Literatura: teoría, historia, crítica
0123-5931
Universidad Nacional de Colombia
https://doi.org/10.15446/lthc.v25n1.105188

Recibido: 31 de mayo de 2022; Aceptado: 16 de septiembre de 2022

Um poetry slam indígena: a poesia falada no Slam Coalkan

Un poetry slam indígena: la poesía hablada en Slam Coalkan

An Indigenous Poetry Slam: The Spoken Poetry in Slam Coalkan

F. Oliveira de Souza,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil

Resumo

Este artigo está inserido no campo dos estudos da poesia falada, mais especificamente das competições do poetry slam, tomando como caso o Slam Coalkan, primeiro evento indígena mundial nesse formato, realizado em 2021 através de uma parceria entre festivais do Brasil e do Canadá, que reuniu poetas dos hemisférios sul e norte de Abya Yala. A partir de uma observação crítica, este estudo descreve e analisa o referido campeonato, enfatizando a importância da oralidade para as culturas dos povos originários, sendo a protagonista em um contexto como o dos poetry slams. Ancorado em referenciais teóricos sobre literatura indígena, o trabalho pretende ressaltar a necessidade de uma escuta atenta às vozes desses sujeitos historicamente silenciados e marginalizados, que deixam em destaque saberes ancestrais em suas narrativas de luta, emancipação e resistência. Ademais, ao divulgar esse acontecimento inédito, objetiva valorizar e defender a legitimidade da poesia que se produz e circula nos slams.

Palavras-chave

Slam Coalkan, literatura indígena, poetry slam , poesia falada, oralidade.

Abstract

This article inserts itself in the field of spoken poetry studies, more specifically focusing on poetry slam competitions, by studying the case of Slam Coalkan, the first indigenous event of its kind in the world that was held in 2021 through a partnership between Brazilian and Canadian festivals, that brought together poets both from the Southern and Northern hemispheres of Abya Yala. From a critical perspective, this paper describes and analyzes this championship, emphasizing the importance of orality for native cultures, being orality the protagonist in a context as poetry slams. Anchored to a theoretical framework that revolves around indigenous literatures, the work seeks to emphasize the need to listen carefully to the voices of these historically silenced and marginalized subjects who, through their narratives of struggle, emancipation, and resistance, showcase their ancestral knowledge. Furthermore, by publicizing this unprecedented event, the article aims to value and defend the legitimacy of the poetry that is produced and circulated in the slams.

Keywords

Slam Coalkan, indigenous literature, poetry slam, spoken poetry, orality.

Resumen

Este artículo se inserta en el campo de los estudios de la poesía oral, más específicamente el de las competencias de poetry slam, tomando como caso el Slam Coalkan, primer evento indígena a nivel mundial en ese formato, realizado en 2021 a través de una colaboración entre festivales de Brasil y Canadá, que reunió poetas de los hemisferios sur y norte de Abya Yala. A partir de una observación crítica, este estudio describe y analiza dicho campeonato, enfatizando la importancia de la oralidad para las culturas de los pueblos originarios, la cual es la protagonista en un contexto como el de los poetry slams. Anclado en referencias teóricas sobre literatura indígena, el estudio pretende resaltar la necesidad de una atenta escucha a las voces de esos sujetos históricamente silenciados y marginados que ponen de relieve saberes ancestrales en sus narrativas de lucha, emancipación y resistencia. Además, al divulgar este acontecimiento inédito, el artículo hace de su objetivo valorar y defender la legitimidad de la poesía que se produce y circula en los slams.

Palabras clave

Slam Coalkan, literatura indígena, poetry slam , poesía hablada, oralidad.

Introdução

Atualizar nossos saberes ancestrais usando os equipamentos que a sociedade, dita civilizada, criou é a nossa maneira de mostrar que não somos seres do passado, muito menos do futuro. Essa atualização mostra que estamos na Terra para ficar e queremos ensinar nossa maneira de manter o planeta vivo, queremos gritar para o mundo todo que somos parte e que ainda dá tempo de reverter o quadro vermelho de sangue que foi pintado ao longo de nossa história. Ainda dá tempo.

A profecia coalkan, de povos originários de Abya Yala, prevê que haverá o despertar da terra, de um novo mundo e de uma nova consciência quando duas aves se encontrarem: o condor, símbolo do hemisfério Sul, e a águia, do hemisfério Norte. Inspirando-se nessa profecia, a Festa Literária das Periferias (FLUP), que homenageou a palavra falada e completou dez anos em 2021, realizou o Slam Coalkan, competição que reuniu oito poetas indígenas da América do Sul e oito da América do Norte, sendo o primeiro slam indígena do mundo a unir esses povos nesse tipo de campeonato. O evento foi uma parceria entre dois grandes festivais: a FLUP 10 anos (Rio de Janeiro, Brasil) e o 42º Toronto International Festival of Authors (TIFA) (Toronto, Canadá), e aconteceu nos dias 30 e 31 de outubro de 2021. A competição contou com poetas, slammers (poetas de slam), escritores e rappers indígenas de diferentes países do continente que, segundo a curadora do Slam Coalkan, Renata Tupinambá, tomaram “a palavra como encantaria para fazer denúncias, expressar sentimentos, contar histórias, falar da luta, resistência, traumas coloniais, trazer cura e defender a vida na terra” (Tupinambá 17). A partir da observação do inédito Slam Coalkan, este artigo se propõe a apresentá-lo e analisá-lo a fim de refletir sobre os discursos de autorrepresentação produzidos pelos slammers participantes por meio da oralidade nessa disputa de poesia performática em que pudemos ouvir a palavra recriando o mundo e adiando o seu fim (Krenak).

O texto se organiza de modo a oferecer, na primeira parte, alguns dados sobre a FLUP e características gerais do poetry slam. Na seção seguinte, apresenta considerações sobre a oralidade e sua importância e forte presença na cultura e na literatura indígenas, além de sua relação com a escrita. No segmento final, expõe informações mais detalhadas e uma análise do Slam Coalkan, com transcrição do poema “Koya”, do poeta e rapper brasileiro Kandu Puri.

O poetry slam e a palavra falada na FLUP

A Festa Literária das Periferias é celebrada uma vez por ano desde 2012 e realizada em diferentes favelas e regiões da periferia do Rio de Janeiro, capital do estado brasileiro homônimo. A cada edição, vemos o protagonismo de escritoras e escritores de origem periférica, muitos tendo publicado suas obras a partir do incentivo e apoio financeiro desse festival. A FLUP é, portanto, um espaço de visibilidade para esses autores, que não costumam encontrá-lo em eventos mais tradicionais voltados para a literatura brasileira. O festival transcende as páginas de um livro, pois, além de promover variadas mesas de diálogos com escritores, brasileiros e estrangeiros, sempre conta com a presença de convidados que se destacam em sua expressão artística e literária, bem como estudiosos de distintas áreas do conhecimento, nacional e internacionalmente reconhecidos. A programação costuma incluir manifestações culturais que colaboram ainda mais com o enriquecimento da experiência de quem acompanha a festa na íntegra.

A palavra falada e as competições do poetry slam são presença garantida na FLUP, que foi pioneira em formatos diversos. Aliás, há uma característica marcante e comum entre esse evento e os slams brasileiros: a atuação predominante de sujeitos oriundos de periferias, e principalmente dos jovens, criando-se um lugar para valorização de suas potências. Com diferentes enfoques, há alguns anos três campeonatos ajudam a compor esse grande encontro: um voltado para estudantes da educação básica (Ensino Médio) do Rio de Janeiro, chamado Slam Colegial; outro, o FLUP Slam Nacional (que antes era o FLUP Slam BNDES), do qual participam poetas de todo o país; e um último, o Rio Poetry Slam, primeira disputa internacional de poesia falada da América Latina que contou com inúmeros slammers da África, Europa e as Américas.

Outros exemplos de seu pioneirismo com relação aos slams foram vistos em 2020 e 2021. No primeiro ano, ocorreu o Slam Cuír, um aportuguesamento do termo “queer”, do inglês, exclusivo para pessoas da comunidade LGBTQIA +, sejam os competidores, ou os jurados e os slammasters (apresentadores). No ano seguinte, houve uma inovação em três campeonatos de poetry slam. Um deles foi a edição em escala nacional do colegial, o Slam Esperança, abrangendo adolescentes de sete estados do Brasil. O segundo foi o Slam Coalkan, foco deste artigo, primeiro do mundo a reunir poetas indígenas da América do Sul e América do Norte. Por fim, realizou-se o Slam Abya Yala, ou a Copa “América” de Poetry Slam, que contou com treze poetas de países diversos do continente e que será retomado brevemente na última seção deste artigo.

Até chegar à FLUP, os poetry slams percorreram um longo caminho. Como se pode ler em um artigo da atriz e poeta Roberta Estrela D’Alva, o slam de poesia (ou simplesmente slam), como é chamado no Brasil, surgiu em Chicago, nos Estados Unidos, na década de 1980, como uma competição de poesia oral, chegando ao solo brasileiro somente em 2008 através de Estrela D’Alva, junto ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Cabe destacar que ela também está à frente dos mencionados Rio Poetry Slam e Slam Abya Yala, além do SLAM BR —Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. 1

Como em todo campeonato, o slam tem suas regras. Em suas apresentações, os poetas dispõem de até três minutos para performarem poemas que devem ser de autoria própria, sem o auxílio de acompanhamento musical, figurino ou objetos que o ajudem a compor qualquer cenário. Ao final da performance, os participantes recebem uma nota de zero a dez, atribuída por um júri formado por pessoas escolhidas, dentre os próprios espectadores, no dia da disputa. Uma vez que a pontuação deve ser informada imediatamente após cada execução, os jurados não têm muito tempo para refletir sobre o que viram e ouviram, então tomam sua decisão de acordo com o quanto se sentiram impactados com as efêmeras performances no aqui e agora do instante único em que aconteceram (Phelan 93). Aliás, a constante interação entre os poetas e seus interlocutores é o que ajuda a construir os significados de tais performances. Isso significa que um dos elementos centrais dessa poesia oral e performática é a recepção, a “resposta do público” (Zumthor 34).

Como se afirmou anteriormente, o que se pode perceber nessa corrente artístico-literária é um protagonismo de grupos sociais que, em outros espaços de produção das letras e artes, foram (e continuam sendo) silenciados e subalternizados. No contexto dos slams, eles deixam em evidência esses corpos alterizados e postos à margem, compartilhando poesias de resistência por meio das quais buscam reescrever suas histórias e ocupar espaços dos quais foram alijados.

Outro aspecto estrutural do slam é a distribuição das performances em rodadas, que costumam ser a eliminatória, a semifinal e a final. Se as etapas acontecerem em dias diferentes, outros jurados são selecionados preferencialmente minutos antes do início da competição. Cabe ressaltar que eles, bem como os poetas competidores, não precisam ter experiência, publicações ou formação na área para serem considerados aptos à participação. Este é um dado que ajuda a conferir coerência ao que um poetry slam se propõe a ser (e tem sido): uma forma de popularização da poesia. Essa característica é o que faz com que esse esporte da poesia falada, como é considerado, seja tão popular e democrático, aproximando pessoas de todas as idades ao gênero poético, outrora visto como algo inalcançável por muitos daqueles que hoje o produzem.

Por não se exigir dos slammers um tema ou formato específico para seu poema, desde que explorem apenas seu corpo e sua voz, a cada slam podemos observar múltiplos modos de se construir uma performance, com cantos, gritos, sussurros, danças, gestos, entre outros movimentos, que nos permitem enxergar poesia para além das linhas escritas em livros impressos ou eletrônicos. Os slams nos fazem compreender que há várias possibilidades para o fazer poético, e não somente aquelas impostas por uma visão de mundo eurocentrada e colonial. A este respeito, Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo, argumenta:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. (26)

Contrariando o projeto de criação dessa humanidade zumbi de que trata Krenak, os slammers, nos três minutos que lhe cabem, se reinventam a partir das próprias experiências e contam mais uma história —suas histórias— tomando a si mesmos e a seus pares como ponto de partida e de chegada, valorizando a oralidade, embora sem menosprezar a escrita.

Literatura indígena e oralidade

Quando se fala em literatura, é comum que se pense automaticamente em texto escrito, associado a algo que se considera erudito e distante da oralidade, que, por sua vez, costuma ser vinculada ao popular e vulgar. Entretanto, há obras que, pelo diálogo que estabelecem entre ambos os registros, podem ser classificadas como literatura oral, como no caso da poesia dos poetry slams.

A oralidade é igualmente resgatada e valorizada na literatura indígena, mantendo sua relação com a história e a cultura de quem a produz e de seu respectivo povo, a fim de que esses traços se façam presentes na letra impressa. Héloïse Behr divide a literatura indígena no Brasil em três momentos, que não necessariamente correspondem a uma ordem cronológica, podendo ser produzidas concomitantemente. Ditos momentos correspondem a: 1) os mitos transcritos, um trabalho de transposição de mitos indígenas, mas realizado por autores não indígenas; 2) as literaturas didáticas que, como a expressão adianta, estão voltadas para o ensino e são fruto de projetos pedagógicos de Organizações Não Governamentais (ONGs) e instituições de ensino: “uma literatura pedagógica produzida por e para os próprios índios em áreas indígenas, as mais das vezes em cursos de formação para professores indígenas” (267); e 3) a literatura feita por autores indígenas quando estes passam a publicar livros e serem reconhecidos como autores, usando a escrita também como forma de resistência e defesa de sua história e identidade, reconfigurando o imaginário em torno do indígena e fazendo da “história pessoal e [d]o destino coletivo [sua] matéria para a voz-práxis indígena via literatura” (Dorrico 226).

Para Olívio Jekupé, a manutenção dos valores e culturas dos povos indígenas, que vivem em estado de emergência há séculos e resistem ao genocídio desde a chegada do homem branco às suas terras, já significa uma vitória. Nas palavras do escritor,

nossos parentes guaranis, até os dias de hoje, com 500 anos de resistência, ainda falam a língua e vivem ainda as histórias que sempre foram faladas de geração em geração. Isso é uma grande vitória, porque não foi fácil viver 500 anos de massacre e violência e ainda manter a própria cultura. (17)

Nessa argumentação de Jekupé, pode-se notar o valor da oralidade, visto que é por meio dela que as histórias foram persistindo no tempo, atravessando gerações e chegando aos dias correntes. Portanto, a escrita de autores indígenas como Daniel Munduruku, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara, Cristino Wapichana, Jaider Esbell, Márcia Kambeba, para mencionar alguns, não desvaloriza a dimensão oral de suas narrativas.

De acordo com Behr, “a adoção da escrita não distancia das raízes o indígena que escreve: pelo contrário, permite-lhe reafirmar seu legado e tradições” (277). Segundo Jekupé, é através da escrita que eles podem fazer chegar a diferentes partes do mundo os problemas vividos no Brasil diariamente, tais como “terras sendo roubadas, rios sendo destruídos, índios assassinados, índias estupradas” (13), o que é pouco difundido. Por isso, a escrita feita pelos próprios indígenas pode ser vista como uma arma para a defesa desses povos. E isto é o que se fez predominantemente no Slam Coalkan. Ao menos no Brasil, 2 que contou com a participação de poetas da América do Sul, todos enfatizaram esse tema da violência histórica, tanto física, pelo genocídio dos povos originários, quanto simbólica, pelo apagamento de seus valores e conhecimentos. Com bases nesses dados, os poetas indígenas utilizaram a poesia como aliada para a denúncia do massacre que seguem enfrentando desde o período colonial, e que não cessou após os processos de descolonização dos países que compõem a Abya Yala.

Julie Dorrico ressalta que tanto a ancestralidade quanto a violência histórica são utilizadas como instrumentos para autoafirmação, autovalorização e (re)existência dos indígenas por si mesmos, buscando na primeira (ancestralidade) a matéria para sua expressão estética e, na segunda, a matéria para resistência (217, 226). Com isso, sua literatura se torna uma forma de ativismo, de pôr em prática aquilo que defendem, por meio da palavra escrita, porém inspirada na tradição oral, o que não reduz sua qualidade estética, nem a torna menos literatura que as outras. A respeito do tema, Ruth Finnegan chama atenção para o fato de que a presença ou ausência de letramento é um critério bastante usado com o intuito de negar a existência ou a qualidade de uma expressão estético-literária em sociedades predominantemente orais, além de ser útil para substituir expressões pejorativas para tratar de certos grupos sociais. A autora afirma:

Quando se quer fazer uma distinção entre sociedades ou períodos históricos diferentes, um dos critérios comumente usados é o do letramento. Em particular, quando se quer evitar conotações de “primitivo”, “não-civilizado”, “aborígene”, tende-se a elaborar descrições em termos de “não-letrado” ou “pré-letrado”. (“O significado” 61)

Uma vez que estamos submersos em um pensamento colonial e grafocêntrico, uma das consequências dessa crença de que não há literatura nessas sociedades, por não atenderem a um padrão do que se espera de “uma obra literária”, é a subvalorização do que é produzido por sujeitos de culturas não-letradas, de tradição oral, além da inferiorização dessa população. Sua forma de literatura exige um modo de fruição diferente do convencional, com uma intensa troca entre autor e audiência, seu ativo interlocutor. Por isso, “pensar a literatura apenas nos suportes do livro, de modo impresso, desqualifica outros tipos de expressões”. Ademais,

se atribui ao indígena a imagem do “primitivo”, como sendo essencialmente um ser emocional, próximo da natureza, incapaz de distanciar-se e de ver as coisas de forma intelectual. [...] Ao atribuir estas noções herdadas da colonização, reforça-se uma estereotipia discriminadora que não reconhece as diferentes formas de literatura dos diferentes povos na contemporaneidade, literatura esta que inclui suas religiões, mitos, rituais sagrados, cânticos, pensamentos e mesmo a escrita alfabética sob a forma impressa e publicada. (Dorrico 218)

Enquanto não se reconhecer que as obras produzidas no âmbito da tradição oral também são dotadas de qualidade estética, com objetivos que muitas vezes não atendem às preocupações de uma literatura que pretende apartar-se de todo e qualquer traço de oralidade, todo o valor ancestral dessas criações e sua importância para a representação e resistência dos povos originários continuarão sendo menosprezados.

As lideranças e os intelectuais indígenas estão conscientes de que o processo de desconstrução desse modo de pensar e atuar com relação à sua cultura —sendo a literatura um de seus componentes— depende deles, em suas práticas diárias e nos textos produzidos por eles mesmos. Fazendo eco ao que escreveu Sérgio Vaz, “a arte que liberta não pode vir da mão que escraviza” (50), logo serão os próprios escritores indígenas (e não aqueles que sempre os desprezaram) os indivíduos capazes de reverter o quadro de marginalização, minorização, silenciamento e invisibilização no qual se encontram, como fruto do processo de invasão, colonização e exploração da Abya Yala, que deixou como rastro —entre tantos outros— a permanência de um olhar reducionista sobre os verdadeiros donos desse território.

Refletindo sobre esse assunto, Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses ressaltam a importância de nos pautarmos em epistemologias do Sul, que diz respeito à representação de grupos subalternizados, não hegemônicos, e suas histórias a partir da perspectiva daqueles que, por culpa do capitalismo e do colonialismo, foram excluídos do Sul global (geográfico e ideológico). Como definem Restrepo e Rojas,

a colonialidade é um fenômeno histórico muito mais complexo [que o colonialismo] que se estende até nosso presente e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, possibilitando a re-produção de relações de dominação; este padrão de poder não só garante a exploração pelo capital de uns seres humanos por outros a escala mundial, como também a subalternização e obliteração dos conhecimentos, experiências e formas de vida daqueles que são assim dominados e explorados. (15) 3

A literatura indígena, pelas razões já apontadas, é um desses conhecimentos rejeitados e considerados inválidos ou ilegítimos por certos grupos que representam as instâncias de poder de nossa sociedade.

A respeito da presença da oralidade nessa literatura, não há um consenso entre os estudiosos sobre como se deve classificá-la. Encontram-se expressões como literatura oral e oralitura —próximos, mas não exatamente sinônimos— ou oratura. Para outros, o ideal seria tratá-la como poética oral ou, ainda, como tradição oral. Tratando-se de uma poesia apresentada oralmente em uma competição, como no Slam Coalkan, pode-se chamar também de “literatura oral performada” (Finnegan, “The How” 167), mas a discussão será retomada posteriormente.

Em primeiro lugar, é válido mencionar a divisão proposta por Walter Ong para o conceito de oralidade em dois tipos: a “primária”, característica de uma cultura sem “conhecimento da escrita ou da impressão”; e a “secundária”, vinculada à “atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou por outros dispositivos eletrônicos” (19). E é o desenvolvimento desta última, com as transformações na comunicação oral e na maneira de produzir literatura, que propicia o surgimento de novos gêneros poéticos orais. De acordo com Ong, “essa nova oralidade tem semelhanças notáveis com a antiga em sua mística participatória, em seu favorecimento de um sentido comunal, em sua concentração no momento presente” (155), que são elementos fundamentais para um torneio de poetry slam.

Para Lourenço Rosário, essa produção literária focada na oralidade pode ser designada como literatura oral pois, “apesar do aparente paradoxo semântico”, nesta expressão “está contido o essencial, a característica literária de um acto criativo verbal e sua transmissão na oralidade” (52). Enquanto Leda Martins define que “a oralitura é do âmbito da performance, sua âncora”, por meio da qual podemos notar “a presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e constitutivo” (84). A este respeito, a poeta e slammer brasileira Luz Ribeiro, em participação na mesa redonda “Oralidades Insurgentes — a cena poética no Slam Brasil-Angola”, do Festival de Poesia de Lisboa de 2021, afirmou que já escrevia bem antes de chegar aos saraus e aos slams, mas que foi nestes espaços que sua escrita se tornou voz (“Mesa”). Com isso, tornou-se algo bem maior, chegando a muitos mais lugares e ainda mais distantes, cruzando países e continentes e atravessando oceanos. Além disso, é quando ganha voz que ela consegue colocar corpo na escrita, inserindo questões de raça, território, gênero e sexualidade. Luz Ribeiro também defende que a poesia falada do slam é um ato político porque, por meio dela, ouvimos a fala de pessoas que sempre foram silenciadas (e ainda são assim desejadas).

Por sua vez, as poéticas orais, em substituição ao conceito de literatura oral, dão conta de um campo de estudos mais amplo e contemplam “lendas, contos, cantos, histórias de vida contadas e cantadas por indígenas, ribeirinhos, sujeitos situados em quilombos, integrantes de religiões de matriz africana e indígenas” (Przybylski 53). Ainda tratando de nomear o fenômeno, Laura Padilha opta por tradição oral porque o termo “tradição” carrega em si a ideia de que os valores se perpetuam através das gerações (21).

O que se pode perceber em cada uma das expressões mencionadas é que, resguardadas suas particularidades, todas conferem um protagonismo à oralidade e, consequentemente, à performance dos sujeitos que produzem esses textos orais, já que se inserem em um contexto de interlocução com outros indivíduos. Tal interação é a base dos poetry slams, uma vez que os poemas selecionados por seus autores para esses campeonatos são apresentados com o objetivo de interpelar e dialogar com o público presente. A seguir, analisaremos uma dessas competições, com foco em um dos poetas participantes, e destacaremos como os slams revelam oralidades e dicções de autores de uma poesia de autorrepresentação, e oferecem perspectivas decoloniais sobre suas histórias.

Slam Coalkan: a poesia oral e performática de povos originários de Abya Yala

A ideia de resgatar o nome Abya Yala para fazer alusão ao território que conhecemos hoje como América esteve evidente na FLUP 2021, aparecendo de modo explícito em sua programação por meio do Slam Abya Yala. Fruto do Abya Yala Poetry Slam, um projeto independente, a competição contou com treze slammers que representaram países do norte, centro e sul do continente: Argentina, Brasil (com uma poeta de Angola), 4 Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Guatemala, Haiti, México, Peru, República Dominicana e Uruguai. A campeã da disputa, que durou três dias, foi Yaíssa Jiménez, da República Dominicana. Alguns dias antes do campeonato, ocorreu outra importante ação para o movimento em prol da desobediência ao pensamento colonial: o Slam Coalkan, o primeiro slam do mundo a reunir indígenas procedentes de diferentes partes de Abya Yala. Como ressaltou Renata Tupinambá,

os povos originários do mundo possuem saberes antigos e um pacto eterno em defesa da Mãe Terra. No continente invadido e batizado pelo colonizador como América, mas conhecido no Sul como Abya Yala na língua Kuna, que significa “terra madura”, “terra viva”, existem culturas e tradições antigas que carregam profecias sobre a união das diferentes nações indígenas. (17)

Portanto, a ideia de organizar a disputa nesse formato e intitulá-la Slam Coalkan surge a partir de uma dessas profecias, como descrito ao início deste artigo.

A primeira rodada foi promovida pela FLUP e aconteceu na Babilônia, Rio de Janeiro, no dia 30 de outubro de 2021. Essa fase reuniu os poetas Kandu Puri, Wescritor, Oxóssi Karajá, Auritha Tabajara, Ian Wapichana, Edivan Fulni-ô, Brisa Flow e Abigail Llanque; sendo seis do Brasil, um do Chile e uma da Bolívia. 5 Segundo informações da página oficial do TIFA, que promoveu a segunda rodada no dia seguinte, esta etapa contou com seis poetas do Canadá, um do México e um dos Estados Unidos, a saber, Jennifer Alicia Murrin, Juan Santiago Téllez (Juan Sant), Kahsenniyo, Zoey Roy, Sarah Lewis, Bobby Sanchez, K’alii e Ecoaborijanelle (“Slam Coalkan”).

Os poemas performados durante o evento foram reunidos em uma antologia publicada em 31 de maio de 2022. O livro, intitulado Slam Coalkan Performance Poetry: The Condor and the Eagle Meet, foi organizado por Jennifer Murrin e Renata Tupinambá e editado pela Kegedonce Press, uma editora canadense voltada para literatura indígena.

De acordo com as regras da competição, como se tratou de um slam de poesia oral de povos originários, os poetas poderiam se apresentar em sua língua indígena ou em português, inglês ou espanhol. A transcrição dos poemas foi projetada na tela do vídeo —transmitido via YouTube e Facebook— no idioma original em que foram produzidos e foram traduzidos para português e inglês, quando se aplicava. 6 Nem sempre conseguimos ler os textos na íntegra, pois houve alguns atrasos e falhas técnicas, mas funcionou bem na maior parte da exibição.

Além disso, devido ao contexto da pandemia de Covid-19, o slam foi realizado de modo híbrido: quase todos os poetas representando a América do Sul se apresentaram ao vivo em um estúdio, mas o evento foi transmitido remotamente para o público em geral. Estiveram presentes os poetas, cinco jurados, a slammaster, a curadora, o DJ e uma plateia relativamente pequena. Por sua vez, os poetas da América do Norte se apresentaram virtualmente, com gravações prévias que foram projetadas na tela para a slammaster, a DJ e os três jurados que estavam distribuídos em um palco (de teatro ou similar).

Para além de seu formato, o que nos interessa neste artigo é observar que o Slam Coalkan nos oferece mais subsídios para definirmos a poesia que circula nos slams como uma literatura de (re)existência. Isso porque é possível vê-la como “uma prática artística de linguagem que permite aos sujeitos historicamente violentados e discriminados —como negros/as, pobres, homossexuais, indígenas, mulheres— a possibilidade de agência e ressignificação estético-políticas de suas identidades” (Amorim e Silva 173), em um esforço, via literatura, de reescrita de sua própria história.

Da mesma forma, o Slam Coalkan pode ser descrito como um evento decolonial, já que se nota, na atitude de todos os que estão diretamente envolvidos, um movimento de resistência ao modo colonial de apreensão do mundo, de acordo com Ballestrin, e de produção artística e literária. Vale lembrar que, segundo Aníbal Quijano, a colonialidade do poder —que é fruto do colonialismo e que define o capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como padrão de poder hegemônico— influencia ainda hoje a forma de representação da história e da identidade da América Latina. Trata-se de uma “identidade geocultural” (Quijano 221) que foi criada pelos brancos para diferenciar conquistadores e conquistados, classificando-os pela ideia de raça, sempre colocando como subalternos e inferiores os não-brancos. Tal classificação, além de marginalizar esses grupos sociais e suas respectivas culturas e de reprimir seus modos de produzir conhecimento e sentidos, cumpre a função de homogeneizá-los, isto é, de apagar a rica diversidade que os constitui, fazendo com que os vejamos de uma única forma possível.

Partindo de cosmovisões que se opõem a esses discursos dominantes, o Slam Coalkan se configurou como um espaço não apenas de fala, mas também de escuta e de valorização dos poetas de distintos povos originários. Nas histórias que os slammers relataram por meio de suas poesias, eles se dedicaram a problematizar e desconstruir um olhar colonial sobre suas experiências e seus corpos. Com isso, questionaram os estigmas quanto ao seu modo de pensar e de ser, o extermínio e o silenciamento que vêm sofrendo há séculos, bem como o apagamento de suas memórias.

Mantendo uma coerência com esse viés político-ideológico, um dado sobre o Slam Coalkan —e os slams de poesia em geral— que cabe destacar é que, apesar de ser uma competição, ele acaba sendo criado também como um lugar de trocas e de comunhão. Como Estrela D’Alva já apontou em diversas ocasiões, o slam é um evento cujos encontros duram mais de duas horas. Isso quer dizer que dezenas de pessoas (ou centenas, em alguns casos) se reúnem para ouvir outras falarem por todas essas horas e mesmo quem compete passa muito mais tempo escutando os demais. O próprio Marc Kelly Smith, o criador do poetry slam, em um livro com Joe Kraynak, afirma que a essência dessa batalha poética é reunir pessoas em torno da poesia, para apreciarem o poder da palavra falada, e não necessariamente para que os slammers saiam exibindo troféus (10).

Além desse momento de escuta mútua, o slam produz um espaço de autorrepresentação por meio da qual os poetas dessa cena invertem a lógica da outremização, nos termos de Toni Morrison. Eles saem da condição de outros, de objetos narrados, aqueles sobre quem se fala, e assumem a posição de sujeitos da própria narrativa, isto é, a do eu ou nós que fala, que narra a sua história, como argumenta Todorov.

Análise do poema “Koya” e da performance de Kandu Puri

Para observarmos mais concretamente como todas as discussões aqui apresentadas se materializam e se inserem no evento cultural foco deste artigo, apresenta-se a seguir o poema “Koya”, representativo do que significa um slam de poesia e dos debates que se privilegiam nestas competições. O texto foi recitado no Slam Coalkan por Kandu Puri, rapper, poeta e indígena urbano do Rio de Janeiro, que faz parte do povo Puri, originário do Sudeste brasileiro. Além disso, Kandu faz parte do Txemím Puri, grupo de revitalização da língua e cultura Puri (“Kandu Puri”). A transcrição abaixo reproduz na íntegra a legenda elaborada pelos responsáveis do Slam Coalkan na FLUP e transmitida ao vivo em uma tela durante a apresentação do slammer.

“Koya” (“Falar”)

Dizem que começou pela nau e que só assim aqui teve paz

Mas quando vi brancos de Portugal foi que vi morte dos meus ancestrais

Não adianta, só pra branco aqui tá bom desde o império

Eu tava na mata, vem e desmata, sua cidade é o meu cemitério

E amor ao próximo? A história é bem diferente do que eles contam

Aqui não teve um caso de amor, vocês estupraram as Pocahontas

Eu sou Puri pra lembrar que o Brasil não vem da colônia

Coroado Puri Koropo Goytaca os guerreiros da mata atlântica

Aqui meus parentes são brabo, me botou no toco nunca vou esquecer

Até africanos sequestraram pro outro lado enfraquecer

E isso tu não ouve na escola, indígena ou quilombola

tivesse união levava a mente e a gente pra fora dessa gaiola

da bola que rola na copa da Europa que os alemão chegou e fizeram chacota

pra me dizer que 7x1 é a minha maior derrota

pra me dizer que nós te rouba quando usa cota

Tá de marola? Tá de marola? [trecho falado, mas não transcrito]

É que nós te espera a toda hora e não demora

Que esse vento que te trouxe um dia te leva de volta

[A seguir trecho no idioma Kwaytikindo, do povo indígena Puri]

koya koya koya i ah yamoeni dieh ti mun koya i ah?

[Falar falar falar pra mim, o que você vai falar pra mim?]

yamoeni pañike ando ambonam yamoeni tximeon ne pa laman

[Que nós morremos. Que indígena não tem alma]

gayudo gayudo gayudo i ah yamoeni dieh ti mun gayudo i ah?

[Dar dar dar pra mim, o que você vai dar pra mim?]

omi kre ansehon kanjana aretxikuytxi day kambona

[Um pouco de cachaça, mentir na conversa]

brotxen brotxen brotxen i ah yamoeni dieh ti mun brotxen?

[Fazer fazer fazer pra mim, o que você vai fazer?]

brotxen boa i gayudo kapuna omi tupangwara agahon omiñamankonkuzabayuna

[Fazer arma pra dar tiro, uma igreja com um batizado]. (Puri s. p.) 7

Como se pôde ler —e assistir, caso se recorra ao registro do evento— o poema “Koya”, “Falar” em português, foi produzido por Kandu Puri mesclando o português e o kwaytikindo, língua do povo Puri (tronco linguístico macro-jê). Ele não foi o único a promover esse encontro entre a língua dos povos originários e a dos colonizadores, já que Juan Santiago Téllez, do México, também recitou seu poema em espanhol e em totonaca, primeiramente em uma língua e logo repetindo-o na outra. O poema de Kandu representa parte do que encontramos durante toda a competição. Conforme descreve Renata Tupinambá, “no palco, artistas originários que vivem na encruzilhada da favela, periferia e aldeia protagonizam uma retomada dos espaços. Pedem proteção às florestas, justiça pelo genocídio da população indígena urbana e das comunidades” (Tupinambá 17). E é possível ver exemplos disso em fragmentos como “Não adianta, só pra branco aqui tá bom desde o império / Eu tava na mata, vem e desmata, sua cidade é o meu cemitério” (Puri s. p.), em alusão ao referido genocídio dos povos originários pelos colonizadores; e “Eu sou Puri pra lembrar que o Brasil não vem da colônia / Coroado Puri Koropo Goytaca os guerreiros da mata atlântica” (Puri s. p.), como uma forma de exaltar a população indígena, sua ancestralidade e sua resistência à colonização.

Dar ênfase ao seu nome indígena e “lembrar que o Brasil não vem da colônia”, isto é, que já havia habitantes aqui quando os europeus chegaram, são formas de descolonizar seu discurso, ao distanciar-se de uma visão e mesmo de uma nomenclatura que se alinha à imposta pelo colonizador. A respeito desse assunto, em conversa com Jaider Esbell, publicada no YouTube como “Diálogos: Desafios para a decolonialidade”, Krenak argumenta:

A própria coisa de se chamar esse continente de América é de uma rendição absoluta a todo discurso colonialista, porque América vem de Américo, Américo Vespúcio e, quer dizer, vem um veneziano, passou por aqui, pegou uma empreitada na Europa, descobriu o roteiro para chegar aqui e explorar esse continente, e a gente homenageia o cara botando o nome dele num continente assaltado. (Krenak s. p.)

Como fora mencionado diversas vezes, passar a adotar Abya Yala em substituição à América é uma atitude que rompe com essa “rendição” da qual falou Krenak.

Outra forma de descolonizar o pensamento é sair do individualismo estimulado por uma visão moderna/colonial de mundo e investir no coletivo, reivindicando também para si aquilo que faz parte da história de um grupo com o qual se cria uma identificação. A conexão com a ancestralidade faz com que Kandu Puri fale em primeira pessoa do singular, como se fosse uma experiência que ele também tivesse vivido, e não apenas seus antepassados, como se lê nos versos “quando vi brancos de Portugal” e “me botou no toco nunca vou esquecer”. 8 Portanto, trata-se de discursos de autorrepresentação —já que eles mesmos narram e descrevem aquilo que lhes diz respeito— e de representação de uma coletividade da qual eles fazem parte.

Essa autorrepresentação, que deixa em destaque o ponto de vista de quem está do lado de dentro, é fundamental para ressignificar o discurso que ainda predomina sobre os povos originários, pois, como afirmam Oliveira e Candau,

o colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos. Opera-se, então, a naturalização do imaginário do invasor europeu. (19)

Tal naturalização traz, como consequência, a deslegitimação do imaginário daqueles grupos sociais que foram marginalizados, invisibilizados e silenciados.

Vale a pena destacar, ainda, alguns elementos característicos da forma do poema, cujo estilo se compõe de modo a se adaptar ao contexto, isto é, para estar de acordo com o formato da competição que define um tempo máximo de três minutos para cada performance. Além desse limite temporal, o registro oral e, mais especificamente, esse gênero que é a poesia-slam demandam do slammer estratégias diferentes das que seriam adotadas para um texto escrito, tais como: o ritmo e a duração de cada verso, conferindo-lhes rima em diversos momentos, o que auxilia (tanto o poeta quanto o público) no processo de memorização do poema; a entonação, responsável por enfatizar determinadas palavras ou fragmentos; e a gesticulação, potencializando e coconstruindo os sentidos do que é dito em cada caso.

Do mesmo modo, observa-se que Kandu Puri opta por uma forma que reproduz uma linguagem coloquial típica da oralidade, como em “Eu tava na mata” e “só pra branco aqui bom”, e que se preocupa mais com o ritmo e a rima que com a concordância verbal ou nominal, como se pode notar em “Aqui meus parentes são brabo”, “isso tu não ouve na escola”, “os alemão chegou e fizeram chacota” e “nós te rouba quando usa cota” (Puri s. p.).

No que diz respeito tanto à forma quanto ao conteúdo, além dos fragmentos comentados, talvez a principal ação decolonial de Kandu Puri ao idealizar, produzir e performar seu poema tenha sido a decisão de encerrá-lo em kwaytikindo e fazê-lo com uma série de questionamentos ao colonizador (“o que você vai fazer?”), para os quais ele oferece respostas que têm o papel de lembrar que esse invasor não fez nem deixou nada de positivo por onde passou: “Fazer arma pra dar tiro, uma igreja com um batizado” (Puri s. p.). Cabe ressaltar que poucas pessoas entre as que acompanharam a competição compreenderiam o que foi dito se não fosse exibida a tradução para a língua portuguesa. Foi bastante significativo e coerente este gesto político do poeta, uma vez que se tratou de um slam indígena, centrado no protagonismo e autorrepresentação dos povos originários e que, por isso, deveria dar destaque também às línguas desses sujeitos, e não às impostas com a colonização.

Portanto, o que se pode concluir é que o Slam Coalkan —assim como a corrente do slam de poesia, ao menos, teoricamente— se configurou como uma prática cultural que propiciou a produção de contradiscursos, isto é, discursos que estão comprometidos com o combate ao que se tem disseminado de modo mais abrangente no imaginário popular, pelo poder de alcance dos grupos hegemônicos. As reivindicações que circularam pelo evento estão alinhadas às que estão suscetíveis a indagações sobre sua legitimidade e seriedade.

Enquanto aceitarmos passivamente apenas aquilo que as instâncias de poder definem como verdade, bem como qual é a arte e a literatura que realmente têm valor cultural, deixaremos de lado uma vasta e importante produção, ignorando a potência de seus autores e o que eles agregam para seus respectivos países e, em especial, aos coletivos aos quais pertencem.

Considerações finais

Neste artigo, buscou-se destacar como o Slam Coalkan, e os slams de poesia como um todo, propiciam a revelação de oralidades e dicções de autores de uma poesia de autorrepresentação, oferecendo-nos perspectivas decoloniais sobre suas histórias, memórias e crenças. Para promover tais discussões, fornecemos inicialmente alguns dados sobre a FLUP 2021, evento em cuja programação se inseriu o Slam Coalkan, e aspectos gerais do movimento poético performático do poetry slam. Em seguida, tratamos de oralidade e de seu valor para a cultura e a literatura indígenas, além de sua relação com a escrita. Por fim, dedicamo-nos a descrever mais detalhadamente o Slam Coalkan, com transcrição e análise do poema “Koya”, do poeta e rapper brasileiro Kandu Puri. Os poetas da cena do slam têm conseguido contar, desta vez desde seus próprios prismas, importantes histórias sobre o passado e o presente de populações estigmatizadas. Por essa razão, essa prática artístico-literária se constitui como uma oportunidade para que esses grupos sociais possam (re)existir e reinventar-se, ressemantizando suas existências a partir do combate ao pensamento colonial.

Obras citadas

  1. Ballestrin, Luciana. “América Latina e o giro decolonial”. Revista Brasileira de Ciência Política, núm. 11, 2013, págs. 89-117. DOI: https://doi.org/10.1590/s0103-33522013000200004 [URL] 🠔
  2. Behr, Héloïse. “A emergência de novas vozes brasileiras: uma introdução à literatura indígena no Brasil”. Momentos da ficção brasileira. Organizado por Ana Maria Lisboa de Mello, Jacqueline Penjon e Maria Eugenia Boaventura. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2017, págs. 259-279. 🠔
  3. “Diálogos: Desafios para a decolonialidade”. Conversa de Jaider Esbell com Ailton Krenak. YouTube, publicado por UnBTV, 16 de julho de 2019. Web. 29 de novembro de 2021. https://www.youtube.com/watch?v=qFZki_sr6ws [URL] 🠔
  4. Dorrico, Julie. “A oralidade no impresso: o ‘eu-nós lírico-político’ da literatura indígena contemporânea”. Boitatá, núm. 24, 2017, págs. 216-233. DOI: https://doi.org/10.5433/boitata.2017v12.e32958 [URL] 🠔
  5. Estrela D’Alva, Roberta. “Um microfone na mão e uma ideia na cabeça — o poetry slam entra em cena”. Synergies Brésil, núm. 9, 2011, págs. 119-126. 🠔
  6. Ferreira, Carolina Vidal. As mulheres no slam: poesia, feminismos e insurgência. 2021. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Dissertação de mestrado. 🠔
  7. Finnegan, Ruth. “The How of Literature”. Oral Tradition, vol. 20, núm. 2, 2005, págs. 164-187. 🠔
  8. Finnegan, Ruth.“O significado da literatura em culturas orais”. A tradição oral. Organizado por Sônia Queiroz. Belo Horizonte, Viva Voz, 2016, págs. 61-98. 🠔
  9. “FLUP 2021 – SLAM COALKAN- ROUND 02”. YouTube, publicado por Flup RJ, 31 de outubro de 2021. Web. 10 de outubro de 2022. https://www.youtube.com/watch?v=w3HMtD1kFNw&ab_channel=FlupRJ [URL] 🠔
  10. Jekupé, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo, Scortecci, 2009. 🠔
  11. “Kandu Puri”. Toronto International Festival of Authors. Toronto International Festival of Authors. Web. 10 de outubro de 2022. 🠔
  12. Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2019. 🠔
  13. “Mesa ‘Oralidades Insurgentes–a cena poética no Slam Brasil-Angola’ Programação VI FPL”. Youtube, publicado por Festival de Poesia de Lisboa, 13 de setembro de 2021. Web. 10 de outubro de 2022. https://www.youtube.com/watch?v=Tw1PyA3tzYw&ab_channel=FestivaldePoesiadeLisboa [URL] 🠔
  14. Morrison, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo, Companhia das Letras, 2019. 🠔
  15. Munduruku, Daniel. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre, Edelbra, 2016. 🠔
  16. Neves, Cynthia Agra de Brito. “Slams — Letramentos literários de reexistência ao/no mundo contemporâneo”. Linha D’Água, vol. 30, núm. 2, 2017, págs. 92-112. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v30i2p92-112 [URL] 🠔
  17. Oliveira, Luiz Fernandes de e Vera Maria Ferrão Candau. “Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil”. Educação em Revista, vol. 26, núm. 1, 2010, págs.15-40. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-46982010000100002 [URL] 🠔
  18. Ong, Walter. J. Oralidade e cultura escrita: A tecnologização da palavra. Campinas, Papirus, 1998. 🠔
  19. Padilha, Laura. Entre voz e letra: O lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói/Rio de Janeiro, EdUFF/Pallas, 2007. 🠔
  20. Phelan, Peggy. “Ontología del performance: representación sin reproducción”. Estudios avanzados de performance. Editado por Diana Taylor e Marcela Fuentes. Cidade do México, FCE/Instituto Hemisférico de Performance y Política/Tisch School of the Arts/New York University, 2011, págs. 91-121. 🠔
  21. Przybylski, Mauren Pavão. “O lugar do Brasil nos estudos decoloniais pelo viés da oralidade”. Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, vol. 8, núm. 2, 2020, págs. 37-63. 🠔
  22. Puri, Kandu. “Koya”. “FLUP 2021 – SLAM COALKAN- ROUND 01”. YouTube, publicado por Flup RJ, 30 de outubro de 2021. Web. 30 de outubro de 2021. https://www.youtube.com/watch?v=Qntvk7BSlxY [URL] 🠔
  23. Quijano, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Compilado por Edgardo Lander. Buenos Aires, CLACSO, 2000, págs. 201-246. 🠔
  24. Restrepo, Eduardo e Axel Rojas. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán, Editorial Universidad de Cauca, 2010. 🠔
  25. Salom, Julio Souto e Warley “Janove” Souza Pires. “La explosión de los slams de poesía hablada en Brasil”. Literatura: Teoría, Historia, Crítica, vol. 22, núm. 2, 2020, págs. 381-419. DOI: https://doi.org/10.15446/lthc.v22n2.86096 [URL] 🠔
  26. Santos, Boaventura de Sousa e Maria Paula Meneses, orgs. Epistemologias do Sul. Coimbra, Almedina, 2009. 🠔
  27. “Slam Coalkan: Round 2”. Toronto International Festival of Authors. Toronto International Festival of Authors. Web. 10 de outubro de 2022. 🠔
  28. Smith, Marc Kelly e Joe Kraynak. Take the Mic: The Art of Performance Poetry, Slam, and the Spoken Word. Naperville, Sourcebooks MediaFusion, 2009. 🠔
  29. Souza, Fabiana Oliveira de. “Poesia contra o silenciamento: as narrativas de slammers brasileiros”. Caderno de Letras, núm. 40, 2021, págs. 131-146. 🠔
  30. Todorov, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo, Martins Fontes, 1983. 🠔
  31. Tupinambá, Renata. “Slam Coalkan”. Livreto da FLUP 10 ANOS, 2021. 🠔
  32. Vaz, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo, Global, 2011. 🠔
  33. Zumthor, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo, Cosac Naify, 2014. 🠔
Para mais informações sobre os slams de poesia no Brasil, ver os trabalhos de Ferreira, Neves, Salom e Pires e Souza.
Não se pode afirmar o mesmo a respeito dos poetas representantes da América do Norte porque não foi possível assistir a todos os vídeos dos participantes, talvez por problemas na transmissão ou por alguma razão, sobre a qual não houve informação para o público.
No original: “la colonialidad es un fenómeno histórico mucho más complejo [que el colonialismo] que se extiende hasta nuestro presente y se refiere a un patrón de poder que opera a través de la naturalización de jerarquías territoriales, raciales, culturales y epistémicas, posibilitando la re-producción de relaciones de dominación; este patrón de poder no sólo garantiza la explotación por el capital de unos seres humanos por otros a escala mundial, sino también la subalternización y obliteración de los conocimientos, experiencias y formas de vida de quienes son así dominados y explotados”. Tradução própria.
Uma vez que as competições de poetry slam no Brasil foram realizadas remotamente durante 2020 e 2021, devido à pandemia de Covid-19, não houve a necessidade de deslocamento por parte dos slammers para que pudessem participar das disputas. Com isso, a poeta angolana Joice Zau competiu em slams brasileiros, coroando-se vencedora do SLAM BR, o Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, sendo, portanto, sua representante na Copa “América” de Slam.
Para o round 1, veja-se Puri. Para o round 2, veja-se “FLUP 2021”.
A respeito dessa tradução, sabe-se que sua transcrição e transmissão esteve a cargo da FLUP, mas não se informa se foi oferecida pelos próprios poetas ou por responsáveis pelo evento. Kandu Puri não traduz oralmente os versos do kwaytikindo para o português no momento da performance.
Como informado anteriormente, os poetas brasileiros se apresentaram na primeira rodada, cujo link para a gravação já foi informado na nota 5. Pode-se assistir à performance de Kandu Puri a partir de 35 minutos do vídeo. Sobre a tradução, veja-se a nota 6.
Os grifos aqui e na página seguinte são nossos.