Publicado

2024-12-02

Lula 3: a impotência do reformismo

Lula 3: The Impotence of Reformism

Autores/as

Compreender a fase atual da economia política brasileira, com o governo Lula, exige rememorar como a crise capitalista de 2008, uma crise dentro da crise estrutural do capitalismo, só alcançou o Brasil em 2014. A crise econômica potencializou a ofensiva reacionária das classes dominantes, que vinha desde o segundo semestre de 2013. A eleição presidencial, vencida por estreita margem pelo Partido dos Trabalhadores (PT) pela quarta vez seguida, mesmo com muitas concessões ao capital financeiro, não teve seu resultado aceito, e uma conspiração para a derrubada da presidente Dilma Rousseff foi posta em marcha. 

Understanding the current phase of Brazil's political economy under the Lula government requires recalling how the 2008 capitalist crisis— a crisis within the structural crisis of capitalism— only reached Brazil in 2014. The economic crisis intensified the reactionary offensive of the dominant classes, which had been underway since the second half of 2013. The presidential election, narrowly won by the Workers' Party (PT) for the fourth consecutive time, despite many concessions to financial capital, was not accepted, and a conspiracy to overthrow President Dilma Rousseff was set in motion.

Recibido: 4 de septiembre de 2023; Aceptado: 16 de diciembre de 2024

Resumen

Compreender a fase atual da economia política brasileira, com o governo Lula, exige rememorar como a crise capitalista de 2008, uma crise dentro da crise estrutural do capitalismo, só alcançou o Brasil em 2014. A crise econômica potencializou a ofensiva reacionária das classes dominantes, que vinha desde o segundo semestre de 2013. A eleição presidencial, vencida por estreita margem pelo Partido dos Trabalhadores (PT) pela quarta vez seguida, mesmo com muitas concessões ao capital financeiro, não teve seu resultado aceito, e uma conspiração para a derrubada da presidente Dilma Rousseff foi posta em marcha.

Uma intensa mobilização da pequena burguesia, uma campanha avassaladora da imprensa e a chamada Operação Lava Jato, manobra judicial voltada a desmoralizar o governo e as esquerdas, culminaram na deposição da presidente e na elevação do vice-presidente Michel Temer ao comando do Estado. Começava a radicalização da estratégia neoliberal de acumulação do capital, com a decorrente acentuação do barbarismo social e da repressão social e política, que chegou até o arresto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Estava aplainado o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro e para que a tendência fascistizante ganhasse um fôlego enorme.

Foi um quadriênio particularmente trágico de todos os pontos de vista. A catástrofe sanitária induzida no tratamento da pandemia da COVID-19, a devastação ambiental estimulada, a destruição da educação e da pesquisa científica, o benefício deslavado do capital financeiro e do latifúndio, e a impunidade da ação das milícias foram algumas das características desse período. Ao abraçar como seus os interesses dos Estados Unidos, o Brasil tendeu a se isolar internacionalmente na América Latina, em instâncias internacionais importantes como os BRICS+, e a se afastar da África.

No entanto, é indiscutível como esse governo conseguiu significativo respaldo social. Obteve apoio da quase totalidade da classe dominante e também de amplíssima parcela da pequena burguesia. Mais grave é notar como setores populares importantes também fizeram parte da base social do regime. A difusão do evangelismo pentecostal e da ideologia do conservadorismo liberal, o estímulo ao ultraindividualismo, conseguiram selar uma base social bastante sólida difundida, de forma particular e paradoxal, nas zonas mais avançadas do capitalismo brasileiro.

A estratégia neoliberal abraçada pela burguesia brasileira, em fins dos anos 80, foi o modo de se entabular uma ofensiva permanente contra os interesses e as condições das classes subalternas, de modo que se estabe- leceu no Brasil (assim como em toda a América Latina) uma hegemonia burguesa que pode ser qualificada como débil, por exigir o uso exagerado da violência. A Constituição promulgada em 1988 esteve longe de representar as demandas e interesses expressos pelas classes subalternas, mas teve que assimilar uma parte da pressão popular de então, com uma legislação social razoável. No entanto, a subsequente e quase imediata ofensiva burguesa visou, desde logo, o desmantelamento dos direitos sociais presentes na nova carta constitucional.

A Constituição desenhou o Brasil como uma democracia liberal burguesa com alguns direitos sociais, mas essa nunca passou de uma ficção inexequível. Isso porque o Brasil concretizou a sua revolução burguesa ao modo de uma revolução passiva, não como uma revolução democrática jacobina. Ademais, a época da crise orgânica do capital e de predomínio do neoliberalismo gera uma contradição que impede que se efetive tal democracia. Na verdade, a burguesia brasileira se esmerou na construção de um Estado neoliberal em clara contradição com um eventual Estado democrático projetado parcialmente na Constituição.

Os governos do PT (2003-2016) amenizaram esse processo corrosivo, mas não reverteram e menos ainda implantaram uma alternativa efetivamente democrática e reformista. Permaneceram restritos a políticas compensatórias para as grandes massas na mesma medida em que engordava o capital financeiro. A desmobilização do movimento popular teve seu custo demonstrado quando ficou evidente a incapacidade de se fazer uma contramobilização à movimentação golpista da pequena burguesia insuflada pelo grande capital. A contradição posta na Constituição, mas também na vida social e política do país, vista a insuficiente força e organização das classes subalternas e a incapacidade de propor uma alter- nativa democrática e socialista, uma outra hegemonia, mostra como o Brasil tem oscilado entre uma democracia oligárquica e o cesarismo.

A fase de governo do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB),com Fernando Henrique Cardoso, predominou a democracia oligárquica, a mais adequada ao projeto neoliberal, mas a ampla maioria parlamentar, com o golpe da reeleição, também indicou elementos de cesarismo. Nos governos Lula, apresentou-se a possibilidade do cesarismo progressivo, que não se efetivou pela opção de não mobilizar as massas e preferir conciliar com as oligarquias e frações burguesas. Com Temer, a democracia oligárquica se mostrou da maneira mais transparente. Na sequência, com Bolsonaro, o Brasil enveredou por uma experiência de cesarismo regressivo que só não foi adiante porque enfrentou resistência dentro da própria classe dirigente, em setores prejudicados pela política econômica excessivamente centrada nos interesses dos bancos e da agricultura de exportação, além da desastrosa política externa.

Os governos Temer e Bolsonaro aproveitaram a amplitude da base parlamentar (e judicial) para exasperar a prática e a legislação antipopular e antinacional. As últimas defesas dos trabalhadores na contratação da venda de trabalho foram dizimadas e se radicalizou a concepção neoliberal de “liberdade”. A perspectiva de implantação do cesarismo regressivo correu em paralelo ao massacre das massas trabalhadoras, que se tornou literal na fase mais grave da pandemia da COVID-19.

A resistência popular, dobrada pela pandemia, pela repressão estatal, pela ofensiva ideológica da burguesia e pelas mudanças tecnológicas, muito pouco pode fazer. A crise ideológica da esquerda, engolfada no pós-modernismo e nas lutas identitárias, apartada da perspectiva de classe, apenas facilitou o avanço conservador. O chamado centro democrático não foi capaz de se agrupar e apresentar uma candidatura viável para as eleições de outubro de 2022. O esfacelamento do PSDB e a tradicional incapacidade do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de apresentar uma candidatura apenas aceleraram o deslocamento para a direita de todo o quadro político. A candidatura de Bolsonaro para um novo mandato, em caso de sucesso, quase certamente fecharia o quadro de um cesarismo regressivo no qual o barbarismo imperaria sem maiores dificuldades.

Saído da prisão, logo o ex-presidente Lula da Silva se mostrou o úniconome viável para evitar a continuação de Bolsonaro no poder. Tratou, antes de mais nada, de unificar o que foi possível da área mais à esquerda, com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), O Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Vede (PV), Rede e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Para a esquerda reformista, sem ter constituído qualquer alternativa estratégica, não restou outra opção senão a adesão à candidatura do PT, o partido hegemônico dessa área. Agrupada essa área, Lula e o PT se desdobraram para ampliar a aliança ao centro e mesmo à direita “civilizada”. Estava claro que, para derrotar Bolsonaro nas urnas, havia a necessidade de se estruturar a mais ampla frente política possível. Essa foi a chave da vitória, mas também o limite que se impôs para governar.

O resultado eleitoral mostrou Lula vitorioso por uma margem estrei-tíssima, mas as urnas também evidenciaram que o Congresso Nacional trazia um perfil mais adequado a um novo governo Bolsonaro. De fato, o Congresso, desde 2012, vinha assumindo uma face cada vez mais conservadora. A única possibilidade de se estabelecer um governo estável foi montar um ministério que contemplasse todo o arco de apoio eleitoral de outubro e novembro de 2022 e que se ampliasse ainda ulteriormente. O resultado é que apenas os partidos fielmente bolsonaristas restaram na oposição, e o governo enfrenta sérias contradições e conflitos sempre abertos.

A vitória de Lula e o amplo apoio dentro do arco partidário podem parecer um indício de um amplo consenso social e a possibilidade de encaminhar medidas de ampliação da democracia e de reformas sociais. Isso é, todavia, um engano, pois a verdade é muito diferente. Note-se que, além de um Congresso Nacional conservador, também os governadores eleitos dos estados mais importantes da federação foram apoiados por Bolsonaro (casos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná).

A fim de se manter no governo, Lula precisa adaptar-se à estratégia neoliberal da burguesia e ceder às demandas do Congresso, que, por suposto, representa os interesses das classes dominantes. Antes de mais nada, terá que preservar o chamado superávit primário, ou seja, o interesse do capital financeiro. Deverá defender os interesses do capital agrário, entrelaçado com o capital financeiro, e com parcela do setor industrial inserido nas redes internacionais de produção. Em poucas palavras, não haverá como romper com o imperialismo e o latifúndio. O discurso sobre a reindustrialização é uma tentativa de fortalecer a burguesia industrial, devastada no período anterior. O discurso sobre a preservação ambiental também é um esforço para atrair capitais externos. Já os esforços para resgatar as chamadas políticas públicas, no fim das contas, são uma tentativa de fortalecer a hegemonia burguesa, tal como fizeram os anteriores governos petistas.

Meritório, sem dúvida, é o esforço na questão ambiental e no resgatede uma política externa independente. O problema é que a cena é muito mais complexa nos dias atuais. A crise orgânica do capital se agravou terrivelmente e a conflitualidade entre os Estados também. Os Estados Unidos buscam retardar o seu inexorável declínio, estreitando o seu controle sobre a União Europeia para confrontar a Rússia e a China. A tentativa de estrangular a Rússia por meio de sanções e da guerra na Ucrânia fracassou, mas agravou a crise na Europa. Esta, por sua vez, perde espaço na África. A China perdeu ímpeto no seu crescimento e se reorganiza internamente. O Brasil tem a oportunidade de se reaproximar dos países da América Latina, reforçar os laços de solidariedade e mesmo de se descolar do imperialismo americano. Mas isso não acontecerá, pelo simples motivo de que as mudanças estruturais internas não ocorrerão. A correlação de forças internas no Brasil e mesmo no conjunto do continente é muito desfavorável. Se o governo Lula intentar mudanças profundas na vida econômica do país, correrá o imenso risco de ser deposto, de maneira que será um governo de permanente conciliação entre os setores dominantes, com possíveis concessões às classes subalternas.

Mudanças via eleições de governos pretensamente reformistas dentro de regimes de democracia oligárquica em Estados neoliberais são impossíveis. Daí a instabilidade política e a oscilação entre governos de direita liberal e de esquerda reformista. A variação possível dentro desse quadro é a emergência sempre possível do cesarismo como proclamada solução para a crise. Pode ser um cesarismo regressivo, como o intentado por Bolsonaro, ou um cesarismo progressivo, como foi o de Hugo Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia. Nos casos de Chávez e Morales, eles conseguiram uma maioria parlamentar sustentada por uma massa popular mobilizada. Lula poderia ser uma expressão de cesarismo progressivo, mas isso não parece possível, não apenas porque ele mesmo não quer, mas porque a apatia das massas populares no Brasil é enorme e o momento é de clara preponderância ideológica do conservadorismo liberal.

A tentativa de cesarismo progressivo fracassou no Peru e, no Chile, opresidente teve que se arcar frente a uma maioria parlamentar antirreformista. Só uma alternativa revolucionária pode romper essa oscilação entre a fictícia democracia das oligarquias e o cesarismo. No entanto, dada a correlação de forças desfavorável para as classes subalternas, a luta a ser travada é ao modo de uma guerra de posição de longo prazo. A necessidade é a de organizar os trabalhadores nos lugares de trabalho e de moradia das formas mais variadas (conselhos, sindicatos, organizações de cultura); criar a mais ampla unidade, tendo em vista a autoeducação e o autogoverno. Criar, enfim, uma nova sociabilidade, uma nova cultura, uma nova hegemonia fundada no trabalho, organizada democraticamente e que, com a coordenação de um (ou mais) partido revo- lucionário, vise à superação do capitalismo. Sem isso, os riscos de uma generalizada regressão na barbárie serão incontornáveis.

Referencias

-

Cómo citar

APA

Del Roio, M. (2024). Lula 3: a impotência do reformismo. Ciencia Política, 19(37), 45–51. https://doi.org/10.15446/cp.v19n37.116725

ACM

[1]
Del Roio, M. 2024. Lula 3: a impotência do reformismo. Ciencia Política. 19, 37 (dic. 2024), 45–51. DOI:https://doi.org/10.15446/cp.v19n37.116725.

ACS

(1)
Del Roio, M. Lula 3: a impotência do reformismo. Cienc. politi. 2024, 19, 45-51.

ABNT

DEL ROIO, M. Lula 3: a impotência do reformismo. Ciencia Política, [S. l.], v. 19, n. 37, p. 45–51, 2024. DOI: 10.15446/cp.v19n37.116725. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/cienciapol/article/view/116725. Acesso em: 14 abr. 2025.

Chicago

Del Roio, Marcos. 2024. «Lula 3: a impotência do reformismo». Ciencia Política 19 (37):45-51. https://doi.org/10.15446/cp.v19n37.116725.

Harvard

Del Roio, M. (2024) «Lula 3: a impotência do reformismo», Ciencia Política, 19(37), pp. 45–51. doi: 10.15446/cp.v19n37.116725.

IEEE

[1]
M. Del Roio, «Lula 3: a impotência do reformismo», Cienc. politi., vol. 19, n.º 37, pp. 45–51, dic. 2024.

MLA

Del Roio, M. «Lula 3: a impotência do reformismo». Ciencia Política, vol. 19, n.º 37, diciembre de 2024, pp. 45-51, doi:10.15446/cp.v19n37.116725.

Turabian

Del Roio, Marcos. «Lula 3: a impotência do reformismo». Ciencia Política 19, no. 37 (diciembre 2, 2024): 45–51. Accedido abril 14, 2025. https://revistas.unal.edu.co/index.php/cienciapol/article/view/116725.

Vancouver

1.
Del Roio M. Lula 3: a impotência do reformismo. Cienc. politi. [Internet]. 2 de diciembre de 2024 [citado 14 de abril de 2025];19(37):45-51. Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/cienciapol/article/view/116725

Descargar cita

CrossRef Cited-by

CrossRef citations0

Dimensions

PlumX

Visitas a la página del resumen del artículo

67

Descargas