Publicado

2023-01-01

O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento

The Ethos of Dissent in Luís de Camões’ poetry, the poem as argument

El ethos de disenso en la obra de Camões, el poema como argumento

DOI:

https://doi.org/10.15446/lthc.v25n1.105122

Palabras clave:

Poesia lírica, século XVI, estudos camonianos, ethos , estudos de tópica poética. (pt)
Lyric poetry, 16th century, Camonian Studies, Ethos, topic studies. (en)
Poesía lírica, siglo XVI, estudios sobre Camões, ethos, estudios de tópica poética. (es)

Autores/as

  • Matheus de Brito Universidad del Estado de Rio de Janeiro

Para entender Camões e a poesia lírica ibérica do século XVI é indispensável compreender o espaço moral-retórico que organiza cada poema enquanto ato comunicativo. Uma importante contribuição para essa tarefa reside na observação dos textos não literários que assinalam operadores culturais do período. Este artigo começa discutindo uma preceptiva retórica que pode iluminar algumas questões de interesse para o discurso poético, especialmente seu propósito, para avaliar alguns aspectos argumentativos da poesia de Camões, explorando o horizonte no qual se configura uma persona lírica a partir de um ethos. A reflexão aqui proposta pretende avançar em um capítulo da história literária, bem como levantar alguns problemas teóricos.

To understand Camonian and 16th century Iberian lyric poetry, it is indispensable to apprehend the moral-rhetorical space that defines each poem as a communicational act. An important contribution to this task consists in observing non “literary” texts that signal cultural operators of the time. This article begins by discussing a rhetorical preceptive that can shed a light upon some issues of interest to poetic discourse, especially its purpose, for us to evaluate some argumentative aspects of Camonian poetry, exploring the horizon in which a lyrical persona is shaped by an ethos. The proposed reflection intends to advance a chapter of literary history, casting some theoretical problems.

Para entender a Camões y a la lírica ibérica del siglo XVI es imprescindible comprender el espacio moral-retórico que organiza cada poema como un acto comunicativo. Una importante contribución a esta tarea radica en la observación de los textos no literarios que señalan a los operadores culturales del periodo. Este artículo comienza discutiendo una preceptiva retórica que puede iluminar algunas cuestiones de interés para el discurso poético, especialmente su finalidad, para además evaluar algunos aspectos argumentativos de la poesía de Camões, explorando el horizonte en el que se configura una persona lírica a partir de un ethos. La reflexión propuesta pretende avanzar en un capítulo de la historia literaria así como plantear algunos problemas teóricos.

Recibido: 26 de junio de 2020; Aceptado: 21 de septiembre de 2021

Resumo

Para entender Camões e a poesia lírica ibérica do século XVI é indispensável compreender o espaço moral-retórico que organiza cada poema enquanto ato comunicativo. Uma importante contribuição para essa tarefa reside na observação dos textos não literários que assinalam operadores culturais do período. Este artigo começa discutindo uma preceptiva retórica que pode iluminar algumas questões de interesse para o discurso poético, especialmente seu propósito, para avaliar alguns aspectos argumentativos da poesia de Camões, explorando o horizonte no qual se configura uma persona lírica a partir de um ethos. A reflexão aqui proposta pretende avançar em um capítulo da história literária, bem como levantar alguns problemas teóricos.

Palavras-chave

poesia lírica, século XVI, estudos camonianos, ethos , estudos de tópica poética.

Resumen

Para entender a Camões y a la lírica ibérica del siglo XVI es imprescindible comprender el espacio moral-retórico que organiza cada poema como un acto comunicativo. Una importante contribución a esta tarea radica en la observación de los textos no literarios que señalan a los operadores culturales del periodo. Este artículo comienza discutiendo una preceptiva retórica que puede iluminar algunas cuestiones de interés para el discurso poético, especialmente su finalidad, para además evaluar algunos aspectos argumentativos de la poesía de Camões, explorando el horizonte en el que se configura una persona lírica a partir de un ethos. La reflexión propuesta pretende avanzar en un capítulo de la historia literaria así como plantear algunos problemas teóricos.

Palabras clave

poesía lírica, siglo XVI, estudios sobre Camões, ethos , estudios de tópica poética.

Abstract

To understand Camonian and 16th century Iberian lyric poetry, it is indispensable to apprehend the moral-rhetorical space that defines each poem as a communicational act. An important contribution to this task consists in observing non “literary” texts that signal cultural operators of the time. This article begins by discussing a rhetorical preceptive that can shed a light upon some issues of interest to poetic discourse, especially its purpose, for us to evaluate some argumentative aspects of Camonian poetry, exploring the horizon in which a lyrical persona is shaped by an ethos. The proposed reflection intends to advance a chapter of literary history, casting some theoretical problems.

Keywords

Lyric poetry, 16th century, Camonian Studies, Ethos , topic studies.

Quem me dera por língua um raio ardente, Que os corações abrira e abrazára, E os derretera, unira e transformara, No amor, que arde e inflama suavemente. Fr. Agostinho da Cruz, Voto de ardente amor divino

Este artigo aborda a constituição ética do poema como argumento, considerando não apenas a inventio da res e a dispositio dos uerba, mas sobretudo seu registro “elocucional”, conforme o qual estilo e gênero se adequam, sendo a própria persona em grande medida um fingimento poético cujo fim é corroborar o ethos de poeta segundo a conveniência do gênero. Para isso, servir-nos-emos de recentes estudos da preceptiva retórica neolatina, dedicando especial atenção ao De Eloquentia Libri Quinque (1591) de Tomé Correia (1536–1595). O manual do ex-jesuíta e mestre em Bolonha apresenta uma retórica de “reconciliação” das faculdades, registrando uma atitude de importante consequência para o estudo do gênero epidítico ou demonstrativo, sob o qual à data se classificavam as espécies em verso (épico, canção, soneto, etc.). Essa obra de Correia tem especial significação testemunhal menor, 1 pois que, afastadas as grandes polêmicas, lança luz sobre uma situação geral dos processos por meio dos quais os poemas vêm a existir e circular.

Nossa exposição divide-se em três partes: começamos por um pequeno comentário aos referidos estudos e à retórica de Correia, destacando daí elementos que nos servirão de prisma para, numa segunda parte, fazer considerações à volta da canção “Vinde cá, meu tão certo secretário” de Luís de Camões. Na terceira, preparando a conclusão, propomos uma reflexão mais geral sobre o problema da representação dos costumes, aquilo a que nos referimos por ethos. Dedicar-nos-emos, ao longo, à caracterização de um ethos do poeta em dissídio, o qual está no cerne de uma tópica que a um só tempo abre para uma reflexão “metapoética”, lugar-comum do período, e para uma crítica aguda dos costumes da Corte e da “situação espiritual” do Império português, a saber, a crise social, econômica e política tal como figuraria sob a lente da religião. Não é difícil percebê-lo em Os Lusíadas e inferir, a partir do estudo de sua lírica, a complexa construção de personae poéticas a partir de uma diversidade de ethe. Resta-nos, portanto, lançar questões de interesse teórico-historiográfico e, com isso, vislumbrar caminhos disciplinares, considerando a renovação dos estudos de retórica, para a abordagem da poesia no contexto da Corte portuguesa.

Uma preceptiva genérica?

No capítulo XIV do livro II das Etimologias, Isidoro de Sevilha define ethopeia como a representação “do caráter de uma pessoa [hominibus personam, lit. “a pessoa de um homem”] de modo a exprimir traços relacionados à idade, ocupação, fortuna, felicidade, gênero, luto, coragem” 2 (74). Ele explica que, ao se assumir um personagem, a elaboração da oratio deve levar em conta não só “quem fala” mas “com quem, sobre o quê, onde e quando, o que se fez ou se fará, ou o que se pode sofrer caso alguém negligencie esses despachos” (74). Ethopeia, o processo de reproduzir as características da pessoa numa situação discursiva, é um dos sete exercícios a que se dedicavam os estudantes da arte retórica, no vestíbulo das ciências. 3 Sem substanciais modificações, o esquema oriundo dos progymnasmata da Antiguidade alcança as poéticas do século XVII, inclusive em vernáculo, como as Tablas poéticas (1617) de Francisco Cascales (1564-1642). Esse dado é um dentre vários que compõem uma longa duração da poética ocidental, importantes para, se não desfazermos, ao menos contornarmos certos preconceitos que a legibilidade literária exerce sobre a história das práticas poéticas.

Tomé Correia começa De eloquentia libri quinque (1591) com o pregão de que a arte retórica facultaria o bem privado e público, pondo termo ao dissídio entre a língua e o coração dos homens. A necessidade da eloquência para sanar crises é um tópico exordial que se liga, em sua história mais recente, à retórica de Boncompagno da Signa, segundo o qual a causa de todo discurso é a contrarietas voluntatum que põe os homens em litígio (Tunberg). Além disso, Correia toma o partido pela necessidade de aplicar a retórica às condições do presente. Remete à posição de Pico della Mirandola (1463-1494) quanto à imitação num argumento travado contra Ermolao Barbaro (1454-1593), depois retomado por Gianfrancesco Pico (1469-1533) contra Pietro Bembo (1470-1547), 4 e que ressurge no mordaz Ciceroniano (1528) de Erasmo de Roterdã (1466-1536). Bembo defendia, no seu De Imitatione (1513), a imitação exclusiva de Cícero como emulação do mais perfeito, em sua latinidade bem como em seu estilo; Pico e Erasmo denunciavam o caráter afetado dessa prática, dada a impossibilidade de adequação do usus de um autor a uma época diferente da sua, e à natureza de cada homem. Em seu lugar, preceituavam a composição através das melhores partes dos autores, ou imitação eclética.

Essa é uma oposição básica no campo das letras do século XVI. Os modelos italianos de poesia cortesã então circulam na Península junto a preceptivas retóricas, como investigou Belmiro Pereira (Retórica), vindas sobretudo do Norte europeu —Rudolph Agrícola, Joachim Ringelberg, e Erasmo mesmo—, através de figuras como as de João Vaseu e Clenardo no ambiente institucional português, e devido à formação parisino-lovaniense dos monges crúzios e dos jerônimos (Retórica 740 e seguintes), bem como insinuadas na corte junto aos humanistas portugueses, como Aires Barbosa, Lúcio André de Resende, André de Gouveia, Diogo de Gouveia. Distante das tendências “do Norte”, estariam não só os retores católicos, mas também os comentadores italianos da Poética de Aristóteles, como Robortello, Minturno e Castelvetro (Weinberg). A retórica jesuítica, basicamente o manual de Cipriano Soares, De arte rhetorica libri tres (1562), diz-se dar a esses influxos uma abordagem conservadora, uma modernidade moderada (Mack 179). Noutras palavras: modelos textuais a imitar circulam numa pragmática —o “humanismo” norte-europeu— diversa daquela originária, o que modaliza seus usos. A obra de Correia, no que tem de refratária e sintetizante, parece-nos oferecer um acesso “médio” às condições da comunicação de poesia, possivelmente mais adequado do que se procurássemos ver a influência direta dos italianos no modelo retórico-comunicacional peninsular. 5

Um breve panorama dos cinco livros de Correia é suficiente. Um primeiro ponto a salientar diz respeito à organização da obra, que acompanha mais ou menos as cinco partes da Retórica —a saber, a inventio, a dispositio, a elocutio, e a memoria e pronuntiatio. Depois de explicar, na introdução “Quando et a quibus Rhetoric fuerit inventa”, que o perfeito orador põe o conhecimento de todas as coisas a serviço do bem comum (Correia 3, 6, 80, 102 e seguintes), Correia dedica-se ao estudo da invenção, considerando especialmente o gênero epidítico e seu uso laudativo, sendo escassas as referências ao vitupério. Trata-se de uma longa exposição, com alguns temas da introdução retornando no esforço de relacionar os gêneros discursivos às respectivas virtudes da eloquência e, por vezes, às faculdades da alma (119, 188, 240). Pode-se dizer que a retórica se insere aí no horizonte da analogia teológica, segundo o que a expressão reconciliada corresponderia à alma reconciliada, com implicações salvíficas. 6 Nesse ínterim, é recorrente a preocupação com a persona do orador como fundamento do discurso eficaz (106, 192). Correia não se alinha a uma retórica que moveria o auditório sobretudo pelo manuseio adequado da elocutio, mas fundada na credibilidade (253). O efeito suasivo decorre da adequação das palavras aos argumentos, uerba às res, e destes finalmente à pessoa do orador, algo a que Pereira se referiu como “retórica do pectus” (Retórica 777). Esse partido fundado em Quintiliano e Cícero se contrapõe à tendência de absorver a invenção na lógica e isolar a elocução, tendência do norte-europeu de Rudolph Agricola e Philip Melanchton, naquele contexto reelaborada por Pierre de la Ramée (Pereira, “A Actio). Em lugar de um entendimento “técnico”, como se diz hoje, para Correia é a Eloquência que compreende a Dialética, a Gramática e mesmo a Filosofia (Correia 47-49), pois que tudo se submeteria à palavra como característica humana singular, como diz na introdução, que nos diferencia do rebanho e das feras. “Ad retinendam hominis dignitatem”, preservar a dignidade dos homens é o que pretende seu manual, que se põe como instrumento da Eloquência. Esse é o alcance da justificação da obra, a ideia de que o fim da retórica é encerrar o dissídio das faculdades humanas por meio da palavra, reconciliando os homens consigo mesmos e então entre si. É uma concepção cívico-espiritualista ou político-teológica do discurso, isto é, concebem-se os usos da linguagem no interior de preocupações que atinam indistintamente ao Estado e à Fé.

Uma segunda observação é a de que é também frequente a exemplificação de preceitos retóricos por via da poesia, sendo notável que isso se dê sobretudo no livro da invenção, quando, em contrapartida é esperado que os poetas surgissem como exemplos de elocução. 7 Assim, a matéria da poesia lhe parece perfeitamente comensurável com os propósitos da oratória antiga, na medida em que ela se enquadra no gênero epidítico e —seguindo talvez aí Joachim Ringelberg (Pereira, Retórica 748)— é dotada sobretudo de valor didático, docere; no limite, a imitação poética de ações leva à sua imitação real ou repúdio e, assim, à correção dos costumes (Correia 291, 415-417). Além disso, já numa obra anterior sobre epigramas que dedica a Dom Sebastião, De toto poematis genere, quod epigrama vulgo dicitur, estampada no ano de 1569 em Veneza por Ziletti, Correia também aproximava os ofícios do poeta e do orador num lugar argumentativo mais antigo (586-587), que poderíamos remeter ao De laboribus Herculis de Coluccio Salutati (1331-1406), por exemplo. 8 O mesmo ressurge na introdução ao livrinho (libellus. De Elegia em 1590 em Bolonha por Benatius, tipógrafo que em 1591 imprimirá De Eloquentia. Ainda numa outra obra, In librum de arte poetica Q. Horatÿ Flacci Explanationes (em Veneza por Senensis, a 1587), de tema semelhante, Correia tratava de explicar os preceitos de Horácio relacionando-os a Cícero —e não como aconteceu ao longo de Quinhentos entre os comentadores italianos com quem o mestre certamente estaria familiarizado— à Poética aristotélica.

Por fim, essa exemplificação diz também do público dos cinco livros da eloquência. A poesia é entendida dentro dum quadro moral relativo à vida cotidiana, servindo a fins espirituais. Num dado passo, Correia compara o trabalho do orador ao do médico, pois o orador cura a mente (80); logo a seguir, compara a retórica à preceituação de remédios (107). O terceiro destaque pode ser resumido assim: correspondendo à persona do orador, existe uma preocupação com ajustar a elocução sempre necessariamente à utilidade pública, à verdade da ação moral. O discurso laudativo, por exemplo, não faria sentido se por meio dele o auditório —mais do que o destinatário do elogio— não fosse motivado à ação virtuosa futura (Correia 291, 599). A posição que Correia avançava ecoa a influência de Erasmo na Península, para quem todo saber e prática se põem a serviço da vida cristã (Osório), algo também tematizado pelos humanistas portugueses (Pinho, Humanismo em Portugal: Estudos I . II ); ao mesmo tempo, configura uma resistência à fragmentação disciplinar que se anunciava também pela especialização da Poética nos comentários italianos. Já naquele livrinho sobre epigramas, Correia tentava explicar como toda poética se submetia à retórica, pois a Eloquência, segundo um tópico corrente, era a porta de entrada para todas as ciências.

Essas considerações dão corpo a um conceito particular das letras, muito distinto dos predicados da contemporânea literariedade. Considerando Correia, o que interessa é medir alguma afinidade que possa enriquecer nossa compreensão dos processos que organizam a produção cultural, e especificamente a poesia do século XVI. Um exemplo disso é atribuição do docere à poesia, que teria influência não apenas sobre a matéria da inventio —porque o poema traria algo a louvar ou reprovar— mas também sobre a dispositio. Para Correia, na tradição que se vincula a Cícero e Quintiliano, o exordio e a peroratio do discurso deveriam estar voltados ao mover, permouere dos afetos (Pereira, Retórica 839), respectivamente à captação da atenção do leitor e à injunção afetivamente carregada à ação correta, ao passo que as demais partes —a narratio e a argumentatio— estariam carregadas da informação necessária à edificação, exemplos e contra-exemplos. Devido à proximidade entre os manuais de retórica e aqueles de civilidade —a exemplo de Il Libro del Cortegiano (1528) de Baldassare Castiglione (1478-1529) e do Galateo (1558) de Giovanni Della Casa (1503-1556)—, não é difícil ver o circuito que se forma entre a discussão retórica e as atividades de divertimento da corte, dentre as quais a poesia, como mais adiante exporemos. Sobretudo retenhamos, porém, a eficácia discursiva entrevista na íntima cooperação entre a matéria, a elocução e a persona, bem como sua finalidade cívico-espiritual.

Também aqui apenas poucos pontos bastam para a compreensão do campo discursivo (ou conceitual) em que um ethos do poeta em dissídio é construído. Por ethos queremos discernir uma propriedade pragmática dos gêneros que não se configura como específica persona textual, positivamente verificável, mas que funciona como convenção. 9 Noutros termos, ethos configura uma cadeia isotópica, respeitante à iteratividade de elementos menores que homogeneíza o discurso e define “subgêneros” de discurso. Ao tratarmos de um ethos do poeta em dissídio, é como se um determinado tópico, o do dissídio entre as faculdades, coração e língua, vontade e ação, integrasse o pacto da comunicação poética para um determinado tipo textual e, por conseguinte, o estilo conveniente.

Camões e o argumento

No sentido daquilo que viemos expondo, façamos um brevíssimo comentário à canção de incipit “Vinde cá, meu tão certo secretário”. 10 O exórdio dessa canção se dá em duas estrofes, seguindo uma regra de expolitio, amplificação, que também vemos em Os Lusíadas (1572). O poema começa com a convocação do papel, metonímia para a criação poética —presente em Petrarca mas topicalizada por via da esfragística antiga (Dam)—, e com a preterição do auditório. A escrita é configurada como espaço de subiectio, de autoindagação.

Vinde cá, meu tão certo secretário

dos queixumes que sempre ando fazendo,

papel, com que a pena desafogo!

As sem-razões digamos que, vivendo,

me faz o inexorável e contrário

Destino, surdo a lágrimas e a rogo.

Deitemos água pouca em muito fogo;

acenda-se com gritos um tormento

que a todas as memórias seja estranho.

Digamos mal tamanho

a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,

a quem já muitas vezes o contei,

tanto debalde como o conto agora;

mas, já que para errores fui nascido,

vir este a ser um deles não duvido.

Que, pois já de acertar estou tão fora,

não me culpem também, se nisto errei.

Sequer este refúgio só terei:

falar e errar sem culpa, livremente.

Triste quem de tão pouco está contente! (Camões 322)

O exórdio retoma tópicos da poética do desafogo petrarquista, 11 porém com intenção de afastamento (Seabra Pereira). O tópico da novidade, que anuncia a superação do velho, sofre uma inflexão: é um “tormento estranho” a todas as memórias. Junto à refeitura desse horizonte de expectativas, o auditório é negado numa enumeração englobante —“Deus, mundo, gente, vento”— e com os ouvintes se nega também a efetividade do discurso. Por isso, tampouco o poeta está autorizado a pronunciar-se: infletindo tópico da modéstia (Curtius 123 e seguintes), cogita que dizer o que quer dizer poderia configurar mais um erro, que só acrescentaria à sua má reputação junto aos leitores. O epifonema “Triste quem de tão pouco está contente!” é uma sentenciosa autocomiseração da condição de poeta. Para resumir, elementos exordiais característicos, que codificam instruções de leitura, são sistematicamente renegociados, até refutados.

No entanto, a expolitio contradiz ironicamente a primeira estrofe, acrescendo à disputa de códigos e configurando a psicomaquia do poeta, a addubitatio encadeada pela adversativa, “sim, mas…”:

Já me desenganei que de queixar-me

não se alcança remédio; mas, quem pena,

forçado lhe é gritar, se a dor é grande.

Gritarei; mas é débil e pequena

a voz para poder desabafar-me,

porque nem com gritar a dor se abrande.

Quem me dará sequer que fora mande

lágrimas e suspiros infinitos

iguais ao mal que dentro n’alma mora?

Mas quem pode algu’hora

medir o mal com lágrimas ou gritos?

Enfim, direi aquilo que me ensinam

a ira, a mágoa, e delas a lembrança,

que é outra dor por si, mais dura e firme.

Chegai, desesperados, para ouvir-me,

e fujam os que vivem de esperança

ou aqueles que nela se imaginam,

porque Amor e Fortuna determinam

de lhe darem poder para entenderem,

à medida dos males que tiverem. (Camões 322)

Questões “infinitas”, características do uso sentencioso, confrontam-se com a situação particular do poeta, “quem pena, forçado lhe é gritar”, “quem pode algu’hora medir o mal”. O poema, segundo o raciocínio, segue como necessário porque talvez da “natureza” da pessoa poética, e, no entanto, mesmo através dele permaneceria o hiato entre as palavras e as coisas a que se referem, o dissídio entre a dor sentida no coração e a língua que lhe exprimiria. É, aliás, como se o dissídio fosse condição para a construção do poema e o poema, por fim, a mise-en-scène desse problema e tentativa, se não de solução, de que uma aprendizagem se extraia. Ele se converte de condição pragmática em tópico textual. A matéria, já caracterizada na dicção do poeta, são os sofrimentos causados pelo desejo e seu fracasso, que figuram no texto como Amor e Fortuna. Por fim, o público é restituído com a inversão da fórmula dantesca, também encontrada no soneto “Enquanto quis fortuna”: não intelecto de amor, 12 mas o que assegura a comunicação é o entendimento dos males.

A prerrogativa da experiência do erro, do engano, e da inconsistência do próprio eu instaura uma espécie de poética que poderíamos dizer do aviso, frequente na imaginação do poeta como magister ou praeceptor amoris. “Aviso” quer dizer sobretudo “advertência”, implicando “juízo” e “discrição”, e, portanto, abarca um campo semântico maior do que a contemporânea noção de apenas comunicar algo. 13 O que se prepara no exórdio da canção é uma crítica muito sutil, sustentada numa narrativa de acidentes infelizes: as estrofes seguintes passam em revista o dissídio moral que perpassa a relação do poeta com a corte, em chave paulina —“eu conheci mil vezes na ventura / o melhor, e pior segui, forçado” (v. 45-46), cf. “pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço” (Bíblia ACF, Rm 7.15)—, com notações doridas a respeito da poesia e do enamoramento, que vão se entrelaçando com dados reconhecidamente biográficos. Na medida em que o que se expõe é um conflito íntimo da persona, no entanto, a mascarada da própria experiência permite que as funções de louvor e vitupério do discurso demonstrativo se executem de modo indireto, endereçadas a si próprio e, contudo, ensinando aos outros. Aquilo que muitas vezes se pode perceber como uso irônico em Camões, que já discutimos em outra oportunidade, 14 é com efeito o uso regulado dessas duas funções discursivas.

Às expectativas do leitor correspondem simetricamente o papel do gênero textual na preceptiva, que, como vimos com Correia, diz respeito à adequação da pessoa ao estilo e à matéria, visando à produção de efeitos no auditório. Sobre isso, lembremos que Dante, ao lidar com questões de poesia em vernáculo no século XIV —quando indisponível a abundância de textos antigos que ressurgem com o advento da imprensa—, entendia a canção como subgênero do trágico (Alighieri), que seria o gênero superior. Isso toma parte ou talvez inaugure uma corrente que reserva a canção para a expressão melancólica, cujos modelos para Camões estariam em Sannazaro, Boscán e Garcilaso. 15 É da canção de incipit “El aspereza de mis males quiero” deste último o modelo estrófico escolhido por Camões. Ainda em conformidade com a preceptiva de Bembo, a preponderância dos metros longos e o distanciamento das rimas assinalam sua gravità (67-70). Também essa é uma tradição que tem seus preceitos em Dante e seus modelos de ampla circulação na poesia de Petrarca. 16 Uma leitura comum dessa canção consiste em focar no itinerário aí representado, tendo como alternativas o velho biografismo pré-teórico e, à luz dum “petrarquismo”, o lugar desse texto numa possível narrativa de cancioneiro, mais ou menos depreensível das relações estabelecidas com o mais do macrotexto camoniano, em conformidade com uma imitatio vitae petrarquista. 17 Outra opção é tentar entender o tipo de argumento do poema, que efeito se pretende.

Para pensar o poema como parte de um processo de comunicação, lembremos, junto ao que vimos com Correia, que a matéria do poema e o leitor potencial levam à construção de uma dada pessoa, que é suporte do texto. O auditório é o cortesão de Quinhentos e, bem compreendida, a matéria do poema é o que ele efetivamente expõe. Depois de um longo exórdio afetivamente carregado, o que encontramos são lugares-comuns da cultura letrada, nomeadamente aquilo que caracteriza o perfeito cortesão que o poeta tentaria ter sido: seu natural, galante, (literariamente?) enganoso e desenganado amor (estrofes 3 a 8), seu envolvimento com armas e entrega à aventura (est. 9), seu vigor (est. 10). Os fracassos sucessivos do poeta configuram um desmentido do que se valoriza no espaço da corte. Além de construir seu desmentido pela remissão a lugares-comuns da cultura cortesã, no poema também é frequente o reuso de sintagmas afamados, “fera tão fermosa”, “ervas mágicas”, “doce e piedoso mover d’olhos” —todos sintagmas da poesia lírica, com a inflexão do todo numa chave “triste”. Mesmo essa condição de crise é corrente, um “gosto de ser triste” (v. 160) que outros autores da época manifestam e que já à data se reputava por afetação, e até na obra do próprio Camões.

Um exemplo dessa afetação encontramos nas anedotas editadas por Christopher Lund, como já apontado por Américo da Costa Ramalho (33). Nas Anedotas portuguesas e memórias biográficas da corte quinhentista encontramos um retrato de uma facção de “fidalgos q̃ se prezavaõ de tristes” na corte de Dom João III, os quais “aborreciaõ festas e prazeres, e os q̃ folgavaõ com passaros criavaõ mochos” (Lund 146). Numa disputa sobre pássaros, como conta a anedota, “acudiraõ os tristes, e diceraõ q̃ so o mocho se podia ouvir, porq̃ cantava triste” (146). Em vez de procurarmos ancorar a tristeza da corte em eventos históricos circunstantes, como faz Ramalho ao referir-se à morte da filha de D. João (48), seria proveitoso compreender o circuito de prestígio a que a tristeza está associada. Por que alguém se prezaria de triste?

Se seguirmos Norbert Elias em suas observações sobre o comportamento dos homens nas sociedades do Antigo Regime, o caráter específico da racionalidade da corte se define pelo “planejamento calculado da estratégia de comportamento em relação a possíveis perdas e ganhos de status e prestígio sob a pressão de uma competição contínua pelo poder” (110). Prezar-se de triste tratar-se-ia, então, de um modo de dissimulação de impulsos emocionais, de que, segundo o mesmo Elias, o homem cortesão muitas vezes tem consciência de que tenha se tornado sua “segunda natureza” (243). Assim, o ethos do poeta em dissídio tem um esteio social, não limitado à expressão de um tempo vivido pelo poeta, mas que, antes, atua como condição de produção discursiva, configurando um horizonte particular de recepção.

Isso pode ser complementado por outro exemplo indicado por Ramalho. Nas cartas de Luisa Sigea (1522-1560), sobre a Conversação, as letras e a tristeza, instada a responder por que alguém triste falaria e escreveria melhor do que quando alegre, a humanista expõe uma doutrina do contemptus mundi:

porque el hablar y el escreuir son los órganos del alma adonde ella tiene su aposento, quando ya con lo susodicho tiene vno apurada la escoria del gusto y contento humano, entonçes con más biuesa y arte por medio de los sentidos da a entender lo que se siente. Y como niño que en naçiendo tiene tan entera la perfeçcción del alma como quando es de edad madura, mas la pesadumbre de la carne inhábil no la dexa a mostrar los efetos della hasta que con el exercicio y doctrina viene poco a poco a dar muestras de lo que es, y quanto más se desembaraça de cosas mundanas, más las da. (Sigea e Bonilla y San Martín 286)

A tristeza imbui a alma triste de sua substância —sua persistência, seu desprezo pela vaidade do mundo— e tem origem múltipla, havendo dela uma forma superior, “más de veras”; tem também múltiplas conformações, que variam pela idade do triste. Esse comentário encontra ressonância na coletânea de Lugares comunes de Conceptos, Dichos y Sentencias, em diuersas matérias, de Aranda (1595), que fala de uma segunda tristeza que “es governada por la razõ, la qual tristeza estuuo em Christo nuestro Señor” (84r). Pelo que dá a entender Sigea, é sobretudo uma posição moral a ser buscada, cultivada como aperfeiçoamento pessoal. A tentação a que cede Ramalho é remetê-lo aos “ismos” então em voga e às circunstâncias, sem se perguntar como ou por que com efeito se daria essa voga ou se a circunstância enxergada seria suficiente para produzir um lastro cultural tão amplo. Investigações mais recentes mostram como a tristeza se afigura uma via espiritual, como na discussão à volta do “maneirismo” camoniano. 18 É uma concepção profundamente enraizada no catolicismo peninsular, fosse pela influência de escritos de Sêneca, fosse por influência das ordens mendicantes. 19 Obviamente não poderíamos excluir a “apagada e vil tristeza” a que o Poeta em Os Lusíadas se refere, isto é, as circunstâncias particulares de Portugal e da Europa cristã. 20 Nem, tampouco, e ligado ao que dissemos sobre seu enraizamento, a herança cancioneiril ibérica da coyta. Importa entender como se configura o horizonte de expectativas do leitor de então, que constrangeriam uma caracterização moral da persona de modo a assegurar sua credibilidade, isto é, de modo a tornar o argumento ou pensamento eficiente no sentido de um docere.

Numa carta escrita desde Ceuta, “Esta vai com a candeia na mão…”, Camões parece entender o processo como uma “estereotipia” do conflito íntimo. Ramalho sugere que tenha sido escrita à volta dos vinte e cinco anos. O tom jocoso é geral, a digressão contínua; na carta, o poeta arranja desordenadamente versos conhecidos de Garcilaso de la Vega, Cristóvão Falcão, provérbios populares e versos próprios, a exemplo destes, como diz, da “manada dos enjeitados” (Camões 780):

Não quero e não quero

Jubão amarelo.

Se de negro for,

Tão bem me parece

Quanto me aborrece

Toda a alegre cor!

Cor que mostra dor

Quero; e não quero

Jubão amarelo. (780)

Não lhe parece a tristeza tão evidente quanto a Sigeia. Aliás, a atitude de desprezo que Camões então demonstra lembra uma cena de piques a propósito de um soneto triste-amoroso, que se registra no Libro intitulado El Cortesano. Libro de motes de damas y caballeros (1561) de Luís Milán. 21 No caso da canção de Camões, no entanto, a questão assume tom grave, e o poeta não se afasta do que critica. Por quê?

Voltando a “Vinde cá, meu tão certo secretário”, vejamos a digressão que prepara a tornada, e que configura ser uma ampliação do que o poeta toma como ofício de “fabricar na fantasia / fantásticas pinturas de alegria” (v. 219-220):

Que se possível fosse, que tornasse

o tempo para trás, como a memória,

pelos vestígios da primeira idade,

e de novo tecendo a antiga história

de meus doces errores, me levasse

pelas flores que vi da mocidade;

e a lembrança da longa saudade

então fosse maior contentamento,

vendo a conversação leda e suave,

onde üa e outra chave

esteve de meu novo pensamento,

os campos, as passadas, os sinais,

a fermosura, os olhos, a brandura,

a graça, a mansidão, a cortesia,

a sincera amizade, que desvia

toda a baixa tenção, terrena, impura,

como a qual outra algüa não vi mais... (Camões 326-327)

O leitor familiarizado com a poesia do período reconhecerá o catálogo de lugares-comuns. O que talvez não reconheça é a preceptiva de Tomé Correia para a conclusão artificiosa, que, como nos lembra Pereira (“A Actio”), tem a possibilidade de se desdobrar numa enumeratio seguida de uma amplificatio, visando vehementes permotiones animorum, violentas perturbações dos ânimos. A digressão do desejo é suspensa e, exacerbando o conflito com a intensificada percepção do que perdeu, o poeta retoma o tópico do desengano: “Ah! vês memórias, onde me levais / o fraco coração, que ainda não posso / domar este tão vão desejo vosso?” (327). A subiectio aí, a autoindagação, prepara a tornada ou commiato do poema:

Nô mais, Canção, nô mais; que irei falando,

sem o sentir, mil anos. E se acaso

te culparem de larga e de pesada,

não pode ser (lhe dize) limitada

a água do mar em tão pequeno vaso.

Nem eu delicadezas vou cantando

co gosto do louvor, mas explicando

puras verdades já por mim passadas.

Oxalá foram fábulas sonhadas! (327)

As convenções da tornada ganham visibilidade pelo jogo com seus elementos. Se a autorreflexão é expediente estrutural do gênero, temos de perceber o que é nela codificado. Esse passo faz uso de um sintagma a que o próprio poeta recorre em Os Lusíadas e um outro, com que Boscán conclui os quatrocentos e cinquenta versos da longuíssima canção “Quiero hablar un poco”. O leitor da época provavelmente reconheceria prontamente o verso, bem como a imagem da “água do mar no vaso”, tirada à Legenda Áurea. Por sua vez, a exclamação “Oxalá foram fábulas sonhadas!” se refere ao destacamento da representação poética relativamente à realidade, pois o amor que sublimaria afinal se mostrou a causa mesma de seu aviltamento. As “pinturas de alegria” catalogadas na estrofe anterior seriam desmentidas pelas “puras verdades” que o poeta ao todo narrou e argumentou, e o dissídio apresentado inicialmente entre vivência e expressão acabaria sendo o mesmo entre desejo e desengano. Em vez de pura literatice, a experiência (paradoxalmente encenada como) real, não fantasiado, asseguraria a adequação entre a pessoa e o discurso, por conseguinte ratificando o pacto da comunicação —não são “delicadezas”. Talvez por isso os elementos com aparência biográfica ingressem no poema, isto é, porque, configurando o verossímil discursivo, tais elementos contribuiriam com sua eficiência, com o que Barthes chama “efeito de realidade” (1988). Vale frisá-lo porque não é a regra na escrita camoniana, em que são escassos os referentes a pessoas concretas e abundantes (e complexas) as construções assentes em lugares-comuns, tendo isso recebido mais do que necessária atenção da crítica de fontes. 22 Isso está previsto como possibilidade de representação, sem que necessariamente reflita senão um ethos como garantia particular discurso.

Quando confrontamos a obra de Camões à de seus contemporâneos, e mais ainda se recuamos no tempo, fica clara a tendência a uma purgação de marcas de destinatários dos poemas, o que parece indicar um primado da intenção de circulação. 23 São textos que raramente ficcionam uma situação de comunicação privada ou preocupam-se com registros e cronótopos —como acontece ao círculo à volta de Sá de Miranda, ou a exemplo do soneto “Livro, se luz desejas, mal te enganas” de António Ferreira—, mas, antes, adotam estratégias num processo a que Segismundo Spina se referiu por “indeterminação de tempo e de espaço” (109), constitutivo da instituição literária tal como a conhecemos. 24 Um passo curioso a esse respeito será a referência a “Laura” e “Beatriz” como modelos do feminino da “toscana poesia”, êmulos que seriam superados pela beleza da mulher louvada na ode “Pode um desejo imenso”. A estereotipia da representação, isto é, a constituição tópica do objeto da imitação, é ironicamente assinalada nos versos “Aquele não sei quê / que aspira não sei como / que, invisível saindo, a vista o vê / mas pera o compreender não lhe acha tomo”, que remetem o tópico do nescio quid à definição que dá Agnolo Firenzuola em Delle belleze dei donne (1548). 25 Existindo num ambiente em que concorre com outros textos, a matéria do poeta promoveria —esse é o argumento da ode— sua superioridade enquanto poeta, e isso é necessariamente feito pelo recurso a materiais herdados: loci a re, cenários, situações-tipo, e loci a persona, pessoas-tipo.

Seja como for, o argumento da canção “Vinde cá, meu tão certo secretário” pode ter sido entendido como aviso de um letrado sobre a afetação poética a que se entregava a corte, a distância entre aquilo que é cultivado na poesia e o que constituiria a vida. O horizonte do discurso poético “triste”, “grave”, a figuração do poeta como exemplar negativo para o leitor serviria então a algo como um tua res agitur horaciano. Portanto, o dissídio parece ter um duplo aspecto: é tanto um “gancho” para o público e certificação de prestígio do poeta, e também um regulativo numa poética do aviso. Trata-se de uma poesia de correção do desejo, de apuração do afeto em proveito da coletividade. No nível meta-poético, na medida em que o poeta toma do material discursivo herdado, corrente, podemos ver aí também a “desconstrução” de um discurso, por meio de um uso irônico, distanciado, que “avisa”, denuncia a distância entre normatividade implícita das imagens poéticas que circulam e a realidade, corrigindo sua direção. Talvez seja ainda possível ver no ethos do poeta em dissídio uma figura central que diz respeito às práticas imitativas de Camões: a resistência a um certo modo de imitar.

Ethe, personae e investigação tópica

O que é o dissídio, então? Como se configura, a que vem? Enquanto ethos, é um mecanismo ou convenção discursiva que estrutura a produção poética, organizando feixes de matérias e tópicos no interior de um sistema, de uma pragmática da escrita e da leitura de poesia do século XVI. Envolve não só o recurso a determinados lugares-comuns no processo da inventio como também a particulares figuras da elocutio, como a preterição, a antítese (estruturante), a hipérbole e outras estratégias de manutenção da atenção (e a consequente fixação de conteúdos), também envolvendo a dispositio, etc.; percebemo-lo ao insistirmos nos pontos de contato entre textos que pertencem a diferentes gêneros —e portanto representariam temas de modo particular— e que acabam por veicular pensamentos semelhantes. Se a caracterização de um ethos, a construção de uma persona é parte de um argumento, não é difícil entender a regularidade e a variedade que lhe são associadas, ao menos em se tratando de uma função moral da poesia, uma função que é codificada em termos gerais e não se limita a causas específicas em virtude das quais os textos viriam a existir.

Seguindo uma intuição surgida nesses estudos anteriores, seria possível indicar que o ethos do poeta em dissídio reflete, no espaço da unidade da persona da lírica, uma estrutura em antitética frequente na obra de Camões: Leonardo e Veloso na Ilha enamorada (em Os Lusíadas), Filodemo e Duriano (Auto de Filodemo), o Fauno neoplatônico e o Fauno do Amor vingativo (“Égloga dos Faunos”), as posições diversas de personagens de églogas como Almeno e Agrário e Frondoso e Duriano (respectivamente, pelo incipit, “Ao longo do sereno” e “Cantando por um vale docemente”). Noutros poemas camonianos, em que o modelo dialogal não é facultado, o dissídio característico da persona poética se dá entre as faculdades da alma, a razão e o desejo, ou ainda entre desejo e ação moral, e invariavelmente coloca a persona numa situação aporética. Em diferentes conformações, são diversos os sonetos que ecoam a tornada da canção “Vinde cá, meu tão certo secretário”. Num soneto como “Amor, co’a esperança já perdida”, a aporia é ocasião para reafirmar o sofrimento. Em “Com grandes esperanças já cantei”, mesmo a lembrança do contentamento imaginado é recusada, num gesto análogo. “Despois que quis Amor que eu só passasse”, outro de uso proemial para a obra camoniana, tem o mesmo argumento registrado no exórdio da canção, bem como “Posto meu tem fortuna em tal estado”. “Doces lembranças da passada glória”, “Oh! Como se me alonga de ano em ano”, “Oh! Quão caro me custa o entendimento”, “Pede o desejo, Dama, que vos veja” (que não se preocupa em encenar mas tematiza diretamente o dissídio), “Lembranças que lembrais meu bem passado”, “O Céu, à terra, o vento sossegado”, “Onde acharei lugar tão apartado”, “Sempre a Razão vencida foi de amor” —são todos sonetos cuja tópica caracteriza o poeta em dissídio.

Era de se aventar a hipótese de que, no geral, a obra lírica camoniana se deixa entender como uma preceptiva amorosa. Se nalguns poemas, como os que acabamos de referir, a situação ética dissidiosa é um non plus ultra vivencial, noutros ela é tantas vezes construída como aporia a superar no desenvolvimento do argumento, quando a sentença do poema frequentemente consiste na reafirmação da força de Amor no poeta. Cada argumento parece, no fundo, endereçar-se a um problema que pode ser colocado numa chave moral, mais ou menos reportável à problemática do controle dos afetos na sociedade de corte. Não seria difícil estabelecer leituras que confrontassem as representações e soluções de Camões àquelas apresentadas nos diálogos de Castiglione, Il Libro del Cortegiano (1528), traduzido por Boscán (1540), e obviamente Bembo, Gli Asolani (1530). Outros ethe há de mais fácil reconhecimento, como é o do galante enamorado de copiosos poemas, como o da poeta autorizado a ensinar sobre a experiência amorosa a (adolescentes?) “isentos”, a exemplo de sonetos como “Conversação doméstica afeiçoa”, “Vós que, d’olhos suaves e serenos”, e mais claramente na égloga de Almeno e Agrário, ou ainda o ethos do poeta apto ajuizar os feitos pátrios, como exigido pelo gênero épico. 26

A recuperação da metalinguagem e a mudança deliberada de categorias de leitura reposiciona os poemas num campo de práticas discursivas que lhe seria próprio, ao menos aproximativamente. Talvez a mais importante dessas coordenadas diga respeito ao conceito mesmo que se faz de poesia. Pelo prisma da ethopeia, fica patente a naturalidade do fingimento poético da persona e assim entendemos o efeito de real provocado pela inserção de dados biográficos, como garantia do verossímil no espaço de circulação dos poemas. Talvez nem mesmo seja lícito propor que uma experiência individual privilegiada seja anterior, constitutiva da autoridade do poeta orator, como dão a entender os discursos sobre o gênio de Camões pelo menos desde a impressão das Rimas e que chegam à vertigem com Faria e Sousa. Isso por si mesmo é apenas uma dentre diversas estratégias de aquisição de credibilidade; a autoridade é antes efetivada através da própria construção discursiva —seguindo Correia— e, desta feita, entrevê-se na finalidade do discurso. Noutras palavras, mesmo os esboços biográficos camonianos servem ao propósito do discurso conjunto de sua obra, pela mão de seus críticos. Entretanto, que propósito? Como nos lembra Pinho, ensinava D. Jerónimo Osório, contemporâneo de Camões, que o poeta tinha por missão

imitar nos seus versos, com verdade e elegância, como se fosse com algum pincel, os costumes dos homens, os ludíbrios da fortuna e a comum condição desta vida […] tudo quanto se deve procurar e tudo aquilo de que se deve fugir. (Pinho, Humanismo em Portugal: Estudos II 37-38)

Essa “filomusia” seria também subscrita por Aires Barbosa, para quem, segundo o mesmo Pinho, a poesia seria dotada de uma ratio honesti vivendi, superior àquela conseguida junto às outras formas discursivas ( Humanismo em Portugal: Estudos II 132).

Não faremos lição diferente do diálogo das Tablas poéticas (1617) de Cascales, de poucas décadas depois:

De manera que el poema no basta ser agradable, sino provechoso y moral, como quien es imitación de la vida, espejo de las costumbres, imagen de la verdad. ¿Quién duda, sino que leyendo los hombres las obras de poesía, o hallándose en las representaciones tan allegadas a la verdad, se acostumbran a tener misericordia y miedo? De aquí procede que si les viene algún desastre humano, son ya menores el dolor y espanto. Que es cosa llana y cierta que quien nunca a passado calamidad, si le sobreviene sin pensar y de improviso, no tiene paciencia para sufrirla. Y también ay muchos que sin razón se afligen y temen. Oyendo, pues, en los teatros y leyendo en los poemas cosas digníssimas de conmiseración, y que aun el muy sabio conviene que las tema, aprenden quál es de lo que nos emos de doler y emos de temer. Y finalmente, se sigue grande utilidad destas lecciones y recitaciones poéticas, en que siendo la fortuna de los hombres común en esto que ninguno dexa de estar sugeto a las miserias humanas, las llevan con más facilidad los que las tienen, y se consuelan grandemente, acordándose que otros an passado por aquello mismo. (18)

O que é, portanto, um poema na pena do poeta? O que é poesia? Um processo de mise-en-scène de uma situação-tipo, vivida por uma persona, por sua vez configurada segundo certas conveniências, adequadas aos propósitos de laus ou vituperio daquilo que é ilustrado, orientando o auditório para um juízo moral, que deve ser interiorizado.

Isso coloca em primeiro plano a constituição tópica dos poemas como argumentos. Lembrando a caracterização supracitada da persona via Isidoro, “idade, ocupação, fortuna, felicidade, gênero, luto, coragem” (74), devemos observar que o ethos é um mecanismo, sua constituição textual toma por base tópicos, topoi ou loci, como engrenagens da máquina de representação partilhada. Veja-se como Cascales expõe a construção de loci a re . a persona, inspirado em Aristóteles e Minturno. “Costumbre” é como ele traduz ethos, a segunda “[d]e las quatro partes esenciales de la poesía” (53); costumes seriam:

Según las edades: del niño, del moço, del varón y del viejo. Según la fortuna: del noble, del rico, del poderoso, del fortunado. Según la naturaleza, según el arte, según el parentesco y amistad, según la familia del padre, de la madre, del hijo, del marido, del amante, del amigo, de la hermana, del hermano. Acerca de los affectos: del amor, del odio, de la ira, del miedo, de la confiança, del desdén, de la imbidia, de los celos, de la emulación, de la desvergüença. Considéranse también las costumbres y passiones, teniendo respeto y ojo a las circunstancias del tiempo, del lugar, del estado, de la edad, del sexo, de la patria, de la ocasión. (65)

São também tópicos as situações-tipo e as sentenças e muitos dos pensamentos comunicados nos poemas, como vemos no já mencionado Lugares comunes de Aranda (1595). Nesse sentido, ao lado da tópica enquanto instrumental analítico-representacional, como aí vemos em Cascales, a abordagem de um poema precisa levar em consideração o conhecido fenômeno histórico da intertextualidade que se desenvolve pela iteração desses lugares, coletados em coletâneas como a de Aranda e diretamente dos autores. Mapear ethe da obra camoniana e de seus contemporâneos permite delinear melhor um conjunto argumentativo que com frequência é dissolvido pela legibilidade pós-romântica da produção letrada da sociedade de corte.

Conclusão: estranhar

Normalmente assumimos que o relativo vazio preceptivo sobre o gênero lírico escrito em vulgar é compensado pelas práticas imitativas, já que o recurso a modelos satisfaria regras implícitas e asseguraria a correlação de certos gêneros a certos temas. No entanto, essa explicação tende a priorizar os textos como produtos em detrimento dos processos culturais —institucionais, econômicos, etc.— que efetivamente condicionam a produção textual. O trabalho histórico posto nesses termos acaba limitado a uma hermenêutica textual que tem dificuldades para esclarecer como um gênero se configura, como se escolhem os elementos a reiterar, como é que um gênero absorve um dado conteúdo que, por seu turno, se torna próprio ao gênero. Em lugar disso, erigem-se os “ismos” históricos que reduzem, mais por força da repetição do que no esforço de os conceber, os textos a reflexos da realidade e colocam o poeta na posição de simples adepto de uma corrente discursiva. A compreensão dos mecanismos internos e das condições de produção discursiva no contexto da poesia de Quinhentos, no entanto, consiste em sério impedimento à narrativa global, sintetizante e substancialista da periodologia etapista e teleológica e, nessa medida, desbloqueia possibilidades de leitura que permitem repensar os usos da cultura de então e de hoje. 27 O que se ganha com isso é uma compreensão mais acurada de como a imitação do estilo e o reuso tópico modificam a semântica do código, alterando os valores das convenções de representação em sentidos particulares. Assim, pensar a persona e o horizonte moral da poesia parece mais produtivo do que recorrer a construtos como época “maneirista” ou poética “petrarquista” para pensar as práticas de escrita quinhentistas, e a forma de investigá-lo é observar acuradamente os materiais de valor doutrinário que circulam, em especialmente o circuito das letras humanistas, procurando sistematizar algumas coordenadas básicas. Esses dois fatores —abundância de modelos para imitação e escassez de preceptivas— cobram o estudo da relação de Camões aos modelos junto com esforço por rever as práticas letradas da sociedade de corte.

Passando ao largo da ethopeia e do modelo comunicacional, a princípio por sua autoevidência, a crítica precisou apoiar textos em “mundividências” e isolar os autores uns dos outros, conferindo-lhes uma relativamente exacerbada autonomia perante sua produção. Em troca das soluções adotadas, a investigação tópica permite a renovação dos estudos camonianos e do século XVI e resgata sem a mediação de construtos teleológicos a conexão entre os estudos de literatura e a cultura. Em vez de empregá-las nesse caso, ou, num sentido mais geral, de tratar as categorias periodológicas como se elas enfeixassem traços culturais enquanto reflexos de condições históricas, de um modo substancialista, e não raro com laivos teleológicos, é possível mapear configurações discursivas reiteradas que cumprem propósitos específicos no interior de uma racionalidade que, só então, dialoga com as condições históricas e eventos sem que necessariamente haja aí uma relação causal. Assume aqui capital importância o antigo estudo das fontes, mas já não à maneira positivista com que era travado. Ele carece da correção teórica, combinado a modelos de historiografia mais aptos à reconstrução do universo discursivo de outras épocas, a exemplo dos trabalhos inspirados na Escola dos Annales e na História dos conceitos (Begriffsgeschichte). Também o estudo da tópica (Topos ou Topikforschung) coopera junto à reelaboração da perspectiva histórica. 28 O argumento por leitura tópica não deriva de morte teórica do autor, que tende ao fechamento hermenêutico do texto, fazendo da história um auxiliar no processo de interpretação. Reflete antes a necessidade de restituição de materiais históricos, que permitiriam um olhar diferente. Na medida em que a recuperação das preceptivas retóricas oferece condições para a compreensão de operadores culturais, abordar a tópica permite-nos vislumbrar o quid das transações textuais concretas, pois dá a ver a diversidade de usos da prática imitativa sem necessariamente reduzi-la à problema da “mera imitação”, por oposição à “originalidade”. O que faz Camões ao incrustar em Os Lusíadas versos de Petrarca —cometendo, aliás, a heresia contra a pureza linguística, segundo a preceptiva da época—? Por que repisar textos de ampla circulação, ou fazer reusos marcantes —ao menos para o leitor da época— de versos da vizinha Castela?

Uma das categorias que medeia esse processo é a de ethos, como aqui argumentamos. Através dela, podemos entender o feixe de caracterizações tópicas de que o poeta lança mão, bem como das inflexões que exerce sobre os materiais. Assim, com o processo miramos também o efeito de sentido ou efeito pretendido junto ao público. Elemento de uma máquina complexa, observar a caracterização etológica como parte do pacto comunicacional dá a ver um programa discursivo historicamente concreto, não apenas inferível por via da comparação de textos ao quadro teórico de uma mega história da arte. É uma das lições do estudo da recepção: há que dilatar a distância semântica dos conceitos, dos operadores históricos da cultura, se quisermos apreender aquilo que não se reduz imediatamente às preconcepções que definem contemporâneos horizontes de recepção. É preciso estranhar o passado, afastá-lo lentes do programa cultural da burguesia do século XIX, que engendrou o conceito e os métodos para a compreensão do literário —é preciso que surja como o outro da história literária como a legamos do programa romântico-positivista. No caso de textos do século XVI ibérico, eles exprimem dissabores ou desejos com a prerrogativa da subjetividade poética tanto quanto, fazendo uso da força morigerante da poesia, confrontam seu público com a questão moral mais fundamental de saber viver. No espaço ético-retórico da sociedade de corte, poesia opera um horizonte para a adequação das paixões à moral.

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O levantamento de todos os tratados seria improfícuo, dada sua multiplicidade e a já visível lacuna da preceptiva lírica vernacular, fora o circuito muito complexo de que ela partilhava. Encontrar uma obra cuja complexidade reflita esse esquema pode ajudar a parametrizar as condições da comunicação, ficando o levantamento para propósitos cognitivos mais específicos do que aqueles que definem o atual campo de interesses da pesquisa.
Todas as traduções do artigo são nossas.
Para um estudo aprofundado, veja-se The Liberal Arts and the Jesuit Scholar System (1986) de Aldo Scaglione. Quanto à relevância dos estudos de retórica, recorde-se a frequência com que a eloquência é apresentada como porta de entrada para as demais disciplinas nas orações de sapiência (Pinho, Orações ).
Sugerimos a tradução bilíngue das cartas de Pico, Ermolao e Bembo constantes do apêndice ao Elementa Rhetorices / Grundbegriffe der Rhetorik de Philip Melanchton (Melanchthon e Wels). Pico contra Bembo sustenta que ele precisa descobrir sua própria natureza, quod te ipsum et ad tuas animi dotes facilius pervenias.
Um trabalho completo sobre os cinco livros compararia a obra com outras, de Ramus e Lipsius, mas também suas fontes, ou Vives, ou ainda Robortello, Scalígero. Os resultados não diriam, ao menos para nosso propósito, mais do que da adoção de posições comuns ao tempo por parte de Correia. Fato é que carecemos de estudos do circuito entre a retórica neolatina e a produção em vulgar, de modo que as histórias literárias lusófonas sofrem não apenas de obsolescência teórica, mas, nesse capítulo, limitação de recursos que lhe dariam caraterísticas locais, ou seja, pertinência. É de se notar, no entanto, que estudos desse tipo —cruzando o circuito neolatino e o vernacular— estão em marcha. Um exemplo importante é a investigação de Pereira, aqui especialmente o artigo “A Actio” no De Eloquentia de Tomé Correia (1591).
Lembremos que, conforme o Livro IX das Confissões de S. Agostinho, a conversão envolvia a reconciliação das faculdades do homem com a cooperação divina. Isso também se deixa tematizar em poesia, com “La conversión de Boscán” sendo um exemplo de interesse, por sua influência sobre as redondilhas “Sôbolos rios que vão”, de Camões. Outro exemplo da “popularidade” de Agostinho em matéria soteriológica está no auto da Conuersão de Santo Agustinho, de Francisco da Costa (1533-1595).
Para uma ideia: o livro da invenção de Correia e o da elocução têm quase a mesma extensão, quando é frequente a hipertrofia da elocução, onde normalmente surgem exemplares poéticos. Mesmo no manual do jesuíta Cipriano Soares, adotado nos colégios da Companhia, a seção da elocução por si só equivale à soma das demais.
Salutati, De laboribus Herculis, I, 12 (1406): “Est igitur poeta vir optimus laudandi vituperandique peritus, metrico figurativoque sermone sub alicuius narrationis misterio vera recondens. […] Ex quibus certissime constat poetam virum optimum esse debere et longe magis ad hanc excellentiam quam oratores ad viri boni statum et formulam accessisse. Cuius officium est figurato metricoque sermone composita laus et vituperatio, movens et excitans specialiter fantasiam”. [Assim, é o poeta um homem ótimo, perito em louvar e vituperar, guardando a verdade sob o mistério de uma narração, por meio de um discurso métrico e figurado. [...] Do que consta que o poeta deve ser um homem ótimo, e ter chegado a essa excelência muito mais do que os oradores ao estado e forma do homem bom. Cujo ofício é louvor e vitupério, compostos num discurso métrico e figurado, mobilizando e excitando a fantasia de modo especial]. Ora, a constituição de um “homem ótimo” como precondição discursiva na verdade deixa evidente o caráter ideal (de tipo-ideal) do poeta, ou seja, antes do mais uma mascarada, uma persona conforme o étimo (Vasconcellos). Já D. Jerónimo Osório e Aires Barbosa tinham em mais estima os poetas que os oradores relativamente a esse desiderato moral, provavelmente devido à mudança de coordenadas efetivada pela transição para uma cultura fundamentalmente letrada (Pinho “Poética”; Humanismo em Portugal: Estudos II 39, 133, 139 e seguintes).
Rodrigo Pinto mostra como o conceito retórico de ethos, vertido em oratio morata —a impressão do caráter da persona no texto—, sofre um colapso com a ideia de verdade (2015 61-67, 197 e seguintes). Estaria aí um dos condicionantes do verismo camoniano? Observamo-lo também em contemporâneos, como D. Jerónimo Osório, para quem a poesia é dotada de uma verdade tropológica, isto é, moral, e por isso deve efetivar-se como psicagogia (Pinho, Humanismo em Portugal: Estudos I 37-38). Oratio morata também se associa à ideia de estilo “moderado”, nem humilde nem elevado, e portanto apto ao gênero elocutório “médio”, correspondente ao lírico.
As ideias aqui apresentadas seguem uma leitura complementar e algo contrapontual ao conhecido ensaio “As canções da melancolia: Aspectos do Maneirismo de Camões” de Aguiar e Silva (209-229). Traçando um paralelo psicanalítico, o ensaio do camonista pretende fazer ver o elemento saturnino transversal à poética camoniana, seguindo sua tese sobre o maneirismo. Não ignoramos a realidade interna do texto, assim renegociada numa fusão de horizontes largamente teórica, mas optamos por permanecer em seu exterior. Com efeito, é a ponte entre o interior do texto e o suposto exterior que, na cena hermenêutica, permite o tipo de categoria periodológica adotada por Aguiar e Silva. Nossa atitude se entende mais claramente quando, perante a lírica camoniana, recusamos a narrativização, como se faz ao propor que a canção “Vinde cá” apresenta elementos de continuidade com aquilo que é tematizado nas redondilhas “Sôbolos rios que vão”.
É preciso colocar uma ressalva ao termo. A ideia de “petrarquismo” muitas vezes transpõe para o âmbito literário o “ciceronianismo” da imitação, isto é, a opção por Cícero como modelo único (porque ótimo) de latinidade. O absurdo se deixa ver quando se vai à procura de qualquer indicação de imitação exclusiva de Petrarca na poesia em vulgar, inexistente. Com efeito, é uma expressão bem geral para um novelo cultural que encontra seu modelo favorito —não único— em Petrarca, mas sua múltipla gênese se pode pôr a perder na forma de um argumento post hoc ergo propter hoc às vezes mal administrado.
Sobre a fórmula dantesca, veja-se Auerbach.
No Dictionarivm Lvsitanicolatinvm (1611) de Agostinho Barbosa, “auisar” é sinônimo de “a[d]moestar”, e “auisada cousa” é “discreta” (col. 137). Também se vê a mesma ideia expressa no conhecido texto de Guevara, Aviso de privados y doctrina de cortesanos (1539).
Veja-se nosso artigo “Camões antiliteratura?”.
Dante: “Entre todas estas formas métricas a mais excelente é, a nosso entender, a da canção; […] a canção por excelência, ou seja precisamente a que buscamos, é o encadeamento em estilo trágico de stanze iguais, sem retomada, inspiradas por um único pensamento, como demonstrado ao cantarmos Donne ch’avete intelletto d’amore. Encadeamento obrigatoriamente em estilo trágico, pois caso este encadeamento se dê em estilo cômico, a composição é descrita pelo diminutivo de ‘canzonetta’” (Alighieri 29, 39). Nas Tablas poéticas de Cascales, a canção é descrita como “Una composición magnífica y espléndida, dividida en partes a solo un pensamiento endereçadas. Por lo dicho, os consta que la composición lýrica es florida y amena, y que los conceptos en el lýrico son como la fábula en los otros poetas, la qual es una, entera y de justa grandeza. Assí, pues, también la canción no a de abraçar más que un pensamiento, y ésse le a de vestir gallardamente el lýrico” (207). Veja-se nosso artigo “As tornadas”.
Uma continuidade da posição adotada por Dante encontramo-la em preceitos de Aires Barbosa, aluno de Poliziano e colega do gramático Nebrija em Salamanca. Em tratando do ritmo, por exemplo, associa a celeridade à leveza e a lentidão à gravidade, prescreve a ectlipse (desnasalização), a anadiplose e a anáfora, a acumulação binomial de substantivos ou formas verbais ou sintagmas nome-verbo, o epíteto metafórico expressivo, o jogo de oposições, a prosopopeia e a comparação, e o enjambement característico do dístico elegíaco; condena o pleonasmo, a cacofonia anafórica, a tapinose (extenuação visando o ridículo) e a anfibologia (Pinho, Humanismo em Portugal: Estudos II 146-147).
A forma-cancioneiro não teria sido levada a cabo devido ao caráter póstumo da edição de sua lírica. Quando a comparamos, porém, à forma como os textos de Petrarca são recebidos, notamos logo que na obra camoniana há um afrouxamento de pontos fulcrais, como a representação da amada. Ela é topicalizada como a Dinamene morta, mas nos textos há sobretudo uma variedade de figurações do feminino, não compatível com a unidade do Canzonière petrarquiano. Não há, tampouco, uma atitude geral intimista, voltada à autoanálise, que é apenas um expediente entre os demais.
Vejam-se os estudos de Aguiar e Silva em Labirintos e Fascínios (Aguiar e Silva 163-228). Talvez valha lembrar também o poema neolatino de Lopo Serrão sobre a velhice (Pinho, Humanismo em Portugal: Estudos II 307 e seguintes).
Incorpora-se a um discurso global da decadência, cujas raízes estão no cristianismo e em especial na doutrina augustiniana das idades do mundo. Se quiséssemos pensar o dissídio em suas matrizes culturais, poderíamos tratar, além da valorização da “melancolia” como fonte do engenho em Quinhentos, o senequismo das ordens eclesiásticas da Península (Pinho, Humanismo em Portugal: Estudos I 30-31). Veja-se também A Literatura Doutrinária na Corte de Avis (Mongelli). A título de curiosidade, naquele mesmo Aranda, em “Vida”, temos: “La vida humana es una perpetua enfermedad. […] Toda esta vida es un sueño, cuyo despertador, es la muerte. […] La vida presente, es una morte prolixa” (Aranda 87v, 88r).
É frequente nos autorretratos do século XVI: guerras intestinas da Europa, a ameaça dos mouros na Turquia, as discussões teológicas e políticas em curso, e.g., Erasmo, Maquiavel; já em Portugal, escassez de recursos materiais e humanos para manutenção dos negócios reinóis e ameaça de incorporação a Castela, por conta da crise de sucessão (Oliveira Marques). Isso está amplamente registrado nos textos da época.
Na “Jornada Segunda”, e.g., o diálogo se estrutura como troça à volta do soneto “Com alta voz yo cantaré llorando”, atribuído à persona do próprio Milán. Aí misturam-se piadas e ditos agudos à discussão sobre a função do poema e da poesia em geral. Se entendermos a tristeza como elemento de uma dinâmica de distinção social que tem continuidade (não se pode dizer “transplantada”) na poesia, apenas infletida pelas regras retóricas e coordenadas poetológicas atinentes aos gêneros textuais convenientes, a sua representação é antes de uma encenação de nobilidade, superioridade espiritual a que se conformaria a superioridade do estamento. Mas isso não era inquestionável, e na troça desse hábito outro aspecto se dá a ver: zombar da tristeza como reafirmação de prestígio na situação convivial, o que só poderia ser feito (a crítica da tristeza) partindo-se de uma sensação de autoevidência do próprio estado.
P. ex., a tentativa de determinar destinatários reais, com que se entreteve. Veja-se o ensaio de Aguiar e Silva, “Um Camões bem diferente” em Camões.
A outra hipótese é do Camões como poeta outsider que não tomava parte nas trocas daqueles sob o chamado “magistério mirandino”. Não deixa de haver sentido nisso.
A abstração de certas características permitiria sua concretização por um circuito cada vez mais amplo de leitores. Sobre a noção de literatura, veja-se Gumbrecht, “A Mídia Literatura” e Corpo.
Escreve Firenzuola em 1541: “siam forzati a credere che questo splendore nasca da una occulta proporzione, e da una misura che non . ne’nostri libri, la quale noi non conosciamo, anzi non pure immaginiamo, ed ., come si dice delle cose che non sappiamo esprimere, un ‘non so che.” [somos forçados a crer que tal esplendor nasça de uma oculta proporção e de uma medida que não está em nossos livros, a qual nem conhecemos nem tampouco imaginamos, e é, como se diz das coisas que não sabemos exprimir, um “não sei quê”] (s. p.).
Veja-se o artigo de Pécora, “As Artes”; também sobre isso discutimos no nosso artigo “A política”. A leitura de um texto como o das Anedotas de Lund (1980) põe muito disso às claras, lá constando, de modo bastante tipificado, o fidalgo “parvo”, o galante, o “namorado desenganado”, o frade hipócrita, o noivo forçado, a autoridade senil, o valente, o português e o castelhano, a dama resistente, a moça brigosa, o pajem de pouca serventia, em suma, muitas das representações que encontramos na poesia da época, e já no Cancioneiro de Resende, também personagens do teatro de Gil Vicente e do próprio Camões, e as situações das sátiras que ficaram muito comuns no século XVII, etc. Aliás, convém frisar que a estereotipia satírica (Hansen) é observável na lírica, na medida em que participa de um mesmo regime discursivo e se sujeita a similares condições de circulação.
Exploramos a questão em “A Teoria”. Aqui, apenas acresceríamos que a semântica do lexema “literatura” possui hoje duas camadas não presentes, e mesmo obsidiantes relativamente ao fenômeno que circunscrevemos à luz do ethos. À legibilidade didática e concepção técnica do fazer poético, sobrepuseram-se uma ideia afetivo-referencial (nacionalista e burguesa) e então linguístico-semiótica (contemporânea). Essa reconfiguração de legibilidade é desiderato hermenêutico que se associa ao presenteísmo das instituições educacionais burguesas do século XIX, que hoje estrutura a escola liberal-democrática. Não há prejuízo em apreender assim obras que não caem sob o contemporâneo conceito de literatura, a salvo quando se tem o propósito cognitivo de reconstruir as coordenadas de uma de modo a liberar um campo potencial de usos e sentidos, o que é de especial importância para uma compreensão mais ampla da história das mentalidades. Seja como for, não só é difícil entender o Quinhentos português através de construtos como “maneirismo”, “Renascimento” e “petrarquismo”, como, ainda que nos afastemos do “inferencialismo” hermenêutico, também os textos preceptivos italianos talvez não bastassem para a tarefa.
Um exemplo de trabalho levado a cabo com autor canônico é Topoi trobadorici nei ‘Rerum vulgarium fragmenta’ (Ravera), tese doutoral defendida na Universidade de Milão. A pesquisadora é bem sucedida em mostrar exaustivamente como se constrói o texto de Petrarca a partir de lugares-comuns, situações previstas nas canções trovadorescas. Recordemos, aliás, o significado desse bojo poético para Dante (Alighieri).

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de Brito, M. (2023). O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento. Literatura: teoría, historia, crítica, 25(1). https://doi.org/10.15446/lthc.v25n1.105122

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de Brito, M. 2023. O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento. Literatura: teoría, historia, crítica. 25, 1 (ene. 2023). DOI:https://doi.org/10.15446/lthc.v25n1.105122.

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(1)
de Brito, M. O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento. Lit. Teor. Hist. Crít. 2023, 25.

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DE BRITO, M. O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento. Literatura: teoría, historia, crítica, [S. l.], v. 25, n. 1, 2023. DOI: 10.15446/lthc.v25n1.105122. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/105122. Acesso em: 29 ene. 2025.

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de Brito, Matheus. 2023. «O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento». Literatura: Teoría, Historia, crítica 25 (1). https://doi.org/10.15446/lthc.v25n1.105122.

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de Brito, Matheus. «O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento». Literatura: teoría, historia, crítica 25, no. 1 (enero 1, 2023). Accedido enero 29, 2025. https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/105122.

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de Brito M. O ethos do dissídio na obra de Camões, o poema como argumento. Lit. Teor. Hist. Crít. [Internet]. 1 de enero de 2023 [citado 29 de enero de 2025];25(1). Disponible en: https://revistas.unal.edu.co/index.php/lthc/article/view/105122

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