Publicado

2016-12-01

A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor

DOI:

https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148

Palabras clave:

S. Kierkegaard, fé, existência, paixão, sentido. (es)

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Autores/as

  • Nicoly Andrade Universidade Federal de Juiz de Fora

Assumindo que o “tornar-se cristão” é o eixo que sustenta toda a produção literária de Søren Kierkegaard, o escopo deste ensaio é tentar delinear o conceito de paixão apresentado em Temor e Tremor como uma condição necessária para a efetivação dos movimentos dialéticos que possibilitam o desenvolvimento da fé. Efetivamente, é através do pseudônimo Johannes de Silentio que Kierkegaard apresenta sua ode à fé. Neste sentido, é sobre o esteio da narrativa apresentada em Temor e Tremor acerca da fé demonstrada por Abraão (quando Deus solicitou-lhe a vida de Isaac em sacrifício) que destacaremos a importância que o mencionado pseudônimo atribui à paixão como fundamento que precede e, substancialmente, compõe a fé última: aquela que só emerge ante ao absurdo, mas que, uma vez conquistada, assoma como possibilidade para a fuga do desespero da existência e para a construção de sentido para a vida humana.

 

 

 https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148

 

A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor

Passion as the Condition for Faith in Fear and Trembling

 

 

 

Nicoly Andrade*

Universidade Federal de Juiz de Fora - Juiz de Fora – Brasil

* nicolyandrade@gmail.com

 

Cómo citar este artículo:

MLA: Andrade, N. “A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor.” Ideas y Valores 65. sup. N.º 2(2016): 165-174

APA: Andrade, N. (2016). A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor. Ideas y Valores, 65 (Sup. Nº 2), 165-174

CHICAGO: Nicoly Andrade. “A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor.” Ideas y Valores 65. Sup. Nº 2(2016): 165-174

 

Resumo

 

Assumindo que o “tornar-se cristão” é o eixo que sustenta toda a produção literária de Søren Kierkegaard, o escopo deste ensaio é tentar delinear o conceito de paixão apresentado em Temor e Tremor como uma condição necessária para a efetivação dos movimentos dialéticos que possibilitam o desenvolvimento da fé. Efetivamente, é através do pseudônimo Johannes de Silentio que Kierkegaard apresenta sua ode à fé. Neste sentido, é sobre o esteio da narrativa apresentada em Temor e Tremor acerca da fé demonstrada por Abraão (quando Deus solicitou-lhe a vida de Isaac em sacrifício) que destacaremos a importância que o mencionado pseudônimo atribui à paixão como fundamento que precede e, substancialmente, compõe a fé última: aquela que só emerge ante ao absurdo, mas que, uma vez conquistada, assoma como possibilidade para a fuga do desespero da existência e para a construção de sentido para a vida humana.

Palavras-chave: S. Kierkegaard, fé, existência, paixão, sentido.

 

Abstract

 

Assuming that “becoming a Christian” is the fundamental theme of S. Kierkegaard’s literary production, the purpose of this essay is to outline the concept of passion set forth in Fear and Trembling as a necessary condition for the realization of the dialectical movements that make possible the development of faith. On the basis of Abraham’s demonstration of faith, the article highlights the importance granted by Johannes de Silentio to passion as the foundation that precedes and constitutes the ultimate faith: that which arises only in the face of the absurd, but which, once attained, reveals itself as a possibility of escaping from the desperation of existence and of giving meaning to human life.

Keywords: S. Kierkegaard, anxiety, faith, religion.

 

Em 1843, por meio do trovador Johannes de Silentio, Kierkegaard publicou a obra Temor e Tremor (1979b). Nesta, sob o esteio da narrati­va bíblica que relata a fé demonstrada por Abraão no episódio em que Deus solicitou-lhe a vida de Isaac em sacrifício, o autor apresentou sua ode à fé. Aparentemente, seu intuito era suscitar na cristandade ques­tionamentos sobre o caráter genuíno da fé, sobre sua real efetividade na vida do homem e sobre as relações dialéticas que nela estão implica­das. Todavia, sob esses subterfúgios, ele também apresentou conceitos paralelos ao da fé, os quais, no decorrer da sua atividade literária, ele retoma e elucida. A paixão, por exemplo, é um dos conceitos que se des­dobram nesse texto e, quando devidamente articulada, pode amparar o entendimento da constituição teleológica do corpus Kierkegaardiano: o tornar-se cristão. Isso posto, acredito que é possível vislumbrar que o propósito de Kierkegaard enquanto autor era conduzir o indivíduo à construção de um sentido para sua vida através do cristianismo, o qual, para ele, parecia estar intrinsecamente relacionado à apropriação do amor por meio da reestruturação da síntese que compõe o homem na qualidade de existente.

 

Ora, em 1849, Anticlimacus assumia que o homem, enquanto homem, é uma síntese dialética de temporalidade e eternidade (cf.Kierkegaard 1979a). Mas, vale lembrar que, já em 1843, Constantius1 havia declarado que a existência, essencialmente, é um movimento dia­lético em quea repetição é a seriedade da vida (cf.Kierkegaard 2009). Nesse sentido, a seriedade seria a temporalidade, haja vista que é a rea­lidade que se repete geração após geração. E, considerando a seriedade a estrutura de um polo da dialética, podemos tomar como oposição à seriedade o pathos (a paixão, o humor) como o contrapeso dialético do movimento da existência, o qual possibilita a construção de um sentido à repetição enquanto seriedade, transmutando-a para uma retomada de si mesma de forma ressignificada.

Dito isso, podemos inferir que, mesmo após a queda –a qual podemos pressupor que é o estado de nãoverdade em que o homem se encontra nas Migalhas Filosóficas–, a eternidade foi conservada na natureza dialética do homem, uma vez que ele não deixa de ser uma síntese em decorrência desse processo, ainda que tenha perdido o vínculo abso­luto com o Eterno (de outro modo seria impossível a busca do homem pelo que remete ao divino). Então, na assunção de que a eternidade se conserva mesmo depois da queda, é importante considerar sob qual aspecto ela se preserva.

Nesse sentido, o escopo deste texto é tentar delinear a paixão como condição que, necessariamente, precede à fé. No entanto, para tal, tem-se em vista o entendimento de que a paixão é a substância da eternidade no homem. Ela seria a energia que, mesmo inconscientemente, move o homem em direção a algo que esteja relacionado à divindade. Ora, Silentio reforça essa compreensão na medida em que, desde o princípio de sua obra, pressupôs que todo homem possui uma consciência eterna,2 e que um vínculo sagrado cinge a humanidade. Dessa maneira, ele as­sume que o homem participa da eternidade desde que existe. No que ainda afirmou que, se assim não fosse, “que seria a vida senão desespe­ro? [...] mas tal não é o caso” (Kierkegaard 1979b 117). Porém, para que essa paixão torne-se o motor que move o sentido da existência proposto por Kierkegaard no percurso de sua produção, ela deve transmutar-se.

 

Bem, sem querer tangenciar a sustentação dessas acepções ora as­sumidas, compreendo que a introdução de uma atmosfera adequada é fundamental para a compreensão do conceito de paixão que pretendo esboçar. Em vista disso, proponho, preliminarmente, evocar as dire­trizes em que Temor e Tremor opera acerca da fé para, ulteriormente, delimitar a importância que se deve atribuir à paixão como funda­mento para a efetivação dos movimentos dialéticos que precedem o desenvolvimento da fé.

 

Portanto, vejamos: Silentio fala que, pela fé, Abraão obteve a promes­sa de que todas as nações da terra seriam abençoadas na sua posteridade (Kierkegaard 1979b 118); ele sustenta que “Abraão guardou firmemente a promessa” (id.119). Assim, a fé, nesse caso, seria o elemento que propor­ciona a tenacidade ante a incerteza objetiva da efetivação da promessa. Segundo Silentio, a fé aqui é, com efeito, o fator que mantém o desejo dando continuidade à esperança. Ela é o milagroso, apesar de que, “à primeira vista o milagre parece consistir na realização daquilo que se espera” (ibd.).

 

Aqui a esperança de Abraão repousava, inevitavelmente, na crença concomitante da paternidade. Contudo, é preciso atentar que a preo­cupação de Silentio não estava em construir um conceito abstrato de fé –posto que declarou: “é contrário aos meus sentimentos falar de tão grandes ações sem (considerar sua) humanidade, deixá-las a flutuar nos contornos indecisos dos longínquos horizontes” (Kierkegaard 1979b 147)–, mas antes em evidenciar a fé que Abraão desenvolveu em decorrência do tipo de relacionamento que possuía com Deus. No que Silentio as­severa que se tratava de um relacionamento absoluto com o Absoluto. Em razão disso, pode-se, então, pressupor que Abraão conhecia Deus em todas as concepções que seu nome abarca, e que a Ele direcionava toda a sua paixão, temor e confiança, haja vista que:

 

[de] início o cavaleiro deve ter a força de concentrar toda a substância da vida [paixão] e todo o significado da realidade num único desejo. No caso de o não conseguir, a alma encontra-se, desde o princípio, dispersa no múltiplo e jamais poderá chegar a realizar o movimento. (Kierkegaard 1979b 133)

 

Logo, quando o homem não direciona a sua paixão (sua energia de vida) primeiramente a Deus, não alcança a consciência eterna, e sua vida não é outra coisa senão desespero.

Ora, esse único desejo do qual Silentio falava, cuja não efetividade impede que o indivíduo alcance a fé e seus movimentos, é o desejo de relacionar-se com Deus (Silentio nos dá um vislumbre de que a fé seria o único plano para a evasão de uma vida desesperada). Não obstante, alcançado o desejo, percebe-se que a fé que dele procede, por ele também é condicionada em virtude do conhecimento que se adquire de Deus. Por isso, desenvolve-se uma plena confiança em que“nenhum sacrifício é demasiadamente pesado quando Deus o pede” (Kierkegaard 1979b 120). Assim, a fé que Abraão teve nas promessas da paternidade e das nações por herança, ainda que importante, não configurava o sentido forte da concepção de fé que Silentio tencionava delinear. Tal sentido, no entanto, ele encontrou sob a égide da fé que Abraão demonstrou no episódio em que Deus requereu a vida de Isaac em sacrifício.

Desse modo, esta fé não diz respeito à fé em Deus3 ou em suas promessas. Mas aqui se trata da crença no que Deus não proclamava, cria-se na contraditoriedade, cria-se no que Deus velava. E esta fé é uma fé corajosa4 que surge somente ante um absurdo:5 no caso, na crença da revogação da petição divina, ou da restituição da vida do filho amado. No que Silentio pressupõe que, na verdade, Abraão teve fé que Deus não queria lhe exigir Isaac (cf.Kierkegaard 1979b 128), “de outro modo, ele teria por ventura amado a Deus, mas não teria sido um homem de fé” (id.129).

Entretanto, é necessário que não seja obliterado que, para que se alcance essa fé, Silentio estabelece que antes se faça imperativo um mo­vimento pregresso, sem o qual a fé seria um embuste: o da resignação infinita da finitude. Não obstante, notemos que Abraão já havia se resig­nado da vida de Isaac, tendo em vista que estava “disposto a sacrificá-lo se tal fosse indispensável” (Kierkegaard 1979b 128). Dessa maneira, Silentio afirmou que o último estágio do qual Abraão se distanciou foi o da resignação infinita. E, indo mais longe, efetivamente, alcançou a fé (id.129). Todavia, como já foi aclarado, essa fé não era a fé que apenas se direcionava ao infinito, mas sim a fé que, depois de ter conhecido a felicidade do infinito (a relação absoluta com Deus), experimenta a dor da total renúncia daquilo que também ama ao ter que resignar-se infi­nitamente da finitude (“Deus é aquele que exige amor absoluto, mas o que, ao requerer o amor de uma pessoa, pretende ao mesmo tempo que este amor se manifeste pela tibieza em relação a tudo” (id.153)). Porém, em seguida, essa fé manifesta-se em direção à retomada dessa finitude renunciada (id.130) para então “saborear o finito com tão pleno pra­zer como se nada tivesse conhecido de melhor [...] e, no entanto, toda essa representação do mundo que ele figura é nova criação do absurdo” (Kierkegaard 1979b 132). E este é o ato prodigioso da vida de Abraão, dado que “grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é guardar o temporal depois de a ele ter renunciado” (id.119).

 

É interessante ressaltar que, segundo Silentio, tal renúncia confi­gura-se em um movimento constante e solipso,6 cujo sentido efetiva-se apenas “se o movimento se efetua normalmente”,7 o que, para tanto, “é necessário paixão” (Kierkegaard 1979b 133). Isso posto, esboça-se a evidência de que a paixão é o elemento que dá substancialidade ao sen­tido do movimento da resignação infinita. Logo, ela é, antes de tudo, a condição para a efetivação autêntica desse primeiro movimento, con­siderando que “todo o infinito se efetua apaixonadamente” (ibd.).

Sendo esse primeiro movimento condição necessária para o salto da fé, acentua-se que a paixão ora mencionada evidencia sua precedência ao movimento dialético da fé. No que Silentio ainda acrescenta que: “é-me lícito, portanto, afirmar que importa possuir força, energia e liberdade de espírito para realizar o movimento infinito da resignação, inclusiva­mente para que a sua execução seja possível” (Kierkegaard 1979b 136). Em razão disso, podemos pôr a paixão em equivalência à mencionada força e liberdade de espírito. E, da maneira como esses termos foram colocados por Silentio, outorga-se a possibilidade de se conjecturar que, na medida em que sua precedência à fé é demonstrada, a paixão tam­bém pode ser pensada como a energia que põe movimento à existência ou, no limite, poder-se-ia afirmar que ela é o traço da eternidade que estrutura o homem enquanto síntese dialética.

 

Ademais, com o intento de reforçar a ideia da paixão como condição precedente à fé, é importante ressaltar a assertiva de Silentio que afir­ma que a fé “não é o instinto imediato do coração” (Kierkegaard 1979b 136). Ora, atentemos que aqui o autor sugere que há algo instintivo na alma do homem. Porém, se tal assertiva não levanta o questionamen­to acerca de qual seria o instinto imediato do coração senão a paixão, pomos em pauta a afirmação que, em certa altura, Silentio faz: “aquilo que chamo propriamente humano é a paixão, através da qual cada ge­ração compreende inteiramente a outra e a si própria” (id.184). E, indo além, o autor afirma que é na paixão que toda a vida humana encontra a sua unidade (cf.id.149), tendo em vista que a paixão põe a igualdade em todos os homens, no que sem paixão nenhum dos movimentos se­ria possível: “a fé é um milagre; no entanto ninguém dela está excluído; porque é na paixão que toda a vida humana encontra a sua unidade, e a fé é uma paixão” e “as paixões igualam todos os homens” (id.149). Então, sendo a paixão a unidade e a igualdade entre os homens, que seria a paixão se não o fundamento contraposto da dialética da existência?

 

Demonstração que sustente a paixão como contrapeso dialético da existência do homem e, por conseguinte, como condição precedente à fé, podemos encontrar na asserção de Silentio que diz que o herói é o melhor de si mesmo, e na subsequente alegação de que o poeta é o me­lhor do ser do herói. Considerando que o poeta enquanto poeta está, de forma ordinária, entrelaçado à condição daquele que essencialmente emana paixão para determinado objeto, podemos conceber que a paixão é o elemento que fundamentalmente o caracteriza. Não obstante, esse traço que o caracteriza como o melhor do ser do herói existe no poeta de forma transfigurada. No que, de acordo com Silentio, esse traço no poeta manifesta-se como uma débil recordação (cf.Kierkegaard 1979 117).

Mas, vejamos que tal traço também é o que sustenta o herói como sendo o melhor de si mesmo. Por conseguinte, em toda obra, o que foi posto como o melhor do herói, como o prodigioso na sua vida, foi a fé que ele manifestou. E, tendo isso em relevância, é pertinente lembrar que, conforme o autor infere, a fé é “a mais alta paixão do homem” (Kierkegaard 1979b 184). Todavia, Silentio igualmente diz que

 

[t]alvez haja muitos homens de cada geração que não a alcancem [...] que não a descobrem [...] Mas mesmo para aqueles que não chegam até à fé, a vida comporta suficientes tarefas, e se as abordam com sincero amor, a sua vida não será perdida, mesmo que não possa ser comparada à existência dos que aprenderam a alcançar o mais alto. (id.185)

 

Assim, podemos assumir que ambos possuem paixão: herói e poeta. Portanto, eles possuem uma mesma estrutura que sustenta a sua existên­cia. Contudo, é importante notar que tal elemento pode desenvolver-se com distintas intensidades na vida dos homens, haja vista que, como antes colocado, nem todos alcançam o mais alto nível de paixão que, por ora, é admitida como fé.

 

O herói, como vimos, desenvolveu um alto nível de paixão ao di­recioná-la de forma infinitamente interessada a Deus. Ele ancorou essa paixão em uma plena confiança no objeto amado, no Infinito que, em contrapartida, faz parte dele e o sustenta na medida em que se encontram em uma correta relação (cf.Kierkeegard A doença para a morte). E, em compensação, essa relação, implica um movimento cíclico e contínuo que, no entanto, é o fator que dá equilíbrio à existência, a julgar que a temporalidade, em sua infinita possibilidade de repetição, é inconstância e necessita de algo que lhe é exterior como ponto que lhe dê tenacidade.

O poeta, por sua vez, direciona sua paixão a um objeto concernente à própria finitude, ou seja, ao herói. E, em vista disso, a transfigura em uma paixão que consiste em não mais do que uma recordação insufi­ciente da paixão autêntica do herói. Ele não a direciona à sua suposta origem, isto é, ao ponto que é externo à finitude, posto que permanece “no torvelinho das paixões obscuras” (Kierkegaard 1979b 117). Então, inclinado à finitude, não desenvolve paixão suficiente para executar os movimentos da fé (id.170).

 

Dessa maneira ilustrada, parece-nos, então, que a diferença entre o herói e o poeta está no desenvolvimento e no direcionamento que ambos fazem da paixão que os compõe. Não obstante, ela encontra-se em um e em outro. E, ao que nos parece, é o traço da eternidade na composi­ção dialética que sedimenta a existência do homem. Logo, desse modo colocado, podemos pressupor que a paixão é condição que não apenas precede a fé, mas que também a estrutura. Porém, interpretando que o homem pode manejá-la segundo seu arbítrio, ela pode ser desenvolvida e direcionada em função de qualquer objeto. Contudo, vale realçar que, ordinariamente, a paixão nos predispõe ao doar-se ao objeto amado de forma abnegada. E, sendo esse objeto de infinito interesse a própria fi­nitude, “que seria da vida senão o desespero?” (Kierkegaard 1979b 117).

Mas, quando se direciona essa paixão de forma infinitamente interes­sada para Deus, põe-se a síntese em equilíbrio e favorece-se um cenário para o desenvolvimento da fé: “é necessário primeiro que o Indivíduo se haja esgotado na infinitude, para chegar então ao ponto em que a fé pode surgir” (Kierkegaard 1979b 151). A fé, assim disposta, surge como possibilidade para fuga do desespero e para a construção de sentido da existência do indivíduo, considerando que as respostas falseadas que se dão ao sentido não são senão desespero: as conclusões da paixão são as únicas dignas de fé, as únicas provas (id.170). Ainda assim, busca-se sentido para a realidade, e essa busca persiste no intuito de preencher o vácuo estabelecido na desestruturação da síntese. Assim, é possível arrazoar que a paixão, enquanto traço da eternidade no homem, é o que permitiria o vislumbre do destino que dá origem ao sentido.

 

No entanto, entende-se que, “quando se emprega categorias reli­giosas ao sentido, o próprio leitor é quem deve tratar de lhes conferir consequências lógicas, pois o sentido da vida é um símbolo. Não é possível determiná-lo objetivamente”. Além do mais, os conceitos na filosofia (Kierkegaard 1979b 171) de Kierkegaard devem ser experimen­tados para então serem compreendidos. Logo, a medida da adequada compreensão da paixão estaria imbricada à vivência dos movimentos da fé. Mas, como dizia Silentio: “quantos têm hoje a paixão necessá­ria para meditar neste problema e se julgarem a si próprios com toda a sinceridade?” (Kierkegaard 1979b 171). Não obstante, o pseudônimo ainda adverte: “no mundo do espírito, só é enganado quem se engana a si próprio” (id.170).

 

Bibliografia

 

Kierkegaard, S. O desespero humano. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979a.

 

Kierkegaard, S. Temor e tremor [1843]. Trad. Maria José Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979b.

 

Kierkegaard, S. Fear and Trembling / Repetition.Princeton: Princeton University Press, 1983.

Kierkegaard, S. A doença para a morte: Uma exposição psicológico-cristã para edificação e despertar.Trad. Jonas Roos. s.d. Manuscrito mimeografiado a partir de texto eletrônico.

Kierkegaard, S. A repetição. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.

NOTAS

 

1.     Pseudônimo que surgiu quase em concomitância com o aparecimento de Johannes de Silentio no corpus pseudonímico, visto que ambos foram apresentados ao público leitor no ano de 1843. Porém, Constantius é introduzido na atividade literária kierkegaardiana alguns meses antes de Silentio.

2.     Posteriormente, ele fala que o homem só adquire a consciência da sua eternidade no movimento da resignação infinita. Logo, antes dela, a vida do homem não seria senão desespero, potência de paixão sem direção.

3.     Sobre essa fé, Silentio se autoafirmava: “possuo a certeza de que Deus é amor [...] mas não tenho fé; não tenho essa coragem [...] posso muito bem executar o salto de trampolim no infinito” (Kierkegaard 1979b 129).

4.     Orfeu “sofreu tal decepção porque foi um efeminado. Sem coragem, um mero tangedor de lira e não um homem” (Kierkegaard 1979b 125). A coragem que aqui se fala, e que transforma o homem em homem, em si mesmo, é a fé. É a disposição para a ação e a crença na recompensa, considerando que “o que trabalha gera seu próprio pai” (id.123).

5.     Silentio afirma que a fé sempre pressupõe o absurdo. (Kierkegaard 1979b 130). Entretanto, aqui ela é duplamente realçada na medida em que petição divina também implica um absurdo: o sacrifício de um filho. Ora, notemos que Deus estava a) exigindo algo que era fruto de uma promessa anterior que Ele mesmo demorou 70 anos para cumprir; b) no período da realização da promessa, Abraão tinha 99 anos, e Sara era estéril; c) a promessa da posteridade seria anulada com a morte de Isaac; d) Abraão deveria romper com a estrutura ética na qual estava imerso para aceitar a prova; e)Abraão precisaria manter o silêncio ante Sara, sua bem-amada e companheira de toda uma vida; f) Abraão iria ferir a confiança de Sara, no entanto Sara não poderia entender sua escolha; g) Abraão teria que ser instrumento de sua própria desgraça, e o amor que sentia por Isaac aumentava a contraditoriedade da escolha pelo ato.

6.     “[E], ficando só, empreende seu movimento” (Kierkegaard 1979b 133). “[s]ua conduta é assunto estritamente privado, estranho ao geral” (id.144). Na ordem dos cavaleiros da resignação, torna-se “membro quem quer que tenha a coragem de se apresentar sozinho” (id.134).

7.     To this end passion is necessary.Every movement of infinity comes about by passion, and no reflection can bring a movement about” (Kierkegaard 1983 21).Para tanto é necessário paixão. Todo o infinito efetua-se apaixonadamente; a reflexão não pode reproduzir qualquer movimento. É o salto perpétuo na vida que explica o movimento” (Kierkegaard 1979b 133).

Referencias

Kierkegaard, S. O desespero humano. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979a.

Kierkegaard, S. Temor e tremor [1843]. Trad. Maria José Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979b.

Kierkegaard, S. Fear and Trembling / Repetition. Princeton: Princeton University Press, 1983.

Kierkegaard, S. A doença para a morte: Uma exposição psicológico-cristã para edificação e despertar. Trad. Jonas Roos. s.d. Manuscrito mimeografiado a partir de texto eletrônico.

Kierkegaard, S. A repetição. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.

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Andrade, N. «A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor». Ideas y Valores, vol. 65, diciembre de 2016, pp. 165-74, doi:10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148.

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[1]
Andrade, N. 2016. A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor. Ideas y Valores. 65, (dic. 2016), 165–174. DOI:https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148.

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Andrade, N. A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor. Ideas Valores 2016, 65, 165-174.

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Andrade, N. (2016). A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor. Ideas y Valores, 65, 165–174. https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148

ABNT

ANDRADE, N. A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor. Ideas y Valores, [S. l.], v. 65, p. 165–174, 2016. DOI: 10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/idval/article/view/55148. Acesso em: 24 abr. 2024.

Chicago

Andrade, Nicoly. 2016. «A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor». Ideas Y Valores 65 (diciembre):165-74. https://doi.org/10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148.

Harvard

Andrade, N. (2016) «A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor», Ideas y Valores, 65, pp. 165–174. doi: 10.15446/ideasyvalores.v65n2Supl.55148.

IEEE

[1]
N. Andrade, «A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor», Ideas Valores, vol. 65, pp. 165–174, dic. 2016.

Turabian

Andrade, Nicoly. «A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor». Ideas y Valores 65 (diciembre 1, 2016): 165–174. Accedido abril 24, 2024. https://revistas.unal.edu.co/index.php/idval/article/view/55148.

Vancouver

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Andrade N. A questão da paixão como condição para a fé no itinerário da obra Temor e tremor. Ideas Valores [Internet]. 1 de diciembre de 2016 [citado 24 de abril de 2024];65:165-74. Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/idval/article/view/55148

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