugares também se encontram em mesma proporção a alteridade e a tolerância com o diferente, com o imigrante, pois dadas as devidas proporções, nas cidades de fronteira a vida é prenhe de multidimensionalidades e multiterritorialidades, onde o ir e vir é constante e a fronteira é a razão de ser e de resistir destas cidades.
Basta observar o cotidiano da beira de rio dessas cidades, em que o tráfego de embarcações pendularmente é constante, ou fazer uma busca nas árvores genealógicas das famílias que compõem esta sociedade de fronteira. Teremos então uma mistura de peruanos e brasileiros, uma miscigenação tribal que é anterior a constituição de Estados-Nação e perpassa pelo surto econômico da borracha (seringueiros e seringalistas), chegando até os dias atuais.
A partir de uma perspectiva pautada na descrição de formas e equipamentos urbanos, tentamos caminhar em linhas gerais no cotidiano de uma cidade na fronteira, cidade esta que apresenta regionalmente um forte comércio, com casas flutuantes comerciais que abastecem as cidades próximas como Benjamin Constant, Tabatinga e Atalaia do Norte, também se prepara para o desenvolvimento com inovações urbanísticas.
Islândia se assemelha a tantas outras cidades amazônicas em meio à floresta, com seu aspecto rústico e caótico é a materialização da periferia de um Estado-Nação. Carrega em seu bojo a carga incongruente e amarga de uma cidade fronteiriça, cidades consideradas de forma geral como o locus da irregularidade, da ilegalidade, do fim de mundo, do tráfico de drogas, da ineficiência das instituições, de cidades sem lei impróprias para a vida.
Todavia, nos últimos anos esta cidade tem demonstrado que é possível ir além, que a vida depende do rio, mas o rio não a comanda. Que é possível se livrar do cativeiro da terra, de que podemos vencer os obstáculos ouvindo as vozes e conhecimentos da Amazônia.
Islândia, apesar de se localizar em um ambiente de fronteira que envolve controle e disputas territoriais, resiste e demonstra que é possível transcender e gozar do direito à cidade e reforçar a esperança no direito à dignidade e a um presente social possível. Nesse sentido, não se trata de atingir o glamour urbano das grandes cidades, mas de ter o mínimo de condições dignas de sobrevivência.
A vida na fronteira em suas múltiplas dimensões resiste e insiste em sonhar com um presente e um futuro possível com dignidade, respeito e salubridade. Islândia, nos últimos tempos, demonstra que é possível o direito à cidade, apesar das intempéries locais e das crises mundiais.
Pronex (Programa de Apoio a Núcleos de Excelência) financiado pela Fapeam – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas e pelo CNPq; Bolsista Capes.
Aponte Mota, J. (2012). Comercio y ocio en la transformación del espacio urbano fronterizo de Leticia y Tabatinga. Em: Zárate Botía, C.G. Espacios urbanos y sociedades transfronterizas en la Amazonia. Leticia: Universidad Nacional de Colombia, Instituto Amazónico de Investigaciones – Imani
Becker, B.K. (2013). A urbe amazônida: a floresta e a cidade Rio de Janeiro: Garamond.
Calvino, Í. (1990). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras.
Costa, R. Haesbaert da. (2010). O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. . 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Freire, Sérgio (2011). Amazonês: expressões e termos usados no Amazonas. Manaus: Valer
Martins, J. de Souza. (2011). Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. 2a ed. São Paulo: Contexto
Oliveira, J.A. de. (2000). Cidades na selva. Manaus: Editora Valer.
Souza, A.S. Nascimento de. (2015). Cidades amazônicas na fronteira Brasil – Peru. Manaus: EDUA.
Zárate Botía, C.G. (2008). Silvícolas, siringueros y agentes estatales: el surgimento de una sociedad transfronteriza en la Amazonia de Brasil, Perú y Colombia, 1880-1932. Leticia: Universidad Nacional de Colombia, Instituto Amazónico de Investigaciones – Imani.