La historia reciente de Brasil en el contexto de las luchas revolucionarias en América Latina.
The recent history of Brazil in the context of revolutionary struggles in Latin America
DOI:
https://doi.org/10.15446/cp.v19n37.112057Palabras clave:
política, correlación de fuerzas, educación, políticas educativas (es)politics, correlation of forces, education, educational policies (en)
Este artículo tiene como objetivo realizar algunas reflexiones sobre las condiciones de lucha política de las clases populares en América Latina en lo que se llama la segunda ola del progresismo, centrándose en los últimos acontecimientos desde las elecciones brasileñas de 2022. Nuestros argumentos son el pensamiento de Antonio Gramsci , en los conceptos de hegemonía, intelectualidad y transformismo, que fundamentan nuestro
análisis de la situación y orientan nuestra forma de ver la realidad. El análisis de los
primeros cien días del gobierno de Lula sustenta reflexiones posteriores sobre los (des)caminos de la educación en Brasil.
This article aims to carry out some reflections on the conditions of political struggle of the popular classes in Latin America in what is called the second wave of progressivism, focusing on the latest events since the 2022 Brazilian elections. Our
arguments are the thoughts of Antonio Gramsci, in the concepts of hegemony, intellectuals and transformism, which base our analysis of the situation and guide our way of seeing reality. The analysis of the first hundred days of the Lula government supports subsequent reflections on the (mis)paths of education in Brazil.
Recibido: 4 de septiembre de 2023; Aceptado: 16 de diciembre de 2024
Resumen
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las condiciones de lucha política de las clases populares en América Latina en lo que se llama la segunda ola del progresismo, centrándose en los últimos acontecimientos desde las elecciones brasileñas de 2022. Nuestros argumentos se basan en el pensamiento de Antonio Gramsci, en los conceptos de hegemonía, intelectualidad y transformismo, que fundamentan nuestro análisis de la situación y orientan nuestra forma de ver la realidad. El análisis de los primeros cien días del gobierno de Lula sustenta reflexiones posteriores sobre los (des)caminos de la educación en Brasil.
Palabras clave: política, correlación de fuerzas, educación, políticas educativas.Resumo
O artigo tem como objetivo realizar algumas reflexões sobre as condições de luta política das classes populares na América Latina no que se chama a segunda onda do progressismo, concentrando-nos últimos acontecimentos a partir das eleições brasileiras de 2022. O referencial teórico que sustenta os nossos argumentos é o pensamento de Antonio Gramsci, nos conceitos de hegemonia, intelectuais e transformismo, que fundamentam nossa análise de conjuntura e orientam o nosso modo de ver a realidade. A análise dos cem primeiros dias do governo Lula fundamenta posteriores reflexões sobre os (des)caminhos da educação no Brasil.
Palabras clave: política, correlación de fuerzas, educación, políticas educativas.Abstract
This article aims to carry out some reflections on the conditions of political struggle of the popular classes in Latin America in what is called the second wave of progressivism, focusing on the latest events since the 2022 Brazilian elections. Our arguments are based on the thoughts of Antonio Gramsci, particularly in the concepts of hegemony, intellectuals, and transformism, which inform our analysis of the situation and guide our understanding of reality. The analysis of the first hundred days of the Lula government supports subsequent reflections on the (mis)paths of education in Brazil.
Palabras clave: politics, correlation of forces, education, educational policies.Introdução
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebrodos vivos.
(Marx, 1977, p. 17)
O presente artigo tem como objetivo realizar algumas reflexões sobre as condições de luta política das classes populares na América Latina durante a chamada segunda onda do progressismo, especialmente, nos últimos acontecimentos a partir das eleições brasileiras de 2022.
Partimos do pressuposto de que as lutas revolucionárias na América Latina se caracterizam por uma correlação de forças desigual, dada a nossa dependência no contexto da expansão do capitalismo internacional. Considerando a história política recente do Brasil, a crise econômica que vivemos já se estende por trinta anos, durante os quais tivemos alguns momentos de resistência revolucionária ante a ganância imperialista que não se aplaca. Momentos marcantes podem ser identificados na luta contra a ditadura militar desde 1961, no movimento pelas Diretas Já em 1984, no Fora Collor em 1992 e na organização dos trabalhadores, que culminou na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e na primeira eleição de Lula em 2002.
Entretanto, nenhum destes movimentos é comparável às explosões revolucionárias que aconteceram no Chile, na Argentina, na Bolívia e na Venezuela, para citar algumas das situações de avanço da esquerda no continente. No Brasil, apesar de uma crise econômica crônica, de uma desigualdade social avassaladora que se manifesta nas ruas dos grandes centros urbanos e de uma situação histórica de preconceito racial e conservadorismo endêmico, ocorrem grandes movimentos de mobilização popular, que acabam sendo cooptados por ideias reformistas que nos levam a momentos progressistas que se diluem ante a força do discurso hegemônico, traduzido na defesa mínima da democracia parlamentar.
De nossa perspectiva, ao menos três fatores contribuem para esta situação: as condições específicas de nossa história desde a invasão portuguesa; nossa dependência do imperialismo norte-americano, que vem de longa data e que, nos momentos de política progressista, se tentou resistir; e a atuação dos grupos dirigentes no âmbito da democracia parlamentar, que caracteriza as condições do transformismo na forma de cooptação dos representantes populares.
Um dos pilares do sistema representativo moderno está na formação da opinião pública no seio da sociedade civil, espaço de enfrentamento político que assume a maior importância com a expansão dos meios de comunicação de massa. Na sociedade capitalista, o poder econômico pode determinar o processo de decisão, agindo no âmbito da formação de opinião, de modo que os grupos dominantes se empenham em controlar os meios de comunicação, instrumentos privilegiados de divulgação e persuasão. Esse instrumental tem sido o pilar de divulgação da ideologia de extrema-direita, com o uso das novas tecnologias digitais, que moldam o imaginário social das classes populares e as desmobilizam em direção a uma renovação.
O referencial teórico que sustenta nossos argumentos é o pensamento de Antonio Gramsci, nos conceitos de hegemonia, intelectuais e transformismo, que fundamentam nossa análise de conjuntura e orientam nosso modo de ver a realidade. O conceito de hegemonia apresenta sentidos diferentes conforme a situação à qual se aplique. Tomamos como base a definição do Caderno 1, por ser o significado que se refere diretamente à democracia parlamentar:
[O] exercício ‘normal’ da hegemonia no terreno clássico do regime parlamentar se caracteriza por uma combinação de força e de consenso que se equilibram sem que a força supere em muito o consenso, mas, ao contrário, apoiese no consenso da maioria, consenso expresso pelos assim chamados órgãos da opinião pública. (Gramsci, 1977, Q. 1, p. 59)
Não cabe aqui aprofundar a conotação que assume o consenso no contexto das estratégias burguesas em uma sociedade profundamente desigual como a capitalista.
Da perspectiva da definição acima, para as classes trabalhadoras, a luta de classes precisa ser entendida como correlação de forças entre dois projetos de sociedade: o projeto liberal ou neoliberal, conforme a situação histórica, e o projeto socialista. No Caderno 19, referindose à correlação de forças presente na Revolução burguesa italiana, Gramsci ressalta:
A supremacia de um grupo social se manifesta de duas maneiras:como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que tende a ‘liquidar’ ou a submeter, inclusive com a força armada, e é dirigente dos grupos afins e aliados. (Gramsci, 1977, Q. 4, p. 457)
Esta definição descreve a prática dos grupos dominantes em relação aos grupos subalternos e demonstra que a luta de classes tem não apenas uma dimensão econômica, mas também política e ideológica, dependendo de modo substancial da ação dos intelectuais que, para as classes subalternas, significa fundamentalmente criar um grupo dirigente que se empenhe na direção política e na luta por uma nova sociabilidade.
No Caderno 25, intitulado “Às margens da história”, Gramsci salienta a fragilidade dos movimentos sociais por viverem na subalternidade, visto que suas ações e lutas são episódicas, e suas vitórias provisórias enquanto não conquistarem o Estado. Os “grupos subalternos sempre sofrem a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam e se insurgem: só a vitória ‘permanente’ quebra, e não imediatamente, a subordinação” (Gramsci, 1977, Q. 25, p. 2283).
Nesta situação, há sempre uma margem de cooptação dos intelectuais, como Gramsci explicita na noção de transformismo, que se configura, em linhas gerais, como a conquista, por parte das classes dominantes, de potenciais dirigentes das classes subalternas. Esse fato é frequente dentro dos limites dos regimes representativos burgueses, situação desmobilizando os movimentos insurgentes e exige sempre uma retomada do início.
Neste contexto, a primeira parte desta exposição salienta a correlação de forças que define o modo como se organiza a estrutura de poder em determinados momentos, como o que vivemos na ascensão do neofascismo e na tentativa de sua superação. Em seguida, fazemos algumas observações sobre os primeiros cem dias do terceiro governo Lula, eleito em 2022 e que assumiu o governo em janeiro de 2023, evidenciando suas estratégias para conseguir governar em meio a uma profusão de tentativas de inviabilizar esse processo.
O Brasil nas primeiras décadas do século XXI
Podemos visualizar um início de crise orgânica já nos anos 1990, com a adesão política ao neoliberalismo e o início das grandes privatizações das empresas públicas, processo que marcou o início do século XXI. O que se denominou na América Latina como a primeira onda, no Brasil se configurou na disputa acirrada entre conservadores e progressistas, estes assumindo o poder no primeiro governo do PT, cuja gestão só foi possível por acordos e alianças que visavam apaziguar liberais e conservadores. O resultado desse processo foi o distanciamento do PT em relação às suas origens, a fragmentação da esquerda em oposições partidárias que, aliadas a intelectuais, passaram a questionar a gestão do PT e a colocar em evidência suas contradições nos primeiros dois mandatos do PT, como Singer e Loureiro (2016) salientam em sua análise do Lulismo:
Reindustrialização com oposição dos industriais, assalariamento precário com acesso à universidade, ampliação do crédito educacional com crescimento do ensino superior privado, walmartização do trabalho com internacionalização dos sindicatos, agroecologia com agronegócio, autonomização dos mais pobres com passividade assistencialista, emancipação cultural com empreendedorismo, esperança de inclusão com rebaixamento das expectativas. (Singer e Loureiro, 2016, p. 13)
Podemos dizer que, diante da situação do Brasil no contexto do capitalismo internacional e da imensa dívida histórica do Estado com as classes populares, as duas gestões de Lula foram impressionantes, tanto que ele voltou ao poder mesmo depois de ser acusado, preso e julgado inocente, para um terceiro mandato presidencial. As críticas de adesão ao projeto burguês na sua forma neoliberal, visando à estabilidade monetária, ao controle da inflação e ao equilíbrio das contas públicas como metas para impulsionar o desenvolvimento, precisam ser cotejadas com as políticas sociais, como a retirada do Brasil do mapa da fome, e políticas culturais, como os mais de cinquenta programas educacionais que formavam o PDE (Programa de Desenvolvimento da Educação).
Embora se tenha clareza de que a forma de sociabilidade vigente é a capitalista e que a classe burguesa conseguiu se recuperar da crise, tanto que o Brasil passou a ser chamado de economia emergente, é preciso reconhecer que, durante as duas gestões de Lula, grande parcela das classes populares saiu da linha de miséria e de pobreza, fator atribuído ao Bolsa Família e às suas exigências em relação ao trabalho, saúde e educação. Ampliouse o acesso ao ensino médio, inclusive com uma proposta de ensino integrado muito próxima de uma proposta gramsciana; filhos das classes populares tiveram seu acesso ao ensino superior também ampliado com a interiorização das universidades públicas, o que mudou o panorama nacional sobre a educação e o trabalho. No campo, houve o processo de implantação da agroecologia pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), mas também a expansão do agro-negócio voltado à exportação. Ou seja, podemos dizer que o que se fez foi bastante ante os limites dos acordos e alianças políticas que tiveram que ser feitos para assumir o poder.
O processo de desenvolvimento assim constituído não resistiu às estratégias de ruptura que tiveram seu auge na deposição fraudulenta da Presidente Dilma e na operação Lava Jato, colocando em risco, inclusive, a frágil democracia instituída desde 1988. Esse processo foi afetado por embustes ardilosos de um governo de extrema, que constantemente ameaçava com um golpe de estado visando restaurar a ditadura.
Neste contexto, como se dá a correlação de forças entre o projeto conservador e a proposta desenvolvimentista? Principalmente no campo da ideologia, onde os grupos progressistas que, nos anos de governo de extrema-direita, foram pressionados a se manter em silêncio e acusados de doutrinação, enquanto a extrema-direita usou instrumentos digitais para mobilização e formação de opinião, muitas vezes recorrendo à mentira para influenciar a opinião pública a favor do governo e construir uma concepção de mundo eivada de preconceitos.
Organizações contrarrevolucionárias assumiram forte ingerência na formação do senso comum das classes populares por meio de plataformas digitais e redes sociais. Aliadas ao fundamentalismo religioso, reviveram antigos preconceitos que imaginávamos superados. No sistema educativo, isso se manifestou na perseguição de quem apresentava uma leitura crítica da realidade. Embora defendessem a Escola sem Partido, estando no poder e com o propósito de combater a esquerda “doutrinadora”, implementaram as escolas cívico-militares no sistema público, contradizendo diretamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN).
A eleição do presidente Lula para um terceiro mandato abriu a possibilidade de revisar essa história, que não pode ser esquecida para evitar sua repetição. É necessário retomar o percurso da primeira onda e reconstruir as bases da política desenvolvimentista, não sem antes desfazer todas as mazelas e obstáculos políticos e ideológicos criados em quatro anos de aparelhamento das instituições públicas.
A árdua tarefa se tornou evidente no dia 8 de janeiro de 2023, na tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito no Brasil, com a ocupação e depredação dos centros do poder com a conivência de políticos e militares descontentes com a derrota nas eleições de 2022. Uma tarefa intensa e difícil, visto que, para criar condições de governabilidade, o presidente recém-eleito precisou novamente abrir o flanco para acordos políticos na criação de uma frente ampla, incluindo partidos que agregavam antigos apoiadores do governo anterior, alianças e acordos que exigem o permanente enfrentamento das contradições implícitas.
Entre elas, implementar políticas públicas que beneficiem as classes populares, quando se tem um Congresso constituído por 513 representantes, sendo cerca de 300 eleitos e comprometidos com lobbies econômicos do agronegócio e da ocupação clandestina e depredadora da Amazônia, é um desafio para gigantes. Neste conjunto, não se pode esquecer os defensores da Bíblia, fundamentalistas que se ligavam ao governo anterior e que, juntamente com os parlamentares ligados ao agronegócio, tentam garantir fatias de poder nos ministérios e instituições públicas, outor-gando-se o direito de escolher as instituições que garantem maior acesso ao erário público.
Mesmo assim, desde o momento da posse do presidente eleito, vários decretos do governo anterior foram anulados, entre eles o decreto do sigilo de cem anos, restabelecendo-se o direito à transparência e à publicização das ações governamentais. Teve lugar também o restabelecimento de antigos ministérios e a criação de novos, como o dos Povos Indígenas para a defesa e garantia de todos os seus direitos.
Os primeiros cem dias deste novo governo foram dedicados basicamente a recuperar a credibilidade e a confiança do país no âmbito internacional, perdidas nos quatro anos de descaminhos políticos. Quando se diz “confiança”, entende-se que uma frente ampla não permite avançar com propostas heterodoxas, tanto que é difícil retirar do mercado financeiro e do Banco Central o controle sobre a orientação econômica, que segue preceitos neoliberais. As orientações internacionais no campo econômico se refletem na economia interna e a estratégia parece ter sido a de não enraivecer o mercado financeiro e, ao mesmo tempo, abrir frentes de desenvolvimento nacional, com a recuperação da qualidade de vida das classes trabalhadoras. As medidas políticas e econômicas tomadas nestes primeiros cem dias se concentram na reorganização do orçamento público a fim de cumprir as promessas de campanha e criar as condições necessárias para a governabilidade nos quatro anos de gestão. Essas medidas incluem a revisão da Medida Provisória (MP) implementada no governo Temer, que congelou por vinte anos a aplicação dos recursos públicos, e que dá lugar ao chamado “arcabouço fiscal”, já demonstrando efeitos positivos na valorização do real. A reorganização dos investimentos demonstra que há recursos suficientes para reorganizar e reverter o processo econômico, gerando desenvolvimento. Outra medida importante é a reforma tributária, arquivada por mais de trinta anos no Congresso e retomada no presente momento para debate e implementação.
Outra frente aberta nestes primeiros dias foi a urgente repressão ao garimpo ilegal nas terras indígenas, visando proteger os povos originários completamente abandonados pelo governo anterior, tanto que foram encontrados em fase de completo abandono e dizimação, acometidos pela fome e por doenças graves, em situações de extermínio que a sociedade ignorava e acompanhava perplexa.
Tem-se que reconhecer a grande atuação do presidente eleito na reabilitação da atividade diplomática e das relações internacionais nestes primeiros cem dias, com a defesa da retomada dos debates sobre a questão climática e a preservação de nossas florestas tropicais, numa atitude de recuperação da liderança internacional que o Brasil havia alcançado em outros tempos. Temos que acentuar que a defesa e a preservação das florestas tropicais estão permeadas por conflitos entre esta conservação e os novos projetos governamentais de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Ou seja, as ações diplomáticas são muito importantes, mas ocultam as contradições que se produzem e com as quais é necessário conviver na medida em que não se questiona a estrutura do desenvolvimentismo e do próprio capitalismo na forma vigente.
Uma ação importante em âmbito internacional é a tentativa de reor-ganizar e impulsionar a integração regional com os acordos políticos e econômicos do Mercosul, abandonados e desmobilizados pelo governo anterior. Na verdade, os primeiros cem dias foram dedicados a “limpar o terreno”, desfazendo medidas implementadas por meio de decretos pelo governo anterior.
A conjuntura política brasileira, considerando-se a nossa história, tem apresentado grandes dificuldades para as vertentes progressistas, tanto que as expectativas geradas quando um desses grupos chega ao poder são frustradas pelos impasses políticos que impedem ações renovadoras. As dificuldades a enfrentar partem dos acordos e alianças efetuados para garantir a vitória ante a extrema-direita, mas é necessário não esquecer o caminho percorrido e os conflitos e contradições vividos na experiência dos governos lulistas anteriores. O Congresso se apresenta, muitas vezes, como um balcão de negócios, e a conversão política ocasionada por interesses econômicos tem marcado a ação de representantes inescrupulosos de modo, muitas vezes, escandaloso: deputados e senadores disputam cargos no governo e negam apoio caso não sejam satisfeitos. Políticos que apoiavam a extrema-direita no poder e negociavam com ela apresentam-se, repentinamente, como liberais, prontos a tomar uma fatia do poder.
Tal situação fragiliza o executivo, que precisa do Congresso para efetivar as medidas políticas necessárias para o desenvolvimento e a recuperação da qualidade de vida de grande parcela da população trabalhadora, implementando medidas capazes de concretizar uma transferência de renda que supere a fase do mero assistencialismo. Nesta senda, as contradições são previsíveis, tanto no campo econômico quanto no cultural; uma delas podemos identificar no campo da educação, domínio há muito disputado pelo setor empresarial, porque abrange a formação para o trabalho.
Desde a implementação do neoliberalismo como política, a disputa interna se acirrou, visto que, neste campo, passaram a prevalecer interesses econômicos nacionais e internacionais que pretendem conquistar espaço na educação pública brasileira. Estes grupos têm conquistado espaços significativos no novo governo, capitaneados basicamente pelo Movimento Todos Pela Educação. A disputa fundamental entre este braço defensor dos interesses privados e os docentes progressistas, que demonstra a efetividade da luta de classes, tem ocorrido na implementação da reforma do ensino médio, instituída pela Lei n.º 13.415/2017 eexpressa no documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A diferença de posições é clara; trata-se do confronto entre dois projetos de sociedade que se manifestam nesta disputa: por um lado, os neoliberais têm objetivos econômicos claros, enquanto os progressistas e socialistas pensam em uma formação integral, capaz de contribuir para um processo político transformador. Do ponto de vista das políticas públicas neoliberais, a educação se restringe à formação para o trabalho, sem a relevância dos conteúdos no sentido de superar as desigualdades sociais e possibilitar aos jovens a consolidação de um pensamento crítico, conforme os objetivos expostos na Resolução n.° 4 do Conselho Nacional de Educação, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, acentuando a necessidade de uma educação integral de qualidade, ponto do qual não podemos retroceder. Desta perspectiva, a presença no âmbito do Ministério da Educação do governo Lula de institutos e fundações sustentados pelo setor empresarial, que defendem o empresariamento da educação, é preocupante, principalmente com referência à educação pública, gratuita e de qualidade que defendemos como fundamental para um projeto progressista.
A Reforma do Ensino Médio recém-implantada representa um impul-so do pensamento conservador no âmbito da educação pública, uma grande contradição no contexto de uma política que se pretende progressista. Daí o protesto dos docentes que percebem o entrelaçamento dessa política com os interesses do capital e que se manifestam em defesa da educação pública e integral.
A Educação passa a ser no momento atual do capitalismo uma poderosa máquina de guerra. Público e privado se interpenetram promiscuamente sob a batuta do privado, vale dizer das poderosas corporações multinacionais. Estas necessitam moldar o novo trabalhador que o capital requer. Para tanto, é preciso romper as barreiras nacionais, as tradições corporativas, os modelos educacionais anteriores. (Dias, 2012, p. 333)
Por aderir ao projeto neoliberal, o governo se submete às exigências do processo de mercantilização da educação, seguindo as orientações de organismos internacionais como o Banco Mundial e a Unesco (Dias, 2012). As disputas internas desvelam as contradições que perpassam o campo da educação, exigindo empenho e determinação para a continuidade das lutas.
O governo de Lula na esfera da educação: enfrentamentos às políticas anteriores e reformismo
No campo da educação, os embates têm sido acirrados e as vitórias, muito difíceis. Com a vitória e posse de Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2023 e a constituição e nomeação do seu governo, houve, de imediato, um certo alívio por parte dos educadores progressistas, por terem a perspectiva de recuo e mesmo de derrogação dos programas que compuseram a política conservadora para a área de educação, nomeadamente os três que foram centrais no governo Bolsonaro: Escola sem Partido (ESP), Homeschooling e o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM).
Os referidos programas desdobraram-se em projetos apresentados nas câmaras municipais, assembleias estaduais, distrital e no Congresso Nacional. Em sua essência, trata-se de censura à liberdade de ensinar e aprender, à liberdade de cátedra, contra os ensinamentos de temas ligados aos direitos sociais, orientação sexual, à retomada da teoria darwinista em substituição aos temas críticos sobre as relações sociais, à exclusão histórica dos povos africanos e originários da América, aos direitos humanos à diversidade, de gênero, entre outros.
Na Câmara dos Deputados, foi apresentado o projeto Escola sem Partido - PL n.° 7180/14, que não se transformou em lei devido à forte resistência de deputados(as) do PT e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em algumas Assembleias Legislativas estaduais e municipais, projetos apresentados para a implantação dessa política foram vetados, exceto no Estado de Santa Catarina (SC), onde a proposta foi aprovada e posteriormente sancionada e promulgada na Lei 18 637/2023. O sindicato dos professores de Santa Catarina (Sinte) já interpelou o secretário de Educação daquele estado, tanto mais que o Supremo Tribunal de Justiça do Brasil já se manifestou pela inconstitucionalidade dos projetos que assentam aquela política. De maneira geral, em oposição e resistência a esse programa atuou o Movimento Escola sem Mordaça, composto por entidades representativas dos educadores, movimento estudantil Secundaristas e democratas progressistas, que promoveu debates e manifestações em defesa da liberdade de se ensinar.
Outro projeto conservador foi o Homeschooling, como o próprio nomesalienta, refere-se a uma educação domiciliar em que as práticas de educação das crianças e jovens são realizadas em suas próprias casas, por suas famílias, e não em instituições formais, ou seja, nas escolas. Este projeto ganhou força com o apoio dos movimentos conservadores e foi apresentado à Câmara dos Deputados no PL n.º 3179/2012, ao qual foram apensados mais sete projetos sobre esta matéria.
O embate dos professores progressistas se fez no âmbito dos debates parlamentares e acadêmicos. Salientamos Jamil Cury, entre outros pesquisadores da educação brasileira, que se debruçou sobre este tema examinando os fundamentos de onde parte a sua defesa, apontou que:
Ao colocar o direito da família e/ou a liberdade como prévios a qualquer obrigação institucionalizada advinda do Estado, o movimento parece retomar, como fundamento de sua argumentação, ao menos de modo amplo, a tese ou as teses do jusnaturalismo, seja ele pela vertente medieval, seja pela moderna. (Cury, 2017, p. 110)
Nosso autor, após discorrer a respeito da tensão histórica “entre o direito à educação e o dever da família de colocar as crianças na escola” (Cury, 2017, p. 104), considera as finalidades da educação escolar para defender que aos pais cabe colocar seus filhos na escola. Cury acentua que as “famílias têm a obrigação, sob pena de negligência, de matricular seus filhos nas instituições escolares de modo a superarem, desde cedo, um egocentrismo próprio da infância”. A escola “é um espaço privilegiado para que se estabeleçam com os outros relações maduras de reciprocidade e de reconhecimento do outro como igual e diferente” (Cury, 2017, p. 116-117).
Outro projeto implementado por decreto, visto se contrapor às Diretrizes Nacionais para a Educação, foi o PECIM. Sua realização dá-se em parceria com o Ministério da Defesa, o que permite a presença de militares da reserva, policiais e bombeiros militares na gestão das escolas públicas. A implantação dessas escolas foi prevista para todo o país, em comunidades pobres, de grande vulnerabilidade social, e não foram previstas para as escolas das classes médias. Ou seja, a gestão implica uma disciplina militarizada de controle dos pobres, dos desapropriados, assentada em hierarquias e obediência fundadas em valores conservadores. Este era um programa central na política educacional do governo Bolsonaro, que apostava também socialmente em uma política de armas. No primeiro semestre de governo, Lula desarticulou ambos os programas, com fortes argumentos que salientamos:
o programa induz o desvio de finalidade das atividades das forçasarmadas, invocando sua atuação em uma seara que não é sua expertise e não é condizente com seu lugar institucional no ordenamento jurídico brasileiro;
a justificativa para a realização do programa apresenta-se problemática, ao assumir que o modelo de gestão educacional, o modelo didático-pedagógico e o modelo de gestão administrativa dos colégios militares seriam a solução para o enfrentamento das questões advindas da vulnerabilidade social dos territórios em que as escolas públicas estão inseridas e que teriam as características necessárias para alcançar o tipo de atendimento universal previsto para a educação básica regular, ignorando que colégios militares são estruturalmente, funcionalmente, demograficamente e legalmente distintos das escolas públicas regulares (Brasil, Ministério da Educação, 2023).
Outra decisão importante na área da educação é a abertura do diálogo do governo com reitores das universidades e institutos federais de educação, visto que as universidades enfrentavam o movimento ultraconservador denominado Docentes pela Liberdade (DPL), uma associação civil com fortes vínculos com a política bolsonarista, criada em 2019 e voltada a difundir sua ideologia para formar a opinião pública dentro das universidades. Conforme Rodrigues (2022), trata-se de uma “organização nascida sob iniciativa militar e civil” e “estruturada para atuar no campo da cultura com o objetivo de favorecer a realização da reforma administrativa e curricular” (p. 280, ou seja, um aparelho privado de hegemonia que se beneficiava dos instrumentos fornecidos pelas novas tecnologias de comunicação de massa, com atuação no interior das universidades.
Breves conclusões
A partir das observações aqui colocadas, afirmamos que os primeiros cem dias do Governo Lula foram fecundos, apesar das contradições que se colocam a partir dos acordos e alianças que levaram à criação da frente ampla de governo. Entendemos que este era o caminho possível para superar os quatro anos de conservadorismo e de aparelhamento das instituições públicas. Entendemos também que o governo e a resistência progressista têm um longo trabalho pela frente no sentido de desarticular os aparelhos ideológicos instituídos pelo governo anterior, a fim de reconstruir relações democráticas e avançar no desenvolvimento econômico e social para garantir direitos que são defendidos pela Constituição de 1988 e que foram literalmente ignorados pelos governos da extrema-direita. A luta de classes continua e os enfrentamentos serão importantes para a garantia da democracia instituída há 35 anos com muita luta e determinação dos que enfrentaram a ditadura militar de 1964. Como dissemos em momentos anteriores, a eleição de Lula, com os limites que nos foram colocados, foi o que se pode realizar numa situação de fragmentação das esquerdas, ilhadas em seus partidos e sem conseguir alcançar as classes populares, mantidas em seu senso comum pelas religiões e pelos aparelhos privados de hegemonia da extrema-direita, que conseguem atingi-las utilizando os meios digitais de comunicação de massa.
Por meio desses aparelhos privados de hegemonia, a extrema-direita consegue manter uma parcela majoritária da população brasileira numa realidade imaginária paralela que nega a ciência e vive crenças irracionais que são extensivas à sua compreensão da realidade. As redes alimentam este modo de viver fora da realidade e formam o perfil tanto das classes populares quanto de alguns políticos que, atualmente, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do golpe de 8 de janeiro de 2023, tentam atribuir a efetivação do golpe ao governo atual, num discurso sem nenhum fundamento, visto que Lula venceu as eleições e não teria motivos para um golpe contra si próprio. O 8 de janeiro foi uma demonstração da força ideológica dos mecanismos de formação de massa por meio dos aparelhos privados de hegemonia constituídos pelas plataformas digitais.
O universo simbólico que sedimenta a ideologia da extrema-direita atinge o campo da educação, que é fundamental na agenda desses grupos no mundo inteiro. Temos que ter clareza dos enfrentamentos que teremos pela frente, tanto no Brasil quanto em toda a América Latina. O sistema educativo é uma frente importante de luta, porque a nossa esperança são as novas gerações, e é delas que será o futuro.
Tudo isso demonstra que temos muito a lutar e a vencer. Vamos em frente.
Anita Helena Schlesener
Graduação em Filosofia (UFPR); mestrado em Educação, História, Política, Sociedade pela PUC-SP; Doutorado em História pela UFPR; Estágio doutoral na Università degli Studi di Milano e Fondazione Feltrinelli. Presidente da International Gramsci Society-Brasil – Gestao 2022-2024.
Maria de Fátima Rodrigues Pereira
Possui graduação em História pela Universidade de Coimbra (Pt), mestrado em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste/Unicamp e Doutorado em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Professora adjunta do Programa de Mestrado e doutorado em Educação da Universidade Federal do Paraná (Brasil). Orcid – 0000-0002-8511-2313.
Izaias Costa Filho
Possui Mestrado e Doutorado pela Universidade Tuiuti do Paraná (Brasil). Professor do ensino básico técnico e tecnológico do Instituto Federal do Paraná, Campus Curitiba.
Referências
Referencias
Boito Jr, A. (2003). A hegemonia neoliberal no governo Lula. Crítica Marxista, 17.
Brasil, CNE. (13 de julho de 2010). Resolução n.º 4, Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/CNE_RES_CNECEBN42010.pdf?query=AGRÍCOLa.
Brasil, Ministério da Educação. (2023). Notas técnicas. Câmara Dos Deputados. (2021). CCJ aprova projeto que permite Homeschooling. https://www.camara.leg.br/noticias/771015-ccj-aprova-projeto-que-permite-homeschooling.
Cury, C. R. J. (2017). Homeschooling: entre dois jusnaturalismos? https://www.scielo.br/j/pp/a/Rvwl6bDhV3GsV3Zgc98qhxc/?lang=pt.
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ISSN En línea: 2389-7481
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DOI: https://doi.org/10.15446/cp
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