DOI: https://doi.org/10.15446/rcdg.v24n1.38138
*Os resultados aqui apresentados referem-se a uma pesquisa maior em fase de conclusão, intitulada ”Cultura e poder na formulação de
políticas públicas de desenvolvimento territorial e cultural: um estudo sobre articulação de escalas geográficas e regionalização institucional
no estado da Bahia“, a qual é coordenada pelo Professor Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa, pesquisador do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que também é, juntamente com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), o financiador deste projeto.
**Geógrafo e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil; membro do grupo de pesquisa:
Espaço Livre de Pesquisa e Ação.
Endereço postal: Universidade Federal da Bahia, Rua Barão de Geremoabo, Campus Universitário de Ondina. Ondina 40170115 - Salvador,
BA - Brasil.
Correio eletrônico: sergioborges25@gmail.com
***Geógrafo e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Geografia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil; membro do grupo de pesquisa:
Espaço Livre de Pesquisa e Ação.
Correo electrónico: henriquebna@gmail.com
RECEBIDO: 22 DE MAIO DE 2013. ACEITO: 22 DE JANEIRO DE 2014.
Artigo de pesquisa sobre municipalização, política pública e gestão municipal.
Resumo
Este estudo estabelece uma relação entre
desigualdade territorial, espaço político
local, municipalização, políticas públicas
de cultura e gestão municipal para a
construção de um conceito de cidadania
cultural. Busca-se construir uma
explicação a partir de estudos empíricos
sobre o processo de municipalização
e institucionalização da cultura nos
Territórios de Identidade Recôncavo
Baiano e Região Metropolitana de
Salvador, no Estado da Bahia, para a
construção de uma cidadania cultural.
Trata-se de uma pesquisa exploratória,
apoiada metodologicamente em
documentação direta e indireta.
Realizaram-se trabalhos de campo
no recorte geográfico do estudo
para a aplicação de entrevistas
semiestruturadas com os gestores
culturais, o que busca dar voz não só aos
agentes sociais envolvidos no processo.
Palavras-chave: cidadania cultural,
espaço político, município,
municipalização, sistema municipal
de cultura.
Resumen
Este estudio establece una relación
entre desigualdad territorial, espacio
político local, municipalización,
políticas públicas de cultura y gestión
municipal para la construcción de un
concepto de ciudadanía cultural. Se
busca construir una explicación desde
estudios empíricos sobre el proceso de
municipalización e institucionalización
de la cultura en los Territorios de
Identidad del Recóncavo Bahiano y
Región Metropolitana de Salvador, en
el Estado de Bahia, para la construcción
de una ciudadanía cultural. Se trata de
una investigación exploratoria, apoyada
metodológicamente en documentación
directa e indirecta. Se ha realizado
trabajo de campo en la zona de estudio
para la aplicación de entrevistas
semiestructuradas con los gestores
culturales, lo que buscó dar voz a otros
agentes involucrados en el proceso.
Palabras clave: ciudadanía cultural,
espacio político, municipio,
municipalización, sistema municipal
de cultura.
Abstract
This study establishes a relationship
between territorial inequality, local
policy space, municipalization, public
policies on culture, and municipal
management for the construction of
a concept of cultural citizenship. The
objective is to construct an explanation
on the basis of empirical studies of
the process of municipalization and
institutionalization of culture in the
Territories of Identity Reconcavo
Baiano and Metropolitan Region of
Salvador in the State of Bahia, for the
construction of a cultural citizenship.
This was an exploratory research
project, methodologically based on
direct and indirect documentation.
In order to include individuals other
than the social agents involved in
the process, field work was done in
the geographic area of the study in
order to carry out semi-structured
interviews with the cultural managers.
Keywords: cultural citizenship, policy
space, town, municipalization, municipal
cultural system.
Uma pesquisa atenta aos periódicos geográficos de divulgação no âmbito nacional permite afirmar que o município, enquanto espaço político local, ainda não faz parte da agenda de estudos de muitos geógrafos brasileiros, o que deixa claro o pouco interesse que este tema tem despertado na maioria dos acadêmicos.
Na literatura geográfica contemporânea é tarefa mais difícil ainda encontrarmos pesquisas que tenham o município como escala do fenômeno político institucional e o seu papel como espaço político para aplicação de determinadas políticas públicas essenciais ao acesso aos direitos sociais inscritos na cidadania. O município é aqui defendido como a escala política mais próxima dos cidadãos. É, portanto, nessa escala local em que ocorre o exercício concreto da cidadania, pois é nele que as políticas públicas se concretizam.
As políticas públicas locais, especialmente as de cultura, também são pouco privilegiadas nas pesquisas geográficas. É nesse sentido que se procurará evidenciar aqui, a relação entre política pública, espaço político institucional e prática da cidadania.
O foco de análise é o processo de institucionalização e municipalização da cultura no Estado da Bahia, a partir do ano de 2007, o qual é apontado nos discursos governamentais como um ”novo“ modelo de desenvolvimento de políticas públicas, que objetiva concretizar o exercício da cidadania cultural em todo o Estado a partir da criação da regionalização do Estado em Territórios de Identidade Cultural (figura 1).
A ”nova“ política pública de cultura formulada pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia — doravante, Secult-Ba tem como diretriz básica a institucionalização da cultura nos municípios. De acordo com a Secult-Ba, o objetivo principal é o de promover o desenvolvimento sociocultural local por meio da criação de um lastro institucional, da descentralização de recursos e investimentos, além da democratização dos processos de formulação e implementação das políticas culturais. Assim, essa política é colocada pelo governo estadual como o âmago do processo de desenvolvimento territorial mais justo e equilibrado entre as diferentes unidades administrativas do Estado a partir do reforço das municipalidades.
A institucionalização e a municipalização da cultura têm como pilar a constituição de um Sistema Municipal de Cultura — doravante, SMC, composto por alguns elementos estruturantes essenciais, a saber: Plano Municipal de Cultura, Conselho Municipal de Cultura e Fundo Municipal de Cultura.
De acordo com a prática discursiva do Estado, a organização e o fortalecimento dos SMC têm como principal objetivo a consolidação da área cultural nas municipalidades: municipalização da cultura por meio da sensibilização da gestão municipal e dos dirigentes locais de cultura, bem como dos demais agentes públicos e agentes culturais (artistas), o que valorizaria a percepção da cultura como um vetor de desenvolvimento econômico e social (Borges 2012).
A consolidação dos sistemas de cultura nos municípios assume, assim, uma posição central na construção de políticas públicas participativas, a partir da ampliação da participação social no espaço político, com a criação de novos espaços de diálogo e negociação entre Estado e sociedade civil organizada.
Essas estratégias políticas, como têm sido veiculadas, são, a nosso ver, um importante instrumento para a formatação de políticas públicas que transcendam as gestões e instabilidades políticas, ou seja, garantam a continuidade dos projetos, independentemente do gestor. No entanto, para uma afirmação dessa natureza, exige-se uma análise crítica mais apurada sobre o seu desenvolvimento.
O estudo também realiza uma investigação sobre a distribuição territorial das instituições culturais nos municípios, aquelas essenciais para o acesso da população local aos direitos culturais inscritos na Constituição Federal Brasileira de 1988. Acredita-se que o exercício concreto da cidadania é afetado pela territorialização desigual dessas instituições, como ocorre nos recortes da pesquisa.
Nesse sentido, este trabalho faz uma análise crítica aplicada ao processo de formação e implantação dos SMC, isto é, do processo de municipalização da cultura nos Territórios de Identidade Recôncavo (figura 2) e região metropolitana de Salvador (figura 3), no Estado da Bahia. Avalia os limites, possibilidades, avanços e desafios dessa política cultural, além de destacar a cultura enquanto um fator de desenvolvimento econômico e sociocultural.
Municipalização da gestão pública: o caso dos sistemas municipais de cultura
O processo de municipalização da gestão pública está atrelado à descentralização dos papéis do Estado e à mudança de escala territorial de condução das políticas sociais, em decorrência da promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, como resume Barbosa:
A descentralização da gestão do Estado, durante o período de regime militar no Brasil (1964-1985), foi uma das bandeiras político-ideológicas dos movimentos sociais, que cada vez mais passaram a questionar o caráter centralizador e autoritário de execução de um poder discricionário.
É com base nessa perspectiva que autores como Fonseca, Silva e Vieira (2010) e Barbosa da Silva, Jaccoud y Beghin (2009) destacam que a Constituição de 1988 promoveu o surgimento de inovações institucionais descentralizadoras, ao conceder uma maior autonomia política, administrativa e financeira aos estados e municípios, e reconhecer estes últimos como entes federativos.
Nesse contexto, o município consolidou-se como uma escala política importante (Azevedo 2012), pois passou a ser reconhecido como um ente federativo com grande autonomia na tomada de decisões; passou a exercer novas funções e papéis políticos. São por esses e outros motivos que esse assunto constitui-se como tema de extrema relevância para os estudos geográficos, na perspectiva de uma nova geografia política (Barbosa 2010; Castro 2003).
A esfera municipal, devido às suas características constitucionais, torna-se um ”espaço político institucional por excelência“ (Castro 2003, 2010) e é sugerido por Castro (2012, 45) como uma ”possibilidade tanto conceitual quanto empírica para a geografia“. É o ente territorial e a escala geográfica mais adequados para a aplicação de determinadas tipologias de serviços públicos essenciais à realização da cidadania (Santos 2007a).
Dessa forma, os princípios de descentralização e mudança na escala territorial de decisão e de ação governamental estão intimamente associados ao de municipalização das políticas públicas e, portanto, ao reconhecimento do espaço político local como a escala geográfica mais adequada para o planejamento, gestão, coordenação e execução de políticas públicas.
Dentro desse contexto, criou-se uma enorme expectativa sobre a descentralização e a consolidação da escala local, isto é, do município enquanto espaço político para a garantia e a promoção de direitos e justiça social para, assim, superar desigualdades sociais, como salienta Carvalho:
Conforme evidenciado nas palavras de Carvalho (2006 apud em Barbosa 2010), associada à intenção política de descentralização e municipalização está a aposta na democratização e participação cidadã na coisa pública. Haja vista que o estabelecimento de uma interlocução entre sociedade civil e poder público, no âmbito da formulação, execução e gestão das ações permite um maior controle social para com o Estado.
Ainda nesse contexto, o processo de descentralização apontava para uma nova forma de gestão e execução de políticas públicas, destaca Raichelis:
De acordo com a legislação brasileira, é responsabilidade do poder local, representado pelo município, atuar no planejamento e gestão da política pública de cultura local. Dessa forma, o Sistema Municipal de Cultura é uma interessante estratégia de descentralização do processo de formulação e implementação de políticas de cultura, com base na institucionalização e municipalização dessas políticas, por meio do reforço das municipalidades —poder local— no processo de gestão pública.
O sistema municipal de cultura (smc)
O Ministério de Cultura instituiu em 2010 o Sistema Nacional de Cultura (SNC), um instrumento que possibilita a articulação entre os três entes públicos: federal, estadual e municipal. No que tange às políticas públicas culturais, este objetiva:
O SNC também assume uma importância estratégica, pois é ”[…] o instrumento mais eficaz para responder a esses desafios através de uma gestão articulada e compartilhada entre Estado e Sociedade“, por meio da integração dos três níveis de Governo para uma ”[…] atuação pactuada, planejada e complementar, seja democratizando os processos decisórios intra e intergovernos e, principalmente, garantindo a participação da sociedade de forma permanente e institucionalizada“. (SNC, Conselho Nacional de Política Cultural, Secretaria de Articulação, Ministério da Cultura e Brasil - Governo Federal 2010, 13)
O Ministério da Cultura (MinC), por meio do Conselho Nacional de Política Cultural, prevê, com a criação e consolidação do Sistema Nacional de Cultura, construir uma estratégia comum para implementação dos sistemas municipais e estaduais de cultura.
Os Sistemas Estadual e Municipal de Cultura se transformaram nas principais diretrizes no campo das políticas culturais. Resultam de um processo de articulação, gestão e promoção conjunta de políticas entre os entes federativos e a sociedade civil; com isso, visam à promoção do desenvolvimento cultural, de forma descentralizada, e incentivam a implantação de um modelo de gestão cultural que promova a sustentabilidade das ações de desenvolvimento sociocultural nos Territórios de Identidade do Estado da Bahia.
A máxima da política territorial desenvolvida no Estado da Bahia é a descentralização da ação do Estado nas unidades territoriais mais favorecidas em gestões anteriores, para, assim, democratizar e interiorizar as políticas públicas, recursos e investimentos nas áreas historicamente menos favorecidas.
Desde então, a Secult-Ba afirma trabalhar na articulação e formação de redes entre as representações da sociedade civil e o poder público, em todas as suas escalas de atuação. O discurso oficial da Secretaria é de uma gestão pública articulada da cultura. Segundo o órgão, também vem trabalhando na criação de uma estrutura que possibilite a sua atuação em todo o Estado.
A Secult-Ba afirma estar trabalhando na gestão e na institucionalização da cultura por meio do recorte municipal e do desenvolvimento territorial desta. As suas ações objetivam estimular a criação de Sistemas Municipais de Cultura e fazer com que os municípios compartilhem atribuições com os governos estadual e federal para, assim, potencializar a aplicação de recursos e a operacionalização da política cultural, com a institucionalização da cultura nos municípios.
De acordo com a Secult-Ba (2009), a política cultural formulada pela secretaria tem dado grande atenção à implantação do Sistema Estadual de Cultura —doravante SEC —Planos Municipais de Cultura, Conselhos Municipais de Cultura e Fundos Municipais de Cultura)—, devido à sua importância enquanto instrumento de planejamento, execução e avaliação da política cultural.
O SEC é uma transposição de um modelo adotado em nível federal para o estadual; está intimamente ligado ao SNC e constitui-se numa articulação em rede das instituições públicas e organizações da sociedade civil, para a execução das políticas de desenvolvimento territorial.
Para a sua efetivação, torna-se necessária a criação de instrumentos operativos, instâncias de gestão, bem como outros elementos, por exemplo:
Os instrumentos operativos básicos (Conselho de Cultura, Plano de Cultura e Fundo de Cultura), além das Conferências Municipais de Cultura, são os elementoschave e essenciais à concretização dos SMC, pois estes engendram a atuação sistêmica e dinamizam os demais elementos constitutivos do sistema.
As conferências constituem-se em espaços políticos abertos à participação popular, em articulação com o poder público, para se pensar, discutir e formular propostas de políticas públicas. Numa conferência pública, os participantes dialogam e aprovam sugestões (propostas e diretrizes), encaminhadas às instâncias administrativas do governo.
A realização das conferências deve ser regida pelos princípios básicos da democracia (liberdade, comunidade, igualdade e autonomia), ter um caráter participativo efetivo, pois a sua prática deve suplantar, de certa forma, as antigas formas autoritárias de se fazer políticas públicas.
Os Conselhos Municipais de Cultura são órgãos colegiados, de composição paritária de representantes da sociedade civil e poder público. São instâncias com funções propositivas, opinativas, consultivas, estimuladoras e fiscalizadoras de políticas culturais no âmbito do município, por exemplo, na elaboração e condução do Plano Municipal de Cultura:
Além da supervisão e fiscalização do Fundo Municipal de Cultura, também compete ao Conselho de Cultura outras responsabilidades, conforme resume a Secult-Ba (2009, 11):
Enquanto instrumento de gestão, o Plano é um documento formal, resultante de um processo de planejamento que deve expressar objetivos, metas e programas para o desenvolvimento de determinadas ações:
O Plano Municipal de Cultura deverá incorporar as informações obtidas na Conferência de Cultura do município; realizar uma caracterização da localidade: reunir um conjunto de dados e informações (aspectos históricos, físicos e geográficos, demográficos e sociais); conhecer a realidade da cultura no município: diagnóstico cultural (identificar os desafios para o desenvolvimento da cultura municipal); além de apontar diretrizes (linhas de orientação para os programas e ações) e programas estratégicos.
Para o desenvolvimento das atividades culturais, necessita-se de apoio financeiro (investimentos e recursos), através da ação de instrumentos de fomento e financiamento, por exemplo, um Fundo —mecanismo de extrema importância para o financiamento de projetos e atividades, que possibilita assim, sua plena realização—:
Sabe-se que, em alguns municípios os orçamentos públicos são escassos e insuficientes, a maior parte desses advém da União. Este é um dos argumentos para falta de prioridade e prestígio dado pelo poder público local à cultura. A percepção do potencial gerado pela cultura como um fator desenvolvimento econômico e social por parte dos gestores municipais é de fundamental importância para uma mudança definitiva desse diagnóstico. A criação do Fundo Municipal de Cultura coloca-se como uma alternativa financeira para o campo cultural, de modo a assegurar a possibilidade de produção cultural pelos indivíduos, isto é, o direito à cultura, inscrito na Constituição de 1988.
Território e cidadania: as desigualdades socioespaciais no território brasileiro
Sabe-se que as diferenças internas num território, sejam econômicas, sociais ou culturais, são resultantes de um processo de ocupação, construção e organização do espaço por meio do trabalho, pelos grupos sociais. O espaço geográfico é assim criado/produzido, reproduzido e organizado de maneira diferenciada no tempo, por meio do trabalho —ativo social—.
A questão histórica das desigualdades socioespaciais no território brasileiro foram engendradas por ações de cunho político. São elas sujeito e objeto de decisões políticas. Os seus desníveis espaciais são: produto político e fator da política, uma vez que foram construídos/produzidos e organizados histórica e politicamente (Castro 1992).
A constituição do Estado-nação brasileiro e a organização política do território nacional são resultados concretos da dinâmica de ocupação do território, da organização das sociedades locais, dos conflitos de interesses e das decisões políticas. Assim, a sua configuração espacial atual, caracterizada por fortes desníveis e contrastes espaciais (desigualdades regionais), foram produzidas historicamente pelas relações sociais (tensões e conflitos) entre Estado (ator institucional) e atores sociais, materializadas e territorializadas no espaço.
Esses desníveis espaciais inerentes ao território brasileiro, como, por exemplo, as disparidades na distribuição da renda, o acesso desigual ao mercado de trabalho, à educação, aos bens e equipamentos culturais, aos serviços de infraestrutura, se colocam como entraves para o exercício pleno da cidadania pelos seus habitantes.
Porém, as decisões políticas que visam exercer o controle dos conflitos tendem a organizar o território da forma mais adequada aos interesses e às formas de vida de todos, dos mais influentes ou daqueles que detêm o poder.
A territorialização das instituições públicas burocráticas, das decisões no que concerne à localização das agências governamentais e à distribuição e alocação de recursos públicos e privados são vetores de organização territorial. Estabelece-se, então, um vínculo inexorável entre o problema das condições materiais necessárias ao exercício da cidadania e as desigualdades socioespaciais num determinado território.
A formulação e a implementação de políticas públicas são, ou pelo menos devem ser, a expressão material da tentativa de controlar e minimizar os conflitos, pois são instrumentos de intervenção no espaço —(re) organização territorial—. Nesse sentido, a disponibilidade e a localização de um aparato institucional a serviço da população é expressão de decisões políticas e, ao mesmo tempo, é a condição de oferta de políticas públicas.
Nessa perspectiva, compartilhamos das ideias de Castro (2010, 2011), ao defender que ”a cidadania tem uma forte dimensão espacial, o que a torna uma questão para a geografia“ e, de Serpa (2011, 38), ao sustentar que se há alguma ”especificidade do conhecimento geográfico relativo às políticas públicas, ela está na dimensão espacial“ (Castro 2010, 199).
Assim como Serpa (2011), acreditamos que a geografia pode se pronunciar e contribuir para a formulação e implementação de políticas públicas no território nacional. De acordo com o estudioso:
Considerar o espaço geográfico como categoria de análise do problema da cidadania no Brasil é a proposta de Milton Santos em O espaço do cidadão. Ao tratar da questão da cidadania no território nacional pelo ângulo geográfico, Santos defende um modelo cívico formado por dois componentes: a cultura e o território.
Acredita-se que a política pública social é instrumento de garantia, promoção e reparação de direitos sociais e que existe uma relação inexorável entre a ”prática cidadã e o uso do território como condição da democracia“ (Barbosa 2010). Nessa concepção é fundamental compreender o território como:
Castro, em suas reflexões sobre a dimensão espacial da cidadania, tem como base duas perspectivas. Na primeira, considera a cidadania enquanto prática do cotidiano social que ocorre no território. A segunda perspectiva é
No Brasil, a existência formal de direitos sociais, civis e políticos garantidos por lei e inscritos na Constituição da República, bem como as possibilidades de exercê-los são afetados por profundas desigualdades que atravessam o território nacional.
Nesse sentido, do ponto de vista legal, para que os direitos assegurados pela constituição sejam plenamente usufruídos, é preciso haver a condição de existência de uma base infraestrutural do Estado. No dizer de Mann apud Castro, ”é a rede institucional no território nacional que concretiza o exercício da cidadania assegurado por lei“ (2003, 11).
A consagração da cidadania, portanto, requer o respeito ao indivíduo, desde os princípios gerais (universais) até aqueles mais particulares, ou seja, um corpo de direitos concretos e individualizados; como aponta Santos: ”Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna“ (2007a, 19).
Na cultura política ocidental contemporânea, a democracia moderna tem os direitos civis, políticos e sociais como base, nos quais se assenta a cidadania —o ser cidadão—. De acordo com Castro, os direitos civis são:
Esses direitos se configuram naquilo considerado como sendo os elementos essenciais à justiça social, conjunto de ações — ”organização e a gestão do espaço sendo instrumentais a uma política efetivamente redistributiva […] para a totalidade da população, não importa onde esteja cada indivíduo“ (Santos 2007a, 18).
A cidadania é um conjunto de práticas políticas e sociais (direitos e deveres), que variam no tempo e no espaço, como afirma Castro:
Em outras palavras, o acesso aos direitos sociais, políticos e civis ou o exercício concreto da cidadania é afetado pela distribuição territorial desigual dos equipamentos sociais à disposição da sociedade.
Para Castro, ”a existência das condições materiais para o exercício da cidadania“ continuam sendo ”a questão central para os países que não alcançaram uma ubiquidade territorial das instituições que garantem ao cidadão o exercício dos seus direitos“, como no caso brasileiro (2003, 8-9).
No Brasil, como na maioria dos países de democracia retardada, as condições de suporte material do espaço, ”numa situação de profundas disparidades sociais e regionais“, afetam a cidadania enquanto direito, prática e ação (Castro 2003, 11).
O problema das instituições e da sua territorialidade constitui-se no âmago da análise geográfica sobre as condições estruturais (bases institucionais) para a realização da cidadania. O estudo dessa questão permite revelar os complexos institucionais presentes num território.
Concebemos como instituição um conjunto de agências e órgãos públicos, aparato judiciário e legal —instituições políticas, econômicas e sociais—. Elas são permeadas por uma intencionalidade política:
A densidade institucional —o número, a diversidade e a qualidade das instituições numa determinada localidade do território— constituem-se numa condição para a prática da cidadania. Os diferentes e desiguais arranjos espaciais dos complexos institucionais são também problema de localização.
Nesse sentido, os espaços institucionais são de vital importância à territorialidade da ação social e, por outro lado, as instituições constituem-se na própria territorialização das ações de direito e justiça social.
A esfera municipal e a construção da cidadania cultural
Em seu estudo sobre divisão municipal e o exercício da cidadania, Azevedo apresenta alguns elementos, os quais fazem do município brasileiro ”uma peculiaridade como espaço político“, isso se deve à sua ”autonomia política, poder de legiferar e arrecadar impostos“ (2012, 26). O município brasileiro é uma escala política e, portanto, não convém que ele seja desconsiderado nas investigações geográficas que tratam da relação entre o espaço e a política.
Castro (2010) nos lembra que é nessa escala que as políticas públicas são concretizadas e, assim, constituise no espaço político mais próximo dos cidadãos. Nesse sentido, Azevedo (2012) defende que ”a importância do município no Brasil é significativa, a partir do momento que ele é também […] o lugar do aprendizado da cidadania e da democracia —do exercício do direito político e do acesso às políticas públicas“ (Castro apud em Azevedo, 2012, 27).
Enquanto objeto de estudo geográfico o município pode ser ”[…] o espaço que favorece o fortalecimento dos vínculos horizontais, a solidariedade social e o desenvolvimento do capital social“ (Castro 2010, 36). Compreendê- lo dessa forma é de fundamental importância para que se possa estabelecer uma relação entre aquele e as políticas públicas que serão aqui tratadas.
Essa relação é essencial para a construção daquilo que denominamos de uma cidadania cultural, por meio da valorização do município enquanto escala política local e cotidiana, em que as políticas públicas de cultura se materializam em benefício dos cidadãos. Isso porque, como destaca Castro, o município é uma escala onde ”[…] a atuação do poder público é mais visível, tanto com relação à disponibilidade do aparato institucional para a oferta de políticas públicas direcionadas para a população residente quanto com relação aos seus resultados“ (2003, 17).
A cidadania cultural tem como princípio básico o direito à cultura, direito do cidadão ao acesso aos bens e às obras culturais, assim como o direito de criar, de fazer cultura e de participar das decisões políticas sobre a cultura (Borges 2012, 16).
Uma cidadania cultural exige a institucionalização de instâncias regionais de formulação, implementação e compartilhamento das políticas e da gestão cultural, bem como a institucionalização de equipamentos culturais (museus, teatros, cinemas etc.), além das instituições científicas.
Uma prática da cidadania cultural exige a consolidação e a distribuição equitativa de uma infraestrutura cultural em todo o território, bem como a garantia de acesso aos meios de fruição cultural, além da valorização e da difusão das manifestações culturais. Estas são algumas das diretrizes políticas divulgadas pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia em seu programa de políticas públicas de cultura para o Estado, haja vista a implementação do Sistema Estadual de Cultura e da municipalização da cultura em todo o Estado, por meio da criação dos SMCs.
De acordo com Leitão (2009), um grande desafio que se coloca sobre a cidadania é o de as políticas públicas de cultura estenderem o conceito de cidadania. A autora considera que a cidadania cultural teria duas vocações fundamentais: ”afirmar os direitos e deveres dos indivíduos face às suas culturas e às demais culturas; determinar os direitos e deveres de uma comunidade cultural frente às demais comunidades culturais“ (Leitão 2009, 45).
Nessa perspectiva, acredita-se que alguns elementos presentes no discurso da Secretaria Estadual de Cultura sobre a política de cultura formulada e implementada no Estado a partir do ano 2007, especialmente os SMCs, se constituem numa importante ação que caminha no sentido de valorizar a autonomia das políticas dos municípios baianos na implantação das políticas públicas de cultura.
Nas seções seguintes realiza-se uma análise detalhada sobre o desenvolvimento dessa ”nova“ política de cultura pelo governo estadual. Apontam-se as dificuldades, os desafios e os avanços, por ventura encontrados. Pretende-se responder se tem sido construída uma efetiva cidadania cultural nos municípios investigados.
O processo de municipalização da cultura
A citação que abre esta seção destaca a importância da esfera municipal para a condução das políticas públicas de cultura, mas, embora o município seja o espaço político privilegiado para o desenvolvimento das ações político culturais, é importante estar atento aos obstáculos que se colocam para o avanço e o sucesso das políticas culturais.
Ciente desse fato, buscar-se-á, nos parágrafos que se seguem, apontar um panorama da institucionalização e municipalização da cultura no recorte geográfico do presente estudo. Procurar-se-á, com base numa investigação empírica da implementação dos SMCs, identificar algumas questões problemáticas e o avanços obtidos nesse processo.
O discurso da Secult-Ba está alinhado ao do MinC, ao desenvolver ações pactuadas com a União na construção de um novo cenário cultural no país, que tenha como base a democracia e o envolvimento, isto é, participação cidadã na formulação e na implementação das políticas culturais. Os SMCs são um dos instrumentos dessa nova política, que defende a gestão compartilhada entre diversos agentes sociais.
Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 150, que trata da nova lei da Cultura. O projeto estabelece percentuais mínimos de 1% do PIB para os municípios, 1,5% para os Estados e 2% para União, relativos aos investimentos na área cultural, porém, somente os municípios integrados aos Sistemas de Cultura terão direito a essas verbas, que serão repassadas fundo a fundo de cultura.
Alguns dirigentes municipais de cultura, a exemplo da coordenadora de cultura em Santo Antônio de Jesus, enaltecem os SMCs, enquanto instrumentos de políticas públicas no campo da cultura. Uma das propostas do SMC é promover a institucionalização da participação social —participação cidadã— nas instâncias de discussões e decisão. Segundo Karla Ramos, do Departamento de Cultura de Castro Alves, não existia essa aproximação entre o poder público e a sociedade civil em gestões estaduais anteriores:
Em Muniz Ferreira, as dirigentes de cultura afirmam estar havendo, a partir das medidas de implementação do SMC, o estabelecimento do diálogo entre os agentes culturais e o poder público municipal, por meio da conquista da confiança dos produtores culturais.
Promover a articulação dos gestores, representantes da sociedade civil, poder legislativo, produtores, artistas, empresários e organismos culturais na formulação, no planejamento e na execução de programas e ações culturais nos municípios são a proposta do SMC. Porém, essa integração ainda não é uma realidade na maior parte dos municípios pesquisados.
Georgeton Correia, assessor da Seduc —Secretaria de Educação, Cultura e Esportes em Dias D′Ávila— Território da Região Metropolitana de Salvador, destaca o SMC como um instrumento capaz de promover uma gestão pública verdadeiramente democrática das políticas culturais:
Quanto ao envolvimento dos vereadores, da participação do legislativo nas políticas públicas de cultura, Luís Carlos Brasileiro, Secretário de Cultura e Turismo de Maragogipe, afirma que: ”o legislativo pouco tem interesse nesses assuntos“. Ainda, segundo ele, a articulação entre o gestor municipal, o legislativo e a sociedade civil na gestão das políticas culturais, tão falada pelo MinC e pela Secult-Ba, ”num contexto geral, salvo alguns elementos, é meio complexa. Não tem essa articulação“ (Luís Carlos Brasileiro, Secretário de Cultura e Turismo de Maragogipe-Bahia).
Para Jomar Lima, presidente do Conselho de Cultura em Cachoeira e diretor técnico da Fundação Hansen Bahia, existe a necessidade de avanço na pactuação das ações entre o dirigente de cultura, o legislativo e os agentes culturais. Segundo ele, diversos trabalhos sobre a criação de algumas políticas, além de uma diversidade de ações, vêm sendo desenvolvidos no município, mas de maneira isolada, sem articulação e conexão entre os envolvidos.
Geférson Silva, diretor de cultura de Governador Mangabeira, destaca a importância do legislativo nesse processo, ou seja, a criação de uma parceria com os vereadores para garantir efetividade no desenvolvimento das ações no campo das políticas culturais: ”de uma parceria com a câmara para a aprovação da lei do fundo de cultura do município, mas a gente aqui tem uma câmara que é de oposição, então cria certas dificuldades“ (Geférson Silva, diretor de cultura de Governador Mangabeira-Bahia).
Situação diferente ocorre em Santo Amaro, de acordo com o dirigente e assessor da Secretaria de Cultura e Turismo, o legislativo apoia as ações empreendidas pelo executivo e pela Secretaria de Cultura no campo das políticas públicas culturais no município. Esse fato pode ser explicado pelo número igual de vereadores da oposição e da situação (cinco de cada lado), e, assim, não há uma grande oposição à gestão municipal.
Alguns dirigentes de cultura apontam para a questão da burocracia institucional como um empecilho à concretização dos Sistemas de Cultura. O envolvimento e a participação ativa dos agentes culturais no processo são apontados pela maioria dos entrevistados como as maiores dificuldades para a operacionalização do Sistema de Cultura nos municípios.
Os responsáveis pela gestão da cultura nos municípios trazem à tona duas questões problemáticas e de extrema importância para a compreensão de uma realidade desigual para efetivação, eficácia e concretização das políticas culturais nos municípios investigados: a ”política partidária“ e a falta de uma política cultural nos municípios. Esse fato fica claro na fala de Denílson Mutte, secretário de cultura de Sapeaçu, e de outros dirigentes municipais entrevistados, sobre a criação do conselho e do fundo de cultura nos municípios.
Na fala do gestor da pasta de cultura em Lauro de Freitas, o entrevistado reconhece que os resultados dessa política cultural é algo a se pensar em longo prazo. É interessante notar que, em sua declaração, Antônio Lírio confirma as ideias de Hugo Filho e Edgar Abbehusen, ao defender que os gestores públicos municipais procuram desenvolver prioritariamente ações estratégicas com retorno eleitoral imediato:
Quando perguntamos a Joanita Carvalho se ela acredita que existe uma relação entre as políticas culturais, a cultura e o desenvolvimento econômico e social do município, ela declara a necessidade de haver uma maior compreensão e entendimento por parte da gestão municipal em relação a isso:
Nessa perspectiva, Georgeton Correia, ao traçar um panorama sobre a situação do desenvolvimento das políticas culturais em Dias D′Ávila, reafirma a percepção de Luís Brasileiro, Edgar Abbehusen e Hugo Filho, segundo os quais a cultura não é considerada uma área estratégica para o desenvolvimento social, ou seja, outras esferas do desenvolvimento humano são priorizadas como a educação e a saúde, mas a cultura não.
A política partidária influencia no desenvolvimento de uma nova política cultural nos municípios, principalmente no que diz respeito à descentralização de recursos e à aprovação de projetos elaborados pelos executivos municipais.
Além dos problemas referentes à política partidária, os municípios enfrentam uma questão histórica: a falta de recursos para a cultura, um grave empecilho ao desenvolvimento e à consolidação de uma política pública cultural eficaz e eficiente, que enfraquece a institucionalização e o fortalecimento da cultura, como denuncia Saliha Rachid:
A cultura na Bahia vivia um quadro de desigualdade na distribuição dos investimentos em todo o Estado, havendo uma concentração de recursos em Salvador e municípios de sua região metropolitana. As falas de Aline Neres, coordenadora de cultura em Muniz Ferreira, e Beatriz da Conceição, diretora de cultura em São Félix, evidenciam essa situação, mas também legitimam o discurso da Secult-Ba de estar havendo uma descentralização de recursos do Território de Identidade da Região Metropolitana de Salvador para o Território do Recôncavo:
Ainda na opinião de Moisés Santos, assessor da secretaria de cultura e turismo em Santo Amaro, quando perguntamos se ele acredita que está havendo uma descentralização de recursos da capital, do Território da Região Metropolitana para os demais, a resposta é positiva:
No entanto, Hugo Filho chama atenção para um fato que podemos denominar de ”descentralização centralizada“, ou seja, o supervisor de cultura em Conceição do Almeida coloca que os recursos e investimentos para a cultura passam a se concentrar em alguns municípios do Território:
A declaração da coordenadora de cultura no município de Muniz Ferreira demonstra a desigualdade no desenvolvimento das políticas culturais nos municípios: ”a gente trabalha muito, mas na hora de institucionalizar mesmo, colocar no papel, se torna um pouco difícil. Os dirigentes não olham muito para o lado da cultura em si“ (Aline Neres, Coordenadora de Cultura de Muniz Ferreira-Bahia).
Hugo Filho menciona ainda a burocracia institucional, que dificulta o acesso a recursos na Secult-Ba: ”dentro da secretaria é tudo na base da burocracia para conseguir ser contemplado e pegar um recurso. A grande dificuldade é essa burocracia“.
Beatriz da Conceição defende que o acesso aos editais pelos artistas populares seja facilitado, além de ressaltar a necessidade da realização de formações/capacitação dos artífices:
Cláudia Leitão, em Cultura e Municipalização, fala sobre algumas formas tradicionais de gestão cultural no Brasil, quase sempre focadas ora no fomento aos projetos culturais de determinados grupos econômicos e políticos, ora nos interesses de alguns representantes da classe artística, especialmente, daqueles formadores de opinião e com maior acesso às mídias (2009, 51). As palavras do gestor da pasta de cultura de Maragogipe corroboram estas ideias:
Coordenadora de cultura em Santo Antônio de Jesus, Letícia Silva diz que a secretaria vem promovendo um trabalho de aproximação dos agentes de cultura no município, com o objetivo de superar a descrença existente nas gestões que relegaram a cultura para último plano:
A institucionalização da cultura nos municípios enfrenta problemas de ordem infraestrutural. Edgar Abbehusen, Secretário de Gabinete da Secretaria de Cultura, Desportos, Lazer e Turismo em Muritiba, indica que não há uma sede para a secretaria, nenhuma estrutura física:
Além da falta de sede para abrigar o órgão gestor da cultura, outra deficiência denunciada pelos dirigentes é a falta de profissionais específicos para trabalhar com a cultura. Essa situação fica evidente nas falas de Karla Ramos:
Saliha Rachid reconhece o trabalho da maioria dos dirigentes de cultura nos municípios do Recôncavo, mas admite a deficiência, em alguns locais, no efetivo de funcionários responsáveis pela pasta de cultura, bem como a falta de autonomia do gestor das políticas culturais:
A deficiência no efetivo de funcionários que trabalhem, especificamente, na pasta de cultura nos municípios também é tratada por Joanita Carvalho e Moisés Santos:
Ainda com relação à situação institucional da cultura nos municípios pesquisados, verificou-se que em quase todos não existe uma secretaria exclusiva para a cultura, mas sim, secretarias conjuntas, principalmente com a educação, o turismo e os desportos. A nosso ver, é preciso definir as atribuições específicas de cada pasta, com profissionais qualificados e destinados a trabalhar e desenvolver a sua área, mas isso não significa que as ações não possam estar articuladas:
No Território do Recôncavo Baiano, o destaque é para o município de Saubara, que com uma das menores densidades demográficas de todo o território, possui uma secretaria exclusiva para tratar das políticas públicas culturais. No Território da Região Metropolitana de Salvador, Camaçari é o único município que possui uma Secretaria de Cultura desvinculada de outra Secretaria.
A deficiência na infraestrutura também é apontada como um entrave ao desenvolvimento pleno de uma política cultural nos municípios, ao limitar/impossibilitar a institucionalização dos elementos básicos do sistema de cultura.
Percebe-se que os recursos disponibilizados para a cultura nos municípios são destinados única e exclusivamente para a realização de festejos, como o carnaval e as festas religiosas de padroeiros e padroeiras das cidades, sejam eles repasse do Estado ou do próprio município. Manter a tradição na realização dessas festividades é de extrema importância para a preservação do patrimônio cultural imaterial; no entanto, os grupos de cultura durante a maior parte do ano ficam desassistidos, devido à falta de projetos, editais municipais, dentre outras medidas, capazes de promover a sustentabilidade desses artistas. Além disso, grande parte dos recursos é utilizada para pagar atrações extramunicipais.
Alguns municípios menores, como Muniz Ferreira, sofrem com a falta de investimentos no campo da cultura. Os municípios com baixa arrecadação são prejudicados no repasse dos recursos do município:
Soma-se a essa situação de vulnerabilidade orçamentária da cultura, a constatação de que, em alguns casos, o investimento na pasta de cultura não é garantido/assegurado, uma vez que o recurso que deveria ser destinado e utilizado pela pasta é repassado para outras áreas.
Joanita Carvalho, secretária de cultura em Saubara, destaca o papel do SMC, no sentido de garantir aos municípios uma verba exclusiva para ser utilizada no fomento à cultura local:
O apoio por parte da gestão municipal é, portanto, de extrema importância para o desenvolvimento de uma política cultural sólida nos municípios:
A necessidade de que os municípios se organizem para que possam ter acesso aos recursos, editais e projetos da Secult-Ba é igualmente importante nesse processo, como aponta Géferson Silva:
A criação de equipamentos culturais, por exemplo, uma casa de cultura, é apontada por Joanita Carvalho como uma necessidade básica do município, para o fomento e o desenvolvimento cultural local.
Nas tabelas 1 e 2, pode-se verificar o número existente de estabelecimentos culturais nos Territórios pesquisados, no ano de 2006. Porém, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais, realizada pelo IBGE em 2009 não permite revelar mudanças quantitativas, pois foram colhidos dados qualitativos.
Porém, quando se analisa as informações da IBGE de 2009 e compara-as com os dados da pesquisa realizada em 2006, constata-se que em três anos houve uma mudança positivamente significativa dos indicadores.
Nota-se em ambos os territórios uma distribuição desigual dos equipamentos culturais, ou a inexistência destes em vários dos municípios, o que compromete seriamente o exercício da cidadania cultural.
Vários dos municípios permanecem sem equipamentos culturais como museus, teatros ou salas de espetáculos, centro cultural e cinemas. Acreditamos que os custos para a implantação e a manutenção de instituições como estas devem ser encarados como um investimento no desenvolvimento sociocultural, isto é, humano.
A questão da falta de recursos e a viabilidade de projetos como esses, sempre questionados pelo poder público, podem ser superadas com, por exemplo, a criação de um espaço cultural que ofereça esses tipos de serviços de forma integrada.
À guisa de conclusão, encerra-se a discussão traçada nos parágrafos anteriores com as palavras de Barbosa, que sintetiza o diagnóstico realizado neste estudo.
Considerações finais
Diante do exposto nesta pesquisa, evidencia-se a existência de sérias desigualdades entre os municípios no desenvolvimento dessas novas políticas culturais. Existem dificuldades referentes à comunicação, à organização e à operacionalização dessas práticas técnicoinstitucionais e sociais para a consolidação dessas ações nos municípios e para o desenvolvimento territorial e sociocultural do Estado.
Há avanços em alguns municípios no processo de implementação dos SMC, porém, em outros, a maioria ocorre numa situação de profunda lentidão na criação dos instrumentos operativos do SMC.
Dos vinte municípios que compõe o Território Recôncavo Baiano, pouco mais da metade apresenta o Conselho Municipal de Cultura, porém, em Governador Mangabeira, Muritiba e Santo Antônio de Jesus o Conselho é antigo, entretanto, a sua funcionalidade e operacionalização prática não ocorrem, pois ou não há reuniões ordinárias ou não há conselheiros. Além disso, em nenhum dos municípios do Recôncavo existe Fundo nem tampouco um plano de cultura. Talvez isso também seja o resultado da PEC 150, que, segundo o MinC, já foi aprovada na Comissão de Indústria e Comércio da Câmara e será analisada pela Secretaria de Educação e Cultura (Ministério da Cultura 2010).
A respeito do Território da Região Metropolitana de Salvador —doravante, TMS, investigamos diretamente seis de um total de dez municípios. Quatro deles —Camaçari, Dias D′Ávila, Lauro de Freitas e Salvador— apresentam o Conselho de Cultura; porém, em Salvador, a situação é preocupante, pois, na prática, é como se não existisse. Dos quarenta e oito membros do Conselho, apenas quatorze foram eleitos. Um fato contraditório é que existe no município um conselho dedicado exclusivamente para o carnaval.
Ainda a respeito do TMS, Camaçari e Lauro de Freitas se destacam no processo, pois, de acordo com os gestores, o conselho é operante, além de já terem criado o fundo municipal de cultura. Por outro lado, num município como Madre de Deus, o processo de municipalização da cultura está, de certa forma, estagnado.
Associando as informações obtidas pela pesquisa de campo com as do Munic do ano de 2009, identificamos que, no Território do Recôncavo Baiano, composto por vinte municípios, sete não possuem Conselho de Cultura e três estão numa situação irregular, pois precisam passar por um novo processo de estruturação. Metade dos municípios tem conselho de política cultural.
Já quanto ao Território Metropolitano de Salvador, a relação é igual entre a porcentagem que tem e não tem Conselho de Cultura no município. No entanto, três dos municípios estão com o fundo de cultura montado (Camaçari, Lauro de Freitas e Salvador). No Território do Recôncavo Baiano, até o ano de 2013, nenhum dos municípios tinha fundo municipal de cultura.
Acreditamos que uma efetiva consagração das políticas públicas culturais exige uma maior compreensão e sensibilização dos agentes sociais envolvidos no processo (dirigentes de cultura, artistas e sociedade civil como um todo) sobre o próprio conceito de cultura e de sua relação e articulação com os conceitos de democracia e desenvolvimento.
É fato que em vários dos espaços políticos investigados a cultura não é considerada uma área estratégica para o desenvolvimento social. Outras esferas do desenvolvimento humano, como educação e saúde, são ”priorizadas“, além da realização de obras públicas, pois, de acordo com os entrevistados, têm maior visibilidade e um retorno eleitoral mais rápido e garantido.
Acredita-se piamente na possibilidade e validade dessas políticas culturais serem implementadas, o que transformaria o cotidiano social das localidades. Para tanto, é necessário que, de fato, elas sejam construídas como políticas de Estado, nas quais as questões político- partidárias apontadas pelos entrevistados sejam deixadas de lado, na busca pelo bem comum.
São vários as possibilidades, os limites e os desafios colocados para se obter o exercício ”pleno“ da democracia e da cidadania cultural no Estado. Os caminhos a serem trilhados requerem pensar a cultura como uma esfera do desenvolvimento social e econômico; requerem pensá-la como um elemento/instrumento capaz de realizar a justiça social, descentralizando e democratizando efetivamente o acesso a recursos e investimentos; é necessário também respeitar a diversidade cultural, reconhecê-la como um patrimônio material e imaterial.
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