Recibido: 30 de diciembre de 2019; Aceptado: 12 de febrero de 2020
Os monstros do ano 2001: trabalho e dinheiro em alguns poetas dos anos noventa argentinos
Los monstruos del año 2001: trabajo y dinero en algunos poetas de los años noventa argentinos
The Monsters of Year 2001: Work and Money in Some Poets of the Argentinean Nineties
Resumo
Imaginando - parafraseando a Aby Warburg - o patrimônio económico gestual argentino na história interna das imagens da poesia dos anos noventa e suas projeções, o presente artigo propõe uma leitura de uma série de poemas que abordam a questão do dinheiro ou do trabalho num período que foi crítico para os argentinos. Essa indagação permitirá observar as distâncias ou proximidades da poesia com o mundo do trabalho que, naqueles anos, sofria transformações que apenas hoje começamos a entender. Para isso, alguns dos poetas proporão uma leitura económica do passado recente e outros se fixarão no presente. Em todos os casos, a poesia não ficará incólume e terá seus pressupostos estéticos modificados.
Palavras-chave:
crise, economia, poesia contemporânea argentina, trabalho.Resumen
Imaginando -parafraseando a Aby Warburg- el patrimonio económico gestual argentino en la historia interna de las imágenes de la poesía de los años noventa y sus proyecciones, el presente artículo propone la lectura de una serie de poemas que abordan el tema del dinero o del trabajo, en un periodo que fue crítico para los argentinos. Esto permitirá observar las distancias o proximidades de la poesía con el mundo del trabajo que, en aquellos años, sufría transformaciones que hasta hoy comenzamos a entender. Para esto, algunos de los poetas propondrán una lectura económica del pasado reciente y otros se fijarán en el presente. En todos los casos, la poesía no quedará incólume y verá, en consecuencia, sus presupuestos estéticos modificados.
Palabras clave:
crisis, economía, poesía contemporánea argentina, trabajo.Abstract
Imagining, - like Aby Warburg did - the Argentinean gestural economic heritage in the internal history of the images of the 1990s poetry and its projections, this paper proposes a reading of a series of poems that approach the subject of money or job in a critical period for Argentinians. This investigation will allow us to observe the distances or proximities of poetry with the world of work that, in those years, suffered transformations that only until today we are beginning to understand. Therefore, some of the poets will propose an economic reading of the recent past and others will look at the present. In all cases, poetry will not remain unscathed and will see its aesthetic presuppositions modified.
Keywords:
crisis, economy, contemporary argentinean poetry, work.Nunca pensé que escribir poesía
fuera diferente a venderla
o, directamente, a fabricar ladrillos
o diferente a trabajar de mozo en Banchero
(donde hay un horno).
No hay poesía tan alta como la chimenea de esa pizzería.
Washington Cucurto, "Escribir poesía"
Os livros do senhor Camaratta
LENDO A POESÍA REUNIDA DE Fabián Casas se poderia esboçar, esquematicamente, uma série de poemas do poeta diante do espelho: "Recién salido de la ducha" de Tuca, "Me pregunto", "No estoy en bata comiendo naranjas al sol" e "Mientras me lavo la cara" de El salmón, por exemplo. O enfrentamento, face a face, com e sem óculos, com esse outro eu que devolve o espelho conduz a pensamentos metafísicos, existenciais, em que se mede o corpo próprio enquanto um objeto no mundo, ou se indagam as ressonâncias do recentemente abandonado espaço onírico, ou se ponderam os ecos do já-acontecido:
Enquanto lavo meu rosto
Darío, em pé, grita e gesticula.
Sob um cobertor marrom,
Daniel ri e fala das suas namoradas.
Eles estão bêbados e os que gritam na cozinha,
como deputados, também.
Mamãe ressuscitada,
bate nas janelas, pedindo para entrar.
Ao amanhecer, sob uma clareza impiedosa;
cigarros, livros espalhados,
pratos com comida.
Caminho devagar até o banheiro;
sei que a desgraça paira sobre nós,
não agora, também não no ano que vem,
ainda somos jovens, mas isso
perde-se imediatamente.
Não temos nada, eu acho,
enquanto lavo meu rosto,
nem um ofício, nem uma herança,
nem uma casa de pedra sólida.1 (60)
Colocado no penúltimo lugar de El salmón, coletânea de poemas escritos entre 1990 e 1996 e publicada nesse último ano, o poema começa descrevendo um dos encontros entre amigos-poetas que Casas registrava no seu diário (Diarios de la edad del pavo, 2017) e que outros colegas da época (Washington Cucurto, dentre eles), posteriormente, lembrarão como míticos ou, pelo menos, dificilmente esquecíveis. Presumivelmente, então, Darío seja Darío Rojo e Daniel, Daniel Durand, editores junto com o próprio Casas da revista 18 whiskys. Na mínima saída, em direção ao banheiro, desse espaço íntimo, disparatado, anárquico e noturno, denso e também político, como colocado pela comparação com os deputados e uma lembrança platónica, entre doses etílicas variáveis, cigarros e leitura de livros, numa cena de farra, e inclusive com a presença vinda do além da mãe do poeta, na beira do dia, ele, o poeta, um pouco aturdido, parece atingir uma iluminação repentina que se resolve, de modo dialético, uma vez frente ao espelho. Nessa situação, o poeta adota a primeira pessoa do plural, fala em nome do grupo de amigos, fala em nome da sua geração, e enuncia a carência absoluta além da juventude, da poesia e da amizade que, no fim das contas, não serão capazes, também não, de solucionar esse déficit porque, talvez, sejam elas a própria desgraça. A poesia, no caso, não é considerada um ofício nem, metaforicamente, uma herança ou casa de sólida pedra.
Essa poesia, pouco depois, num poema de Horla City, que recria o monólogo interior de um tal senhor Camaratta antes de morrer, estará em oferta na mesa dos saldos:
Me formei, sou disciplinado,
cometi o pior dos pecados,
sentei para ler ao sol
livros que comprei em promoção,
porque colocaram à venda
à poesia dos anos noventa.2 (174)
Na sua noite agónica, o senhor Camaratta declara ter lido, prazerosamente ao sol, e como se de um pecado se tratasse, a poesia dos anos noventa. A rima bufa com que acaba a estrofe (oferta / venta / noventa) nos adverte da paródia: é "El remordimiento", poema de La moneda de hierro, que ecoa ali. Mas o pecado aqui não é não ter sido feliz senão ter lido aqueles livros em oferta, dentre os quais, e talvez, algum livro do próprio Casas. "Minha mente / se aplicou às simétricas porfias / da arte, que entretece naderías" (Borges 143), liamos no poema borgeano. Naderías são também as que confessa o senhor Camaratta. E a poesia dos anos noventa, uns quinze anos depois, reaparece sob a luz não só da desgraça, senão também do des-prezo.
Nos poemas mais recentes de Casas, escritos depois de sua separação e sintomaticamente intitulados Últimos poemas en Prozac, embora o trocadilho careça de graça, dado que são todos dispostos em verso, o dinheiro e o trabalho estão quase completamente ausentes, obliterados por esse estado narcótico dos antidepressivos.3 O que aparece é o registro da vida depois da ruptura, a paternidade, o retorno à solidão, o não saber o que fazer. Ainda assim, em "Biografía de un escritorio", se lembrando da escrivaninha que ficou na sua antiga casa de casado a partir da cor do cabelo do cachorro vira-lata que uma menina acaricia no local onde está comprando plantas, elenca uma série de escrivaninhas, dentre elas aquela que o pai criou, ao modificar a função da mesa de jantar:
E outra tarde de inverno nos anos setenta
seu pai usou a mesa de jantar pela primeira vez como escrivaninha
à noite, com uma pequena lâmpada,
para fazer, como ele disse, as contas: as matemáticas
necessárias para sustentar uma família
como se fosse uma pequena empresa.4 (58)
A associação desencadeada pela cor do cabelo do cachorro vira-lata, então, o deposita num lugar da sua juventude: uma cena da intimidade da sua família, a primeira vez que o pai, sozinho, depois da janta, quase que em segredo, fez as contas necessárias para sustentar à família e transformou a mesa de jantar numa escrivaninha, isto é: colocou a economia no lugar das refeições, da alimentação. É uma cena crítica. Utilizando um vocabulário atual (PYME: micro e pequenas empresas), aproxima a língua da empresa ou, talvez, do empreendedorismo, para se referir à organização económica familiar. Se a estrofe anterior recuperava o momento em que, passeando com uma menina pelo lago Silvaplana, Nietzsche teve a ideia do eterno retorno do mesmo, há, nessas associações só em aparência livres um vínculo de ordem dialético, acostumados como estamos, por outro lado, aos remates sentenciosos dos poemas de Casas. Desse modo, na figura do pai de família recentemente divorciado, e a partir do elenco de uma série de escrivaninhas, mais ou menos distantes, se recuperam diversas situações de outras vidas como se, seguindo um raciocínio de tipo platónico, naquela escrivaninha estivessem todas as escrivaninhas com todas as situações possíveis que elas abrem. Assim, Casas, dentre muitos outros devires em aberto, é seu pai naquela crítica primeira noite: um homem sentado sozinho, na escuridão da noite, fazendo as contas que nunca fecham.
Ócio / Negócio
Mexendo na mesa dos saldos, procurando nexos dentre os retornos das formulações de pathos dos gestos (Warburg, "O ingresso" 93), imaginando - parafraseando a Aby Warburg - o património económico gestual argentino na história interna das imagens (Warburg, "A influência" 175) da poesia dos anos 1990 e projeções, releremos a continuação os livros desvalorizados do senhor Camaratta. Dentre esses, talvez nenhum se dedicou tanto aos vínculos do poema com o emprego e o dinheiro como o fez Curriculum vitae de Pablo Aguirre, livrinho publicado pelas Ediciones Deldiego5 no final da década de noventa argentina, isto é: no ano de 2001, que contém um extenso poema sobre o começo da vida laboral da voz poética, focado especialmente nos trabalhos da temporada de verão. Se a praia é, para quase todo mundo, e por antonomásia, um local de ócio e descanso, tal e como lemos em outros dos títulos do catálogo de Deldiego, La playa, de Darío Rojo, publicado também naquele ano de 2001 e focado mais na descrição dos turistas e da percepção do poeta, na areia mesmo, em Curriculum Vitae apenas existirá como espaço laboral, reduzido à temporada de verão. Ócio e negócio: quando lemos La playa adivinhamos Curriculum Vitae, e vice-versa. Os versos com os que começa o poema são: "acho que meu primeiro emprego remunerado / foi pintar as linhas de estacionamento / no prédio onde eu morava" ["creo que mi primer trabajo pago / fue pintar las líneas del estacionamiento / en el edificio donde vivía"] (Aguirre s. p.). Uma lembrança vaga inaugura o poema que, contrário ao que poderia se deduzir dessa dificuldade mnemónica e do próprio título, não será uma enumeração retrospectiva e pormenorizada dos empregos de uma vida, senão o picaresco relato daqueles verões trabalhados na praia de uma cidade balneária depois de ter concluído o ensino médio. Se, como deixa entrever o primeiro verso, um currículo é a enumeração dos trabalhos remunerados já tidos na própria vida, troca-se aqui a simples coleta de dados laborais do passado por um relato em verso de uma dessas experiências.
De passar a vassoura pelo local até gerenciar o caixa, o transcorrer dos anos traz, junto com a perda da inocência, alguma espécie de promoção laboral, numa hierarquia explícita fundamentada na destreza e força corporal que situa o trabalho da lanchonete abaixo daquele outro dos salva-vidas e dos "carperos" (o pessoal contratado pela gerência da própria praia para cuidar das tendas e guarda-sóis). Com ironia descreve a cada um dos seus colegas, sua procedência provinciana e seus truques no limite da legalidade, imita os diferentes sotaques e destaca a qualidade que criara o apelido. Cada um deles tinha a sua própria estratégia para tirar um maior proveito económico do emprego: "Todos nós cobiçávamos alguma coisa / todos nós roubávamos alguma coisa" ["Todos codiciábamos algo / todos robábamos algo"] (s. p.). Sob o entretecido de relações geradas pelos empregos legais que cada uma dessas pessoas desenvolvia na praia, se constituía uma rede de trocas mais ou menos invisível que acabava definindo as relações e amizades. O emprego visível, no final das contas, era apenas uma justificativa para conseguir o fetiche, busca diária que suprisse, quanto menos simbólica ou emocionalmente, a escassez do salário e o trato com os proprietários:
Todos nós odiávamos os chefes:
o gordo Verdaguer
Verduguer
cuspíamos
no seu dompedro
que pedia de sobremesa
Todos nós reclamávamos
do pouco que ganhávamos:
eu também reclamava
apesar de que toda grana
me parecia muita.6 (s. p.)
O prazer do emprego aparece só nas últimas duas estrofes: uma conversa amável com algum cliente a partir do elogio do café que ele fazia ou a entrada no mar como purgação da sujeira do dia. O poema, de algum modo, vem depois, para restaurar, entre o emprego e a busca do fetiche, o princípio do prazer. "Meu nome é Ana Gallardo. Eu tenho 51 anos. Sou artista. Este é o meu curriculum vitae" (00:00:0-6), escutávamos dizer a Ana Gallardo em, precisamente, cv laboral, obra em formato áudio de 2009, pertencente agora à coleção do malba e exposta ali na ocasião de Verboamérica. Naquela oportunidade, na ficha catalográfica do museu, liamos: "Não lucro com a venda de minhas obras, e por isso tenho que fazer outros tipos de trabalho para ganhar o meu sustento e o da minha família. Gravei um áudio onde relato meu currículo de trabalho. Nele está tudo o que eu faço e tudo o que eu fiz ao longo da minha vida desde que comecei a trabalhar".7 Ana Gallardo, na equiparação entre "minhas obras" e "outros tipos de trabalhos", estava recuperando, seguindo Didi-Huberman, o sentido modesto de obra, "essa palavra do trabalho", com que se designa, conforme o Dicionário Histórico da Lingua Francesa que ele cita, "em primeiro lugar um objeto criado pela atividade, o trabalho de alguém, assim como a ação, as operações que resultam nesse objeto" ("A obra" 7). Do mesmo modo que no poema de Aguirre, seremos testemunhas do começo da vida laboral, embora aqui com uma projeção maior, menos focada e detalhada. Nos dois casos não há poesia nem arte nos empregos. Será o trabalho posterior com essa falta que fará dela parte de uma obra e fundamente a poética de cada um dos dois. "Não lucro com a venda de minhas obras; por isso, eu tenho que fazer outros tipos de trabalho para ganhar o meu sustento e o da minha família",8 também poderia ter afirmado com certeza Pablo Aguirre. Para Alan Pauls, cv laboral foi uma das obras mais instigantes de Un lugar para vivir cuando seamos viejos, a retrospectiva que o Museo de Arte Moderno de Buenos Aires dedicara à artista rosarina em 2015 e 2016:
É um relato laboral, ou melhor, é um relato sobre a alimentação, de mera sobrevivência, no qual a arte, se aparece, aparece só como um mundo ideal ou como um horizonte inacessível, e cujos marcos compõem o cenário de insegurança típico do mundo do trabalho contemporâneo.9 (s. p.)
Começava Pauls descrevendo a obra. E continuava:
As escassas faíscas de adrenalina que animam esse mapa da fragilidade do emprego são alguns meses como contrabandista de matérias-primas para bijuteria entre a Argentina e a Cidade do México (onde a artista viveu por alguns anos) e outras, também no D. F., como "representante de artistas de cabaré". Gallardo recita seu registro de trabalho sem ênfase, fiel à impressão subsintática e administrativa do gênero cv, e delega na repetição e na acumulação (quantos call-centers pode atender um artista contemporâneo?) o humor e a crueza paradoxal de uma autobiografia onde a arte foi despejada por necessidade. Diferente é o tom da ficha que comenta a obra, duradoura, estóica, pouco sentimental, sem um pingo de ironia ou distância: "Não lucro com a venda de minhas obras", escreve Gallardo, "por isso, eu tenho que fazer outros tipos de trabalho para ganhar o meu sustento e o da minha família.10 (s. p.)
Nesse mundo precarizado, a arte está localizada além ou aquém das necessidades e da sobrevivência. Mas é numa relação de complementarie-dade, não opositiva, que aparece o vínculo trabalho precarizado - arte: porque existiram esse sem-número de trabalhos é que existe o conjunto das obras de Ana Gallardo. Desse modo, as suas obras, a partir de cv laboral, não podem ser separadas nem isoladas das condições precarizadas do trabalho. Encontramos aqui, como antes nos diários de Casas, a figura do artista "pathético":
Não é estranho que um artista não lucre com sua arte (talvez essa seja a única fusão entre arte e vida que a milagrosa arte contemporânea ainda não está em posição de garantir). O que é estranho é a lógica de uma vida dupla tão extrema, quase uma super-heroína, na qual Gallardo se coloca (vendedora de planos médicos durante o dia, protagonista de bienais à noite), e a maneira como ela transforma essa desinteligência social-sem dúvida comum a muitos artistas, embora nunca esteja tão visível quanto no caso dela-no objeto de um anseio auto-representacional pelo qual se filtra uma figura que acreditávamos extinta: a figura do artista que sofre. Se a imagem de Gallardo algemada na recepção de uma empresa ou na venda de planos de celular nas ruas parece injusta, não é tanto porque testemunha as misérias da insegurança no trabalho, da hiper-flexibilidade e da desregulamentação (tendência da qual o artista contemporâneo é menos vítima do que pioneiro), senão porque postula que não ser o dono de seu tempo ou ser fiel ao seu desejo é o drama máximo que um artista (contemporâneo) pode sofrer.11 (Pauls, s. p.)
Apesar disso, o que lê Pauls em cv laboral não é tanto esse conjunto de condições senão a alienação do tempo que sofrem os artistas contemporâneos. Problemática essa que é central no raciocínio artístico de César Aira, formulada sob a forma da ocupação do tempo, e que eu acho indissociável da maneira em que foi colocado o vínculo arte-vida, excepcionalmente, nessas obras. Pauls não questiona o fato de que os artistas não vivam da arte que fazem porque, talvez, não a considera um trabalho. E por isso, nessa vida dupla que marca cindida, há sofrimento. Porque a arte precisa, para ser realizada, sacrificar tempo em trabalhos mal remunerados e alheios ao interesse pessoal, dado que nem é considerada um trabalho e, precisamente por isso, fechando um círculo vicioso, não é justamente recompensada. Na entrevista com Gabriela Cabezón Cámara incluída no catálogo da retrospectiva do mamba, Un lugar para vivir cuando seamos viejos, Ana Gallardo confessa as dificuldades daquela vida precária: endividamento constante e crescente, falta de serviços básicos para viver (água, luz, gás), as vezes sob a condição de migrante e com uma filha a seu completo cargo. Será dali, da falta, da desgraça e do des-prezo, que tirará as forças para construir as obras futuras (as reuniões de dança ou karaokê, a construção de uma escola para a velhice): "Trabalhamos a vida toda fazendo qualquer coisa, agora vamos fazer o que queremos fazer"12 (citada em Cabezón Cámara 40). A preocupação de Ana Gallardo com a velhice, nesse sentido, não pode ser pensada longe dessa questão: a instabilidade da vida, causada pelas condições laborais precárias, levou ela a conceber a ideia de um lar de idosos próprio.
Os prêmios
A descrição da precariedade da sua vida nos anos noventa feita por Ana Gallardo aparecia também num dos livros que o senhor Camaratta, talvez, comprou em oferta: Música mala, de Alejandro Rubio, ganhador do primeiro Prêmio do Concurso Hispano-americano de Poesia vox, em 1997. No segundo poema do livro, "La información", liamos:
Terça-feira quatro, a nova lei
ainda se debate, 99 %
de umidade. O apé cheira a couve-flor,
em cento e vinte e quatro pranchas a gordura
crepita, as famílias se movem para a mesa
e brincam com a faca, o garfo, o copo, a colher. Eu estou liquidado. Meu filho também, por outro lado; mas ele
não deve saber isso, deveria achar que ainda há espaço
entre aqueles que são, vão, vêm,
se movem, constroem. Para salvá-lo
do tédio do bairro euzinho construí
um bunker na sala; sentado
atrás da metra soviética assistimos o dia todo
televisão à cabo.
Quinta-feira oito, a lei não saiu, metade da cidade
respira com alívio, a outra metade
pica o olho enquanto tenta pegar
outro pedaço de carne. Sábado seis
ou sábado sete, o bebê já está engatinhando, resistimos
com a última faixa de munição; tenho medo
de que cortem a luz, abaixem o martelo
e o anúncio chegue na forma de um uivo
de leitão sangrando até onde eu estou
com a mochila nos pés, o bebê nas costas,
mordendo comida fria.13 (11)
Costurado como se fosse um diário, o poema entretece as notícias que chegam de fora - a sanção de uma lei, o clima - com o que acontece dentro da casa - o iminente despejo da família. A esfera pública da grande política nacional atravessa o espaço íntimo do lar, já ameaçado desde outras frentes. O pai sabe que não há alternativa, nem para ele, nem para o seu filho. A televisão, e o cenário que resguarda ela, parecem ser as defesas contra esse mundo que não cessa de anunciar o fim. A condena já foi decretada, embora as sanções não cheguem. Na iminência da catástrofe íntima, o pai não chega a compreender que esse seu estado precário - e não nenhuma outra ameaça que chegue do mundo exterior batendo a porta - constitui a condena mesma.
No poema seguinte, "Vendedores", aparece a dúvida sobre o tempo por vir que constitui a essência cronotópica da precariedade:
Sendo difícil saber se está chegando
para nós um futuro calculado
ou um passado que não vai retroceder, quem
dos dois se moverá primeiro?14 (Rubio, Música 12)
Melhor dizendo, essa configuração temporal é imediatamente anterior à configuração própria do tempo precário porque pelo menos aqui existe uma dúvida sobre o plano do futuro. O tempo da precariedade é o tempo que o Punk nos anos de 1970 anunciou, mas numa acepção perversa: no future. E nesse estado de coisas, o jovem artista conforme aparece em "Médici" deve someter não tanto seu "currrrr / rículum vitae" senão seu corpo à Fundação e seus velhos dirigentes se quiser sobreviver. A reflexão sobre a literatura, por outro lado, é realizada pelo jornalista de Crónica, médio de comunicação (na época, jornal e canal de tv) de tipo sensacionalista, que na sua folga escreve:
porque o realismo social nos ferrou,
nos tratou como idiotas, e por realismo
mágico, bom, enfim, melhor
o da Tropicana: é melhor, mais real,
visceral.15 (Rubio, Música 17)
A partir daí, entre o poema "12" de Espantapájaros e a Refalosa, lembranças peronistas e a cor vermelha do sensacionalismo, o poema avança até acabar escolhendo a lógica cor de rosa do romance sentimental. A eleição do jornalista não será nem opathos, nem o tropos: apenas o amor fugaz enquanto na cidade transitam as viaturas. Daniel García Helder lia nos personagens de Música mala, como lerá mais tarde em "Homero", música e videoclipe de Viejas Locas ("Aspectos" 131-148), uma galeria de "infrahumanidad": "esmagados sob uma camada anacrónica de determinismo naturalista, tornam-se interioridades alienadas, singularidades indesejadas, entidades regressivas que se reproduzem assexuadamente, por simples bipartição"16 ("Ensayo" 28). "Infrahumanidad" poderia ser o qualificativo kafkiano e argentino para precariedade.
O espaço de "La información" é similar daquele com que abre Punctum, de Martín Gambarotta, outra coletânea de poemas de personagens dos anos de 1990, vencedor aliás de outro Concurso Hispano-americano de Poesia, no caso, daquele organizado pelo Diario de Poesia em 1995, publicado um ano depois, em 1996:
Um quarto
no qual o espaço do teto é igual
ao do piso, que por sua vez é igual
ao de cada uma das quatro paredes
que delimitam um lugar da rua.17 (9)
Nos poemas titulados apenas com números, com dificuldade se adivinham as cenas fragmentadas do Guasuncho, Cadáver, Hielo, Gamboa ou Confuncio, dentre outros,18 inseridas no devir aleatório dos seus dias, "nas horas sem trabalho / arrastadas pelo espanto"19 (24). Os trabalhos, nessas sequências, aparecem como lembranças inverossímeis e longínquas de outro país: "vender bíblias para o Ministério / das Ondas de Amor e Paz" (12), "O trabalho de Fulano e Mengano numa oficina montando chaveiros / colando bonequinhos de Jesus nas cruzes / i.n.r.i. de plástico" (18),"st [foi] criar gansos para Venado Tuerto"20 (24). País esse que, no caso de muitos deles, "relíquia viva / do museu da subversão"21 (69), veio depois da militância política da esquerda armada, e que convive de modo cínico ou, quanto menos, bizarro com o neo-liberalismo predominante da época.22 "Todos os personagens", escreve Ana Porrúa numa nota de rodapé, "ingressam ao texto no momento em que deixam o mundo político; esta é o único relato de origem que aparece deles"23("Punctum" 110):
Hielo conversa com La Drogona de Palermo
que foi na casa dele para pedir um pouco de grana.
"Bora", diz Hielo, "coloque sua camisa
do Macaco andando em Mula,
vamos queimar esses livros
e vamos ver a luta de classes
nos bares da noite, àqueles que se acham
pedreiros por levantar quatro sacos, pedir grana
para teu namorado que tem um chaveiro da CNN,
esse que paga 10 dólares por um sanduíche
e depois tem problemas com a barriga
ou para o outro cara que você conhece
aquele que traz jogadores da
Federação Boliviana de Futebol.24 (Gambarotta "Punctum" 48)
De Hielo, em outro poema, se dirá: "Botar água nalgumas plantas desagradáveis / foi seu único ato na primeira pessoa naquele dia"25 (57). O poema registra um perambular pela cidade sem rumo nem sentido. Nesse panorama de des-subjetivação o que falta, além do sentido, parece ser, é o emprego. As horas são horas desocupadas:
Janeiro, janeiro,
os guri zerado e sem trabalho:
tudo é simples se a gente
tem medo no jogo sujo.26 (Gambarotta 50)
O que é que é esse jogo sujo? Esse poema, o número vinte, descreve todas as pequenas ocupações que fazem aqueles que não tem, precisamente, emprego no verão. O poema ocupa o espaço da página dessas vidas desocupadas, des-obradas, num leque de possíveis prefixos da negação.
Do mesmo modo que, mais tarde, em Música mala, o trabalho da arte é, dentro desse mundo em decadência, criticado duramente e até ridicularizado:
Então, ao invés de virar artista
procure uma profissão nobre que gaste suas mãos:
carpinteiro toca na madeira. Muda a madeira
trabalhada com suas mãos e ferramentas
por grana. Grana por madeira
não ideias por madeira. Grana
por uma cadeira trabalhada
com tuas mãos.27 (Rubio 61-62)
Esse poema que, antes, brincara com a legenda "disco es cultura" que levavam impressos os cds naquela época, questionando, precisamente, o conceito de cultura, como coisa filtrada, própria tanto dos fascistas quanto dos democratas, e que, antes ainda, afirmara: "Todo ato é literário / e isso é nojento. Tudo / implorando sinceridade",28 acaba distanciando a arte do trabalho, no sentido de ofício, comparando-a aliás com o ofício bíblico por excelência. Sentindo "[l]a presión / atmosférica del pasado" (79) no final do século, as cenas de Punctum, "el Martin Fierro de nuestra generación", conforme Washington Cucurto (citado em Soto 283), quiseram fazer emergir, como dizia a anónima contracapa da reedição de 2011, "como un cuerpo fondeado en el Río de la Plata, el fundamento del orden liberal: la masacre de los disidentes". O punctum do poema, então, dá a ver um retorno traumático, segundo Mario Cámara, "o retorno de uma história que se recusa a ser "enterrada", que como uma pulsão insiste e inscreve os anos setenta nos anos noventa através de estilemas e fragmentos"29 (113). Os anos noventa tentaram fechar a pacificação social que o neoliberalismo precisava para terminar de apropriar-se do cenário político. As sobrevivências do fundo do rio proporcionaram outra leitura da história, evidenciando o preço em vidas dessa nova ordem nacional.
Aura cartonera e berreta
Ainda não se chamando de Washington Cucurto, Santiago Vega ganhou a edição seguinte do Concurso Hispano-americano "Diario de Poesía", em 1997. A edição número quarenta e um da revista, do outono daquele ano, traz uma coletânea do livro vencedor, Zelarayán, aquele que de fato significaria pouco tempo depois sua estreia na poesia, publicado em 1998 pelas edições Deldiego. Já a primeira parte do primeiro poema da coletânea, "Una mañana terrible", resulta significativa demais para nosso percurso:
Às dez da manhã
recitando seus melhores
poemas
assustando os caixas e mulheres idosas
com seu uivo
Ricardo Zelarayán
foi arrastado pelo cabelo
por seguranças
por jogar o espinafre
no chão,
por tirar as tampas dos iogurtes
de litro.
Ricardo Zelarayán
foi arrastado pelo cabelo
por andar feito um diabo
entre as gôndolas
imprimindo medo
nos meninos e meninas
crianças que têm
o sexo e o roubo
nos olhos
meninas que gozam
do gozo
do libidinoso
monstro
que pensa
no doce retorno
fulgor e deleite
do ânus virginal.
O monstro
foi despejado
do supermercado
por ter maus hábitos
e ser improdutivo
para a sociedade
para a Grande Empresa Nacional
dos Mendes.30 ("Zelarayán" 6)
A estranha cena protagonizada por um então esquecido, ou quanto menos: pouco lido, poeta, Ricardo Zelarayán, se passa no contexto onde proverbialmente trabalhava Cucurto, conforme seu mito autoral. Um Zelarayán beat e fora de si, profundamente erotizado e animalizado, entra no supermercado recitando seus versos como grito de guerra e é detido imediatamente pela segurança do local. Nesse contexto, a oscilante voz do poema, politicamente incorreta, que sabe tanto quais são os melhores poemas de Zelarayán quanto o que esconde o desejo das crianças que o observam, acaba incorporando o discurso repressivo do capital: o poeta é um ser monstruoso e improdutivo para a Sociedade e a Grande Empresa Nacional. Já na terceira parte do poema, Zelarayán estará preso numa gaiola dentro do supermercado, se lembrando nessa reclusão dos estupros a menores que fazia pelas noites. No poema seguinte, narrado com a alegria das interjeições dos quadrinhos, "De cómo son hechos los arco iris y por qué se van", pelo qual Cucurto será acusado, apenas poucos anos depois, de xenofobia e pornografia, um jovem vindo de Salta é demitido por um coreano dono de "uma oficininha / para cortar pano, na rua Paso / centro do Once"31 (7), por reclamar o pagamento do dia logo depois de ter acabado a primeira jornada laboral. À negativa do chefe, o saltenho responde com violência, matando o coreano com a prancha quente e estuprando a filha dele. Numa resenha de El grano del invierno, de Pablo Chacón, Santiago Vega afirmara, alguns anos antes de aparecidos esses poemas, que Chacón "tenta capturar o retrato invisível de uma época atroz"32 ("Retrato" 37). Em seu caso, na abjeta e jovial visibilidade, poderíamos pensar, estaria o seu modo de plasmar a mesma atrocidade da época.
Lembrando o contexto de escrita de Zelarayán, recentemente, para o livro de entrevistas com Facundo Soto, Santiago Vega já definitivamente Washington Cucurto dizia:
Eu trabalhava num supermercado. Eu o escrevi aos poucos entre as gôndolas, enquanto trabalhava. Eu era responsável por um setor, que era o setor do sacolão, e nesse setor eu tinha que fazer uma enorme gôndola, com cerca de 50 metros de comprimento por 2 metros de altura, e tinha que carregá-la com legumes: acelga, espinafre, aipo, repolho branco, repolho roxo, alface. Eu montava essa gôndola, que é uma gôndola difícil na área porque são materiais delicados. Eles me deram um bloco de folhas de papel, onde eu tinha que estocar a mercadoria, o que estava e o que estava faltando na gôndola e na sala fria. Que houvera cebolas, sacos de batatas, batatas doces. Na sala, está tudo o que você precisa frio: kiwis, maçãs, peras. Eu ia anotando o que estava faltando. Atrás daquele bloco de notas, escrevia os poemas. Enquanto trabalhava, eu escrevia. Foi um trabalho muito emocionante, muito físico.33 (Citado em Soto 10-11)
Escrito, então, durante o tempo de trabalho no supermercado, no anverso das notas para o stock diário de um dos setores, segundo ele, mais delicados, Zelarayán aparece associado a esse emprego carregado de paixão, corporal em todo sentido. É um "produto", dirá na mesma entrevista, desse mundo. Cucurto, no entanto se defina como "uma pessoa trabalhadora" ["una persona trabajadora"] (citado em Soto 15) e até deva seu pseudónimo ao fato de ser um empregado de supermercado,34 rubro no qual trabalhou de 1989 até 2003, quando saiu Cosa de negros e alcançou certa consagração, seja um dos editores fundadores da Eloísa Cartonera (cujo primeiro local foi, aliás, uma verdulería) e acredite que "ser artista não é algo diferente de ser outras coisas"35 (citado em Soto 90), não define à escrita como um trabalho:
Sim, para a maioria dos escritores é um trabalho bonito, talvez o trabalho que eles merecem e sempre desejaram. Nunca foi um trabalho para mim. Quando me sento para escrever, nunca me sento para trabalhar. É que tenho uma forte consciência operária e sei que o trabalho em muitos aspectos é outra coisa e em muitos outros aspectos também tem coisas semelhantes ao fazer artístico, por assim dizer. Há também uma questão de figuração: existem pessoas que tiram um cartão de escritor, publicam livros, fazem entrevistas, vão a feiras internacionais, mas não escrevem ou escrevem apenas para cumprir. Não aceito escritores que não escrevem, para mim são impostores. Mas nunca pode ser um trabalho, nem mesmo no caso de César Aira, que escreve todos os dias sem parar. Escrever é uma coisa e trabalhar é outra.36 (Citado em Soto 92)
E, embora sua renda fixa provenha das crónicas sobre esportes que escreve para o site da ESPN, continua sendo taxativo: "escrever é uma coisa e trabalhar é outra". De um lado do bloco de notas está o registro diário do stock de frutas e verduras e do outro, como uma coisa feita às escondidas, a poesia. De um lado o deve, do outro o haver. Para Cucurto, a poesia é "mais uma atividade"37 (citado em Soto 134) - como reza aliás a nossa epígrafe, tirado de um dos seus poemas, "Escrever poesia" - ligada mais as emoções e experiências do que a qualquer tipo de profissão, ligada mais ao espaço íntimo-privado do que ao exterior: se num momento afirma que "o ato de escrever é um ato de intimidade, quase privado até"38 (citado em Soto 190), logo dirá, depois de saber e entender que escrever é o que ele quer para o resto dos seus dias, que "não vou trabalhar mais, é uma decisão política"39 (citado em Soto 191). Porém, é interessante situar a emergência de sua figura no contexto dos anos 1990-2000 para compreender melhor o estado de forças:
Na Argentina, a precariedade do emprego, manual e intelectual, que aconteceu durante a ascensão do neoliberalismo na década de 1990, transformou a profissionalização do escritor (uma característica fundamental da arte autónoma no início do capitalismo industrial) numa multiprofissionalização: o escritor, diante da impossibilidade de viver num mercado cada vez mais marginal, dominado por empresas multinacionais interessadas em garantir a produção nas vendas, deve trabalhar em outras coisas. Ele vira não só um produtor, mas um trabalhador (vítima precária, geralmente MEI, de contratos "lixo" elaborados por editoras e pelo novo mercado de gestão cultural do estado). Então, o escritor trabalha na literatura ou na cultura - desde que tenha o privilégio de estar entre as seletas fileiras dos funcionários do trabalho intelectual. O caso de Cucurto é emblemático: um ex repositor de supermercados que, através de talento, esforço, criatividade e atrevimento fundamental no mundo editorial subterrâneo (editor de várias revistas, como La novia de Tyson, dedicada à divulgação da literatura latino-americana contemporânea) acedeu a gestão cultural como produtor de eventos da Casa da Poesia da Cidade de Buenos Aires e daí montou seu próprio empreendimento, La Cartonera, aliás, que começou nas longas horas das vigias noturnas na casa de Evaristo Carriego (sede da Casa da Poesia), onde amigos e colegas passavam a noite usando as instalações.40 (Palmeiro 211)
O percurso de Cucurto evidencia as transformações do mercado laboral argentino e o devir da sua figura está entrelaçado ao da cultura daqueles anos. E ainda assim, se continua obliterando esse devir de trabalhador do mercado a artista multitasking, como já Alan Pauls tinha denominado a Rosario Bléfari. Não considerando a escrita como um trabalho, sua extensa obra seria um elogio económico-político à preguiça. Nesse sentido, quando questionado pela relação entre arte e dinheiro, responderá:
Nenhuma. Eu acho que o artista tem que fazer a sua parte, estar imbuído de seu trabalho e pronto. Não pode ter esperanças mercantis, não estou dizendo que não existam, mas, bom, a arte não pode ter um espirito mercantil. Pelo contrário, deve ser um espaço de diálogo, experiência e reflexão. Um lugar também de inspiração e de aproximação com o outro.41 (Citado em Soto 289)
Se a escrita não é um trabalho, e o que ele faz é, basicamente, poesia e narrativa, ele não se assume como um trabalhador e, por isso mesmo, não pretende ganhar dinheiro nessas atividades. Esse chamado trabalho do artista não entra dentro dos padrões do trabalho enquanto emprego e se aproximaria ao sentido de dedicação a uma determinada tarefa e não a transformação material do mundo. Aliás, na editora em que ele participa, Eloísa Cartonera, os autores cedem os direitos autorais e não percebem ganho algum, destinado em grande parte aos recolhedores de papelão da cooperativa.42 Mesmo assim, continua chamando muito a atenção que, ainda nele, cuja produção sai do mundo do trabalho, e isso é nela tematizado constantemente, prevaleçam ideias de cunho romântico no fazer artístico. Há um descompasso entre as concepções da escrita e do trabalho: se no limiar da virada de século ou, mais precisamente, no crítico 2001 argentino, para mencionar um acontecimento, o trabalho como emprego mudou abruptamente, e a Eloísa Cartonera é um claro exemplo disso,43 a poesia ainda parece estar atrelada a um estado de forças diferente e até arcaico. Serão os poemas, como acontece por exemplo no caso de Paulo Leminski, uma forma adorniana de resistência ao capital e à mercantilização? Será considerado o trabalho que o poema requer como aquele que a Eloísa Cartonera propunha, isto é, como meio e não como fim, como motor da vida e não como simples ferramenta para ganhar dinheiro? Ou é, antes bem, a obra de Cucurto uma ode ao ócio e não ao trabalho que pertence, conforme Leonel Cherri, a uma nova imagem, na que "o trabalho literário não seria mais um tipo de trabalho, senão um ofício absurdo, ruim, improdutivo, queer ou até trash" (139) definido "não mais pela disciplina e pela acumulação temporária, pela originalidade e a qualidade criativas; mas pelo lazer e a improdutividade; pela des-criação e a ineficácia"44 (139)?45 A figura do poeta, por fim, se define por aquilo que faz (como o resto dos trabalhadores) ou por aquilo que ele é? Apagar a primeira definição e optar pela segunda implicaria atribuir, a partir de uma "vida de artista", uma aura ao poeta, adquirindo com isso sua subjetividade o estatuto de instância criadora de valor.
Nessa direção cucurtiana pode ser lido Poemas para no ir a trabajar, de Fernando Aíta, publicado em 2019, cuja epigrafe reza o seguinte: "O principal objetivo deste panfleto é que as pessoas trabalhadoras se inspirem e não forem trabalhar"46 (5). A coletânea de poemas se apresenta como um conjunto de motivos, desculpas e justificativas para se ausentar do emprego e desfrutar um dia ou vários em casa, fazendo nada, qualquer coisa que não seja trabalhar, produzir, se someter a uma hierarquia. O poema, nesse estado de forças, vira espaço de resistência, da utopia, do humor, do ócio e da improdutividade, da inoperância: há poesia porque não se trabalhou, porque o sujeito ficou com a sua primeira e, talvez, única propriedade: o tempo.
Outro sentido, nessa direção, encontramos na aproximação às artes visuais que o próprio Cucurto começou a desenvolver nos últimos anos. No meio da montagem da sua mostra Poemas graficados, realizada na Galería Jungla Hábitat de Buenos Aires, durante 2014, dirá na conversa com Facundo Soto:
E se alguém quiser comprar uma obra, Cucu, qual o preço?
O que custa um livro numa livraria.
Mas, Cucu... Mínimo uns 800 pesos, se você quiser fazer algo popular, para que qualquer pessoa que goste do que você faz possa comprar algo, mas pelo preço de um livro?
Não, não Porque a 800 pesos apenas os ricos poderiam comprar, eu não quero desenhar para os ricos, quero que qualquer um tenha um desenho em casa, certo? Essa é a ideia. Caso contrário, quantos serão capazes de comprar? Fora essa ideia da arte mercantil... Fazer uma obra e vendê-la por milhões de dólares, me parece uma total obscenidade... Não gosto disso. A brincadeira deixa de ser engraçada...47 (Soto 320)
A arte tem que estar ao alcance de todos e não só dos ricos, aliás, melhor longe deles. O preço de venda de uma de essas pinturas deveria ser igual àquele de um livro, produto massivo ou, no caso da Cartonera, produto quase único (as capas são coloridas a mão, uma por uma, cada uma distinta da outra, porém as folhas do interior são simples xerox) no entanto barato. Quando foram expostas na mostra "Deseo & ternura", na pequeníssima casa-galeria de Martin Llambí, um apartamento de um ambiente frente ao Obelisco portenho, em março de 2018, visitada por uma ou duas pessoas por vez, prévio agendamento por e-mail, as pinturas eram oferecidas a "preços populares": 500 pesos argentinos (Damore s.p.), isto é, na época, uns 24 dólares norte-americanos. Nesse sentido Cucurto se aproxima à imaginação do artista presente num dos, conforme Martín Pérez Calarco (23), cem poetas e escritores que menciona nas entrevistas, o colombiano Jaime Jaramillo Escobar. Em "Ciro de Medellín", por exemplo, retrata a vida de Ciro Mendía, poeta da fome, pobríssimo, no meio da pujante cidade de Medellín:
Mas, apesar de ele ser de Antioquia, ele não tinha depósitos nem poupança, nem
propriedades, não estava associado com ninguém nem estava autorizado a ter cartão de crédito,
isto é, não era ninguém,
porque nesta terra onde cada poeta se considera o melhor do mundo, ele só ousava ser o melhor da sua rua.48 (18)
"Sem um prato para comer, / também não tinha o que comer nem comia"49 (18), o poeta morador da rua com sua vida diária se enfrentava ao modo de ser dominante da cidade. Ou por exemplo, o poeta que, em "Perorata", enuncia sua poética, descrevendo o ofício de poeta de rua como se fosse o daqueles que fazem truques de prestidigitação, antes de ter que ir embora pela proximidade da polícia.
A pobreza é um dos tópicos da poesia de Jaime Jaramillo Escobar, a pobreza entendida enquanto fruto de uma ordem de domínio de uns sobre os outros e assumida não como falta e sim como defesa e arma de combate. Em "Visita de la reina Isabel a Colombia", tem lugar um diálogo entre os séquitos da rainha e os habitantes do país que, embora ofereçam todo quanto dispõem, não parece ser suficiente para os membros reais. A última das coisas que eles possuem, essa sim, não é oferecida: "Mas não tente tirar vantagem da nossa / pobreza. A pobreza é a nossa última arma"50 (58). Em outro diálogo, desta vez entre Evangelina e Deus, a emergência estará mais na pobreza do que na arte. E, por fim, perto da eleição do valor das pinturas de Cucurto, leremos em "El canto del siglo":
Eu vou cantar com os pobres, longe, na margem do rio, onde não nos escutem os ricos,
Porque se eles nos ouvirem, vão querer comprar nosso canto e depois o vender
a nós mesmos e fazer a venda do século.51 (67)
O canto não se vende, dirá o próximo verso. A riqueza, ela se canta a si própria. Entre Jaime Jaramillo Escobar e Washington Cucurto, podemos ler o conceito de "berreta" com que Marcelo Díaz, membro do grupo de Poetas Mateístas de Bahía Blanca nos anos de 1990, fundamentou seu primeiro livro, editado em 1998 pela editora Libros de Tierra Firme. Em conversa com Ana Porrúa, dizia: "O berreta é o mesmo que os novos ricos reverenciam como objetos kitsch, mas comprado num Tudo x 1,99 $"52 ("Contratapa" s. p.). A categoria do "berreta" daria a ver a valoração dos objetos segundo apropriados por uma determinada classe. Conforme Ana Porrúa, "o berreta também tem a ver com a pobreza, com as margens do mercado, com aquilo que perdeu sua aura"53 ("Contratapa" s. p.). E, se o primeiro livro de Díaz é Berreta, descobrimos ali uma poética que começa discutindo sua própria aura para, a partir disso, ler o panorama político imediato, aquela "normalidade inabitável" ("Poemas" 2). Relidos pela lente berreta, Marcelo Díaz reescrevia célebres poemas de Rubén Darío, Wallace Stevens e Charles Baudelaire, fazendo de um dos animais tradicionais da poesia, o cisne, apenas um elemento degradado à decoração esquecida na mata do jardim,
[ú]nico sobrevivente
de um país difícil
num momento difícil;
indiferente ou digno,
quem se importa?54(Berreta 11)
O outrora galhardo símbolo da poesia, degradado a mero cimento berreta cagado pelos pombos, sai da alta poesia para ser parte de um cenário em ruínas.
A Arturiada
Muitos dos poetas até aqui lidos apareceram agrupados na assim chamada "Arturiada", Monstruos. Antologia de la joven poesia argentina, a cargo de Arturo Carrera, publicada originalmente no site do Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI), em 1998, e editada em papel em 2001 pelo Fondo de Cultura Económica. No prefácio, Carrera se justificava: "definimos hoje a presente antologia ou florilégio como uma seleção do monstruoso, isto é, do que é exibido além da norma (monstrum) como a palavra que se dispersa e se espalha apenas confiada no seu sucesso estético (micropolítico) teleonômico"55 (11). Seguindo a hipótese de Leónidas Lamborghini de que grande parte da poesia e da arte contemporânea "caracteriza-se por sua percepção particular do monstruoso como um fato cotidiano, como mundo alienado, como costume"56 (citado em Carrera 11), Carrera recortava dos seus jovens contemporâneos um corpus de poesia a partir da sua ideia de "acontecimiento fulgurante", medido "a plena pérdida" (12). Lembrando Murilo Mendes, na sua resenha da antologia, Raul Antelo dizia: "É possível ler ali uma das peculiaridades do monstro: seu prazer na solidão. A ideia conota uma ameaça: o monstro coloca em perigo o sistema de reproduções e linhagens; e com ele periga o andaime alfabetizado, a cena da escrita"57 (s. p.). As duas definições do monstro se encontram numa terceira, dada por César Aira:
O monstro é único, não tem com quem se casar nem com quem procriar descendência. O monstro é sempre como que um símbolo da extinção, porque o monstro constitui uma espécie, mas uma espécie constituída por um só indivíduo... Por isso costuma-se dar-lhe o dom da imortalidade, costuma-se fazê-lo sobreviver de alguma maneira distinta daquela que nós encontramos, que é a de nos reproduzirmos, e por isso os monstros têm, enfim, essa melancolia do ser que se sabe condenado a uma extinção definitiva, mas que não é de todo definitiva: a posteridade do monstro é sua legenda. Nisso o monstro é um ente quase artístico, porque o único que pode deixar é a história que foi.58 ("Monstruo" 337)
Além dos poemas e poetas já trabalhados aqui, do conjunto de Monstruos surgem outros indícios ou sobrevivências ameaçantes nos quais gostaria agora de me deter.
Depois de uma breve síntese bio-bibliográfica, cada poeta comentava alguma coisa - se queria - sobre sua ars poética. Ariel Schettini afirmava na sua que "a poesia cria a ilusão de ser - embora não seja verdade - o último lugar onde existe um modo de produção artesanal de objetos estéticos"59 (178) e que, por isso, no contemporâneo, "se transformou no prisma privilegiado para detectar a área mais lábil da mudança social"60 (178). Por sua vez, Santiago Llach fechava a sua dizendo: "Nasci um pouco antes da crise do petróleo. Logo depois, o devir histórico deu origem ao aparecimento, no aqui e agora, do terror. Para me recuperar, leio, amo e copio os clássicos: meus contemporâneos"61 ("Ars poética" 80). Essa situação se fazia evidente no seu extenso poema "Arnaut en Cachaca", ali apresentado. Com epígrafe de Augusto de Campos, explicando como se devia pronunciar o nome provençal, Llach imaginava uma sobrevida quase zumbi do poeta nos anos dois mil portenhos, repartidos entre a política da aliança democrática e a cena da poesia jovem. De algum modo, era uma expansão de Punctum, na trilha proposta pela contracapa anónima da reedição de vox / Mansalva de 2011, relendo os erros do "relato do progresso" e as sobrevivências do menemato no governo posterior, a presidência de Fernando de la Rúa, sobrevivências que não eram mais que a continuidade disfarçada "do processo denominada de reconstrução nacional"62 (83), denunciando um pacto económico com "os executores da violência legal / monopolizada pelo estado e com os donos das estações da tevé"63 (81) e o rol inocente dos artistas:
Os artistas reclamam em espaços livres
cedidos pelo administrador cultural estrela da Administração de la Rúa,
herói vang do inverno democrático
cedido gentilmente ao seu governo
pelo reitor achanchado da universidade secular.64 (83)
Ana Porrúa lia na figura do monstro o leitmotiv da poesia recente, porque ali "se expõem deliberadamente as fissuras do sistema social e político" ("Notas" 125). A paródia do artista, esse monstro, que "para ganhar o seu sustento, escreve relatórios sobre arte " (126), era similar ainda àquela presente no Gambarotta de Punctum ou no Rubio de Música mala.
Num dos poemas apresentados de Martín Prieto, "En la biblioteca, trabajando", temos a rara oportunidade de ler uma afirmação do trabalho de escrita:
O bibliotecário - bonito, magro, gentil
até a exasperação - escreve com letra desleixada
um número de código, uma data, "vai trabalhar?"
TRABALHO // 3 Coisa produzida pelo entendimento.
// 5 Esforço humano aplicado à produção de riqueza.
É usado em contraste com capital.
Sim, vou produzir uma coisa pelo entendimento.
Vou ler, vou comparar, vou escrever, vou trabalhar.65 (143)
A seleção dos sentidos do verbo trabalhar permite definir ao trabalho feito na biblioteca, de índole intelectual, também como um trabalho e, ao mesmo tempo, contrapor isso à produção de capital. Mas o que aparece a continuação no poema não é a evidência da concentração no trabalho senão a dispersão na leitura das inscrições religiosas, afetivas e políticas presentes no edifício da biblioteca. A interrupção do trabalho previsto de antemão permite a escrita do poema, feito durante o tempo idealizado para o trabalho de pesquisa na biblioteca. Porém, e voltando as definições, esse trabalho fruto da dispersão e do acaso é também um trabalho, dado que estão presentes os passos com que o poeta definiu sua ocupação: leitura, comparação, escrita.
A arte poética de Alejandro Rubio é, talvez, a mais lembrada de todas: "La lírica está muerta" ("Ars poética" 160), começava afirmando, de modo polémico. Ampliava:
Pode-se dizer que estamos em um momento de barbárie e que é o dever dos poetas manter a chama acesa por um futuro melhor. Seria necessário responder que a lírica não foi um espírito, mas uma manifestação social, e que valeria mais a pena apostar em uma nova posição diante da linguagem na qual os traços da contemporaneidade são questionados.66 ("Ars poética" 160)
Conforme Martín Prieto, o que Rubio fez foi "dar para a lírica um caráter histórico (a lírica não foi um espírito, ele diz, mas uma manifestação social) e incorpore-a na tradição"67 ("Neobarrocos" 40). O novo olhar dessa tradição devia colocar o presente num primeiro plano sob o fundo do passado. Essa sua intervenção dava a ver um dos gestos da poesia dos anos noventa, assinalando outro lugar possível para a poesia, já não mais simples ornamento estético e sim contestação, provocação, em definitiva, a construção da voz que diz as coisas que a racionalidade emudece.
No seu inacabado Tentativa de uma história da poesia lírica, Herder colocava a hipótese da origem da poesia lírica no "estado mais natural ao homem" (49), a necessidade e a carência dos povos, atendidas pela religião. A poesia, nesse sentido, era efetiva e estava definida pela paixão e pela ação e, por sua vez, o poeta - muitas vezes sacerdote e governante, douto e herói - era um mediador entre a natureza e os homens, de índole sobre-humana e até divina, porque o conteúdo ou modo de apresentação de seus versos ultrapassava a capacidade de invenção dos homens. Nesse estado de coisas, a poesia lírica participava da história e esse era seu valor. Se, agora, seguimos a Rubio e entendemos a poesia lírica apenas como uma manifestação social própria da história da poesia, com a morte da lírica, ele buscava explicitar a ameaça do monstro, ateia e anaurática. No entanto, no 2001 argentino, as mães da poesia voltaram a ser a necessidade e a carência, embora (des)atendidas por outra religião, a religião do dinheiro. A poesia monstruosa trazia consigo alguma sobrevivência do seu passado lírico: a poesia era, mais uma vez, pathos e ação.
A poesia, ou melhor, a ideia de poesia que ainda parece vigorar, está presa de uma distinção dos tempos que já Aristóteles fazia entre um tempo de liberdade, alheio a qualquer tipo de determinação e necessidade, esforços ou preocupações e outro tempo dedicado a produzir o útil e preciso, o tempo de trabalho. A divisão do tempo descansava na existência ou na falta do ócio. O momento da filosofia e, por isso mesmo, da poesia estava além do trabalho, da necessidade e da utilidade. Os homens livres não trabalhavam, os indignos sim, comerciantes, escravos e párias. Se a Reforma protestante modificou a noção de trabalho, depositando nela uma dimensão teleológica de redenção e glória, também mudou a ideia de ócio, agora tempo livre do trabalho (é verdade, já não é o ócio a perspectiva a partir da qual se define o tempo e sim sua contraparte, o trabalho) usado para recuperar a capacidade laboral e voltar, com mais forças, às tarefas. Agora não há mais um verdadeiro descanso do trabalho, apenas pausas. Não há mais um tempo além do trabalho, todo tempo é tempo de trabalho, embora profanado, sem glória nem redenção.
Em "Los poetas del 31 de diciembre de 2001", crónica publicada em El País, de Espanha, César Aira propunha pensar novos valores - porque os valores são históricos e os acontecimentos do dezembro de 2001 argentino tinham mudado nossa história - para esses monstros que exigiam uma redefinição da arte e da literatura desses tempos. A anedota que apresentava para fundamentar seu raciocínio eram os livrinhos de poesia, "gratuitos e fantasmais, acidentes da História que ilustram de modo exemplar"68 (s. p.), que tinham sido impressos graças a promessa de um subsídio do Ministério da Cultura que, crise mediante, foi - no melhor dos casos - pago muito a posteriori e com as editoras quebradas. Esse foi o caso, por exemplo, de Ediciones del Diego ou de Belleza y Felicidad - "o nome já é um programa de resistência"69 (s. p.), dirá dela Aira. Se "[a] arte acaba sempre por ser negociável, portanto aceitável; basta para isso confiná-la nos lugares que garantem sua guarda, ou seja, sua imunidade" (Didi-Huberman, "Comemorar" 55), a garantia que o subsídio público dava a essas obras assegurava sua auratizacão. Porém, a irrupção da crise, a desvalorização da moeda e a quebra das editoriais cortaram o caminho triunfal dos monstros. De todos modos, assegurava Aira, com os valores do passado, esses poemas eram uma fraude. Com os valores do presente, "esses poemas adquirem uma cor de necessidade"70 (s. p.). E se, como afirma Byung-Chul Han, "o dinheiro é um objeto particular, dado que é o valor"71 (24), a proposta de Aira era similar a contemporânea dos Venus.72 Novas definições, novos valores: da fraude à necessidade esteve a monstruosa poesia da virada do século, obras sem rabo nem cabeça,73 que, como as diferentes moedas nacionais e estatais que começavam a circular naquela época, procurava ser outra forma de troca, moeda de escasso ou nulo valor, inestimável em todo caso, interrupção dos fluxos do tempo, busca do tempo usurpado e reconfiguração do futuro, acontecimento fulgurante apenas medido a plena perda, gratuito e fantasmal.
Referências
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