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- 2022-09-20 (2)
- 2021-07-01 (1)
Narrativas híbridas da literatura infantojuvenil: aproximações com o romance histórico contemporâneo de mediação
Hybrid narratives of infant-juvenile literature: approximations to the mediation contemporary historical novel
Narrativas híbridas de la literatura infantil y juvenil: aproximaciones con la novela de mediación histórica contemporánea
DOI:
https://doi.org/10.15446/lthc.v23n2.94887Palabras clave:
Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, Degredado em Santa Cruz, literatura comparada, literatura infantojuvenil, romance histórico contemporâneo de mediação (pt)Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, Degredado em Santa Cruz, literatura comparada, literatura infantil y juvenil, novela histórica contemporánea de mediación (es)
Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, Degredado em Santa Cruz, Comparative literature, infant-juvenile literature, Contemporary historical mediation novel (en)
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Nas narrativas híbridas amalgamam-se tanto o discurso histórico quanto o ficcional, muitas vezes buscando uma reelaboração de registros anteriores, a partir de releituras críticas de um passado escrito pelo colonizador europeu. Neste artigo, apresentamos a análise de duas obras da literatura infantojuvenil que entrecruzam ficção e história por meio dessa releitura crítica, com o objetivo de aproximá-las à modalidade proposta por Fleck: o romance histórico contemporâneo de mediação. Para tanto, a base teórica está nos pressupostos de Cadermatori, Coelho, Santiago, Fleck, entre outros. Por meio da análise realizada, evidenciam-se aspectos formais das obras Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, de Viviana S. Torres, e Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant’Anna. A abordagem proposta é possível e pertinente para as obras apresentadas com os pressupostos teóricos sobre o romance histórico contemporâneo de mediação.
In hybrid narratives, both historical and fictional discourse are amalgamated, often seeking a rework of previous Records, based on critical reinterpretations of a past written by the European colonizer. In this article we present the analysis of two literary works of infant-juvenile literature that intertwine fiction and history through this critical reinterpretation, with the aim of bringing them closer to the modality proposed by Fleck: the mediation contemporary historical novel. To do so we are theoretically based on the assumptions of Cadermatori, Coelho, Santiago, Fleck, among others. Through the analysis developed, we seek to highlight formal aspects of the works Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de
Oro, by Viviana S. Torres, and Degredado em Santa Cruz, by Sonia Sant’Anna. We found possible and pertinent the proposed approach for the works presented with the theoretical assumptions about the
contemporary historical mediation novel.
En las narrativas híbridas, tanto el discurso histórico como el de ficción se amalgaman, a menudo buscando una reelaboración de registros anteriores, basados en reinterpretaciones críticas de un pasado escrito por el colonizador europeo. En este artículo, presentamos el análisis de dos obras de la literatura infantil y juvenil que entrelazan ficción e historia a través de esta relectura crítica, con el objetivo de acercarlas a la modalidad propuesta por Fleck: la novela histórica contemporánea de mediación. Para eso, nos basamos teóricamente en los supuestos de Cadermatori, Coelho, Santiago, Fleck, entre otros. A través del análisis realizado, buscamos resaltar aspectos formales de las obras Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, de Viviana S. Torres, y Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant’Anna. Nos pareció posible y pertinente la aproximación propuesta para las obras presentadas con los supuestos teóricos sobre la novela histórica contemporánea de mediación.
Recibido: 30 de diciembre de 2021; Aceptado: 16 de marzo de 2021
Resumo
Nas narrativas híbridas amalgamam-se tanto o discurso histórico quanto o ficcional, muitas vezes buscando uma reelaboração de registros anteriores, a partir de releituras críticas de um passado escrito pelo colonizador europeu. Neste artigo, apresentamos a análise de duas obras da literatura infantojuvenil que entrecruzam ficção e história por meio dessa releitura crítica, com o objetivo de aproximá-las à modalidade proposta por Fleck: o romance histórico contemporâneo de mediação. Para tanto, a base teórica está nos pressupostos de Cadermatori, Coelho, Santiago, Fleck, entre outros. Por meio da análise realizada, evidenciam-se aspectos formais das obras Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, de Viviana S. Torres, e Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant'Anna. A abordagem proposta é possível e pertinente para as obras apresentadas com os pressupostos teóricos sobre o romance histórico contemporâneo de mediação.
Palavras-chave:
Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, Degredado em Santa Cruz, literatura comparada, literatura infantojuvenil, romance histórico contemporâneo de mediação.Resumen
En las narrativas híbridas, tanto el discurso histórico como el de ficción se amalgaman, a menudo buscando una reelaboración de registros anteriores, basados en reinterpretaciones críticas de un pasado escrito por el colonizador europeo. En este artículo, presentamos el análisis de dos obras de la literatura infantil y juvenil que entrelazan ficción e historia a través de esta relectura crítica, con el objetivo de acercarlas a la modalidad propuesta por Fleck: la novela histórica contemporánea de mediación. Para eso, nos basamos teóricamente en los supuestos de Cadermatori, Coelho, Santiago, Fleck, entre otros. A través del análisis realizado, buscamos resaltar aspectos formales de las obras Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, de Viviana S. Torres, y Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant'Anna. Nos pareció posible y pertinente la aproximación propuesta para las obras presentadas con los supuestos teóricos sobre la novela histórica contemporánea de mediación.
Palabras clave:
Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, Degredado em Santa Cruz, literatura comparada, literatura infantil y juvenil, novela histórica contemporánea de mediación.Abstract
In hybrid narratives, both historical and fictional discourse are amalgamated, often seeking a rework of previous Records, based on critical reinterpretations of a past written by the European colonizer. In this article we present the analysis of two literary works of infant-juvenile literature that intertwine fiction and history through this critical reinterpretation, with the aim of bringing them closer to the modality proposed by Fleck: the mediation contemporary historical novel. To do so we are theoretically based on the assumptions of Cadermatori, Coelho, Santiago, Fleck, among others. Through the analysis developed, we seek to highlight formal aspects of the works Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, by Viviana S. Torres, and Degredado em Santa Cruz, by Sonia Sant'Anna. We found possible and pertinent the proposed approach for the works presented with the theoretical assumptions about the contemporary historical mediation novel.
Keywords:
Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, Degredado em Santa Cruz, Comparative literature, infant-juvenile literature, Contemporary historical mediation novel.Introdução
As NARRATIVAS NAS QUAIS SE entrecruzam os discursos da arte literária e da historiografia, que são escritas com base em acontecimentos passados ou em personagens registradas pela historiografia, pertencem ao conjunto de narrativas híbridas de história e ficção. Dentre elas, há destaque para o gènero conhecido como romance histórico, cuja trajetória - iniciada em 1814, na produção romanesca de Walter Scott - apresenta diferentes fases e modalidades de escrita. Conforme Fleck, em um romance histórico sobrepõem-se diferentes visões sobre um mesmo acontecimento do passado e isso resulta em um hipertexto, cuja tessitura é composta por uma pluralidade de discursos. Assim,
ao reconfigurar, ficcionalmente, um fato histórico, o romancista, inevitavelmente, trabalha com um passado que já foi reconstruído pelo historiador. Essa leitura primeira chega até nós por meio do discurso assertivo científico da história, a qual é, na ficção, revisitada pelo romancista - cujo discurso é, normalmente, na contemporaneidade, desmistificador das imagens anteriormente fixadas. (Fleck 19)
No período de colonização europeia na América vemos, sem grandes dificuldades, que a historiografia se baseia em documentos escritos por exploradores dos séculos xv e XVI e, assim, sucessivamente. Isso acabou por estabelecer uma perspectiva unilateral, proveniente desse discurso imperativo colonizador, oriundo da corrente da história hegemónica europeia - a qual coube os registros escritos dos períodos do "descobrimento", conquista, colonização e, até boa parte, da independència das colónias americanas - e, também, na corrente tradicional rankeana - de cunho positivista, do princípio da era que marcou a separação entre literatura e história - no início do século XIX. Segundo Fleck,
nesse sentido, a tarefa de "mostrar" a "verdade" do acontecido pela escrita da história é, de qualquer modo, mediada pela construção de um discurso no qual atua um narrador que, subordinado às ações do sujeito que o elabora como ente narrativo, faz recortes e (re)apresenta determinado acontecimento passado - agora, convertido em palavras articuladas em um discurso - a terceiros. Há, portanto, na atuação do historiador, um processo de (re)organização dos acontecimentos e uma configuração imaginativa das personagens presentes na narrativa. (Fleck 29)
Embora a historiografia estabeleça uma perspectiva hegemónica sobre o passado da América em seus registros, não se pode, hoje, simplesmente acatar a ideia da existência de um discurso neutro, objetivo e único de parte da história sobre o passado. Isso concede espaço a outras áreas do conhecimento para criar possibilidades de manifestação a diferentes vozes anteriormente ocultadas por esse discurso hegemónico. Segundo defendem Le Goff, Chartier e Revel, o documento não é inocente, não decorre apenas da escolha do historiador, "ele próprio parcialmente influenciado pela época e pelo seu meio; é produzido consciente e inconscientemente pelas sociedades do passado, tanto para impor uma imagem deste passado, como para dizer 'a verdade'" (282).
Esses registros sobre o passado, durante muito tempo monológicos, acabaram por marginalizar sujeitos que participaram ativamente dos feitos narrados na história da expansão marítima europeia e da "descoberta", conquista e colonização das Américas. Era necessário, como propuseram Le Goff, Chartier e Revel, "fazer uma História não automática mas problemática" (261). Uma história nova que considerasse, também, visões antes excluídas dos compêndios avalizados pelo poder. Segundo Burke, "a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente constituída" (11). Nessa corrente contemporânea da historiografia vemos a busca de aproximação da nova história com outras áreas de conhecimento. Tal desejo está expresso nas palavras de Le Goff, Chartier e Revel, ao mencionarem a importância que adquire, hoje, para o historiador, o "olhar lançado sobre o vizinho, na esperança de levar a dialogar os 'irmãos que se ignoram'" (263). Le Goff, Chartier e Revel destacam áreas como a linguística, a psicologia, a literatura, a filosofia, a arte, as ciências, como áreas essenciais nesse "diálogo" que a nova história propõe.
Nas narrativas híbridas que revisitam a historiografia do período de colonização da América, temos um ambiente profícuo no que concerne a desmistificação do discurso hegemónico outrora perpetuado sobre as ações dos exploradores europeus em território americano - em concordância com Aínsa sobre o novo romance histórico latino-americano. Reconhece-se, sobre o novo romance histórico latino-americano, uma das modalidades do romance histórico, que "ao mesmo tempo em que se 'aproxima' do evento real, o novo romance histórico se distancia de forma deliberada e consciente da historiografia 'oficial', cujos mitos fundadores foram degradados" (Aínsa 83).1
Na literatura, vários desses sujeitos invisibilizados pelo discurso hegemónico e tradicional da historiografia, que dominou a escrita da área até, ao menos, a década de 1970, foram representados e ressignificados por meio de narrativas híbridas de ficção e história. Isso tem ocorrido não apenas na literatura destinada a adultos, a partir do gênero do romance histórico e suas diferentes fases e modalidades, mas, também, na literatura infantojuvenil. Tais produções, segundo Luft, podem ser consideradas narrativas juvenis contemporâneas da linha do romance histórico - ou seja, que são elaboradas com base em acontecimentos históricos, a partir de dados registrados nos anais da história.
Segundo Coelho, não existe um ideal absoluto de literatura infantojuvenil, nem de qualquer outra escrita literária, pois será considerado "ideal" aquilo que corresponder à determinada necessidade do tipo de leitor a que ela se destina. A autora classifica as tendências da nossa literatura brasileira infantojuvenil contemporânea em três diferentes linhas de intenções: a realista, a fantástica e a híbrida. A linha realista busca expressar a realidade do cotidiano, acolhida ou conhecida pelo senso comum do leitor. A literatura fantástica, por sua vez, apresenta um mundo maravilhoso, criado pela imaginação, que existe fora dos limites do "real" e do senso comum. Já a literatura híbrida parte do "real" e nele introduz o imaginário ou a fantasia, anulando os limites entre um e outro:
ainda na esfera da "literatura híbrida", destacamos duas correntes que dia a dia vêm crescendo em valor literário e importância histórica. Ambas vêm "escavando" nossas origens de povo: a corrente das narrativas indígenas e das narrativas africanas. De maneira comovente ou divertida ou fantástica, as histórias/estórias recuperadas/reinventadas de um passado remoto vão revelando aos pequenos leitores peculiaridades de dois povos, tão diferentes entre si e que, por artes do destino (ou de Portugal?), acabaram fazendo parte das raízes da nossa brasilidade. (Coelho 291)
Desse modo, o "diálogo" entre os "irmãos que se ignoram", mencionado por Le Goff, Chartier e Revel, tem contribuído para que aspectos relegados ao esquecimento na formação de nossa memória coletiva venham à tona na atualidade por meio das escritas híbridas de história e ficção também direcionadas a leitores bem jovens, ainda em fase de escolarização.
Com relação a esse "diálogo" entre os "irmãos que se ignoram", Fleck aponta diferentes fases na trajetória das relações entre os discursos histórico e ficcional - períodos de união, separação e conciliação, com ressalvas. É no contexto dessas fases distintas que se gera o ambiente no qual nascem as diferentes possibilidades de escrita híbrida de história e ficção. Nossa intenção, por meio deste artigo, é apresentar - no âmbito do atual "diálogo" entre a ficção e a história" - uma análise de duas obras da literatura infantojuvenil que apresentam um caráter desconstrucionista com relação à história do "descobrimento" da América. Nessa abordagem às obras infantojuvenis híbridas de história e ficção buscamos aproximá-las da modalidade do "romance histórico contemporâneo de mediação", cujas premissas foram estabelecidas nos estudos de Fleck.
Ainda que não se considere possível classificar uma obra voltada ao público infantojuvenil da mesma maneira como classificamos obras da literatura adulta, reconhecemos como viáveis e pertinentes as aproximações aqui propostas entre as narrativas híbridas analisadas e essa modalidade mais atual do romance histórico, uma vez que as obras infantojuvenis em questão também se configuram como narrativas que amalgamam aspectos inerentes à história com outros específicos da ficção e apresentam características que as aproximam do romance histórico de mediação, conforme demonstramos ao longo deste texto.
Na definição de Fleck, a modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação pertence à terceira etapa das fases de escrita híbrida de história e ficção, ou seja, ao período em que tais produções se fazem críticas ao discurso hegemónico e tradicional da historiografia. A trajetória do gênero romance histórico, segundo o pesquisador, apresenta três fases: a acrítica, a crítica/desconstrucionista e a crítica/mediadora.
Assim, o romance histórico contemporâneo de mediação estabelece vínculos entre as duas fases precedentes, mas sem a exaltação ao passado, comum na fase acrítica e, da mesma forma, sem contemplar as características predominantes do desconstrucionismo e do experimentalismo linguístico e formal presentes no novo romance histórico latino-americano ou na metaficção historiográfica que constituem as expressões da segunda fase do gènero. A essência do romance histórico contemporâneo de mediação está na ação mediadora entre essas modalidades, sendo, de acordo com Fleck (109-111), suas principais características as seguintes: 1) uma releitura crítica verossímil do passado, que se afasta dos parâmetros tradicionais dos cânones europeus, buscando a construção de um discurso questionador; 2) uma narrativa linear do evento histórico recriado, com poucas prolepses e analepses que não se constituem em anacronias desconstrucionistas; 3) um foco narrativo geralmente centralizado em personagens esquecidas ou silenciadas no discurso oficializado, privilegiando visões marginais, sem se centrar na desconstrução carnavalesca de grandes personagens da história; 4) o emprego de estratégias escriturais bakhtinianas, como a dialogia, a polifonia e a paródia; e 5) a presença esparsa de recursos metanarrativos, sem que estes sejam essenciais à obra.
Para demonstrarmos as possíveis aproximações entre as escritas infanto-juvenis híbridas da atualidade com esses traços singularizadores dos atuais romances históricos contemporâneos de mediação, apresentamos, neste artigo, a análise das obras infantojuvenis Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, de Viviana S. Torres e Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant'Anna, com ênfase nas estratégias escriturais que estabelecem relações delas com os paradigmas da modalidade mais atual do romance histórico contemporâneo de mediação proposto por Fleck.
Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro: ressignificações da conquista da América para jovens leitores
A obra Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, escrita por Viviana S. Torres, em 2020, ficcionaliza a história da autóctone Anacaona, que se tornou cacica de uma tribo taína. Essa foi a etnia nativa com a qual Cristóvão Colombo teve os primeiros contatos quando chegou à América, em 1492. A tribo de Anacaona habitava a ilha de Guanahaní, renomeada "La Española", por Colombo. Essa ilha constitui o atual território do Haiti e da República Dominicana.
De acordo com os registros históricos - como o Diário de bordo e as Cartas, de Cristóvão Colombo, as Cartas de Relación, de Hernán Cortés, e a Historia de la conquista de México, de Francisco López de Gómara - Anacaona e sua tribo foram executados pelos espanhóis, os quais buscavam suprimir as rebeliões indígenas que resistiam diante da colonização. Segundo os relatos de frei Bartolomeu de Las Casas, os colonizadores perpetuaram expedições sangrentas que dizimaram quase a totalidade da população de taínos nativos da época.
Segundo Las Casas, quando Colombo chegou à América, foi em Guanahaní (Isla la Española), território da atual República Dominicana e do Haiti, onde ele teve o primeiro contato com os povos nativos. Nessa ilha havia cinco reinos principais, com cinco chefes aos quais quase todos os outros senhores obedeciam. Um desses reinos chamava-se Xaraguá, localizado no centro da ilha, o qual se sobressaía aos outros reinos pela polidez, formosura e beleza de seu povo, além da presença de senhores e nobres em grande número. Seu rei e senhor se chamava Behechio, cuja irmã se chamava Anacaona. Esses dois irmãos prestaram grandes serviços aos reis de Castela e imensos benefícios aos cristãos, salvando-os de muitos perigos de morte. Depois da morte de Behechio, Anacaona assumiu o comando de seu povo.
Continua Las Casas que, certa vez, quando estabelecidas as colónias espanholas no território da Ilha Española, o governador, Nicolas Ovando, que fora designado pela corte para governar esta região, dizimou a tribo chefiada por Anacaona.
Certa vez, aqui chegou o governador desta ilha, com sessenta a cavalo e mais trezentos peões; apenas aqueles a cavalo bastavam para assolar toda a ilha e a Terra Firme. E chegaram seguros mais de trezentos senhores a seu chamado; dentre eles, por engano, fez entrar os maiores senhores dentro de uma casa de palha muito grande, e ali colocados, mandou atear fogo e os queimaram vivos. A todos os outros alancearam e passaram à espada com infinita gente, e a senhora Anacaona, para honrá-la, enforcaram-na.2 (Las Casas 28)
Em uma visão contrastante à de Las Casas, Pietro Martire DAnghiera, em De Orbo Novo, descreve os primeiros contatos dos europeus com os nativos americanos, a partir de suas cartas e relatos destinados à coroa espanhola, escritos entre 1493 e 1530.
Segundo DAnghiera, quando Bartolomeu Colombo3 se encontrou com Behechio,4 irmão de Anacaona e cacique da tribo de Xaraguá antes dela, demandou tributos que fossem possíveis para aquela tribo oferecer aos espanhóis, como algodão, linho e outros produtos semelhantes, já que naquela região não havia ouro. O cacique concordou em oferecer-lhe o que quisesse, na quantidade que quisesse, com uma expressão de felicidade em seu semblante. Segundo o autor, "o rosto do cacique expressou alegria ao ouvir essas palavras e, com um ar satisfeito, ele concordou em dar o que lhe foi pedido e em qualquer quantidade que desejassem" (DAnghiera 185).5
A mesma noite que Las Casas, descreveu como um massacre da tribo Xaraguá, DAnghiera relata como uma festa triunfal de recepção ao grupo de espanhóis, na qual o povo de Xaraguá recebeu o grupo com dança, música e gritos de alegria.
Ao longo das Cartas de relación escritas por Hernán Cortés (1485-1547), algumas poucas menções são feitas à figura de Anacaona. No seguinte excerto, a autóctone é descrita como a "reina viuda de Haití" (rainha viúva do Haiti):
"Não vim aqui para cultivar a terra como um camponês", respondeu Cortés, "mas para procurar ouro". No entanto, Cortés aceitou do mesmo Ovando, logo depois, uma divisão dos índios em Daiguao, e o escritório da recém--fundada cidade de Azua, tornando-se imediatamente credor de maiores doações por seus serviços na guerra que Diego Velázquez liderava contra Anacaona, rainha viúva do Haiti.6 (Cortés 11)
Assim como Cortés, Cristóvão Colombo faz irrisórias menções à figura de Anacaona em seu Diário e em suas Cartas, o que demonstra como essa personagem histórica foi representada como uma figura subalterna no discurso hegemónico historiográfico sobre o processo de colonização da América.
A partir da análise desses registros, constatamos que Anacaona foi uma figura feminina única, símbolo de resistência da época, que lutou para defender seu povo ao ver sua tribo massacrada pelos colonizadores europeus. Por isso, por eles, aos seus vinte e sete anos, foi enforcada. As referências à autóctone nesses registros oficiais, no entanto, são irrisórias, ainda que sua participação na história da América tenha sido muito significativa ao liderar os primeiros fortes embates dos nativos frente aos colonizadores.
Na literatura, as ficcionalizações de Anacaona criam um espaço de enunciação à voz dessa personagem resiliente da nossa história, antes subjugada ou apagada pelo discurso historiográfico hegemónico. Tal fato aproxima essas narrativas híbridas aos preceitos da modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação propostos por Fleck, uma vez que apresentam uma releitura crítica do passado, buscando a construção da verossimilhança, a partir de um foco centralizado e marginalizado, que privilegia visões periféricas como as da nativa Anacaona frente aos eventos da colonização europeia no Caribe.
Diferentemente dos novos romances históricos latino-americanos e das metaficções historiográficas, os romances históricos crítico/mediadores não objetivam a desconstrução da imagem dos grandes heróis consagrados pelo discurso historiográfico, mas, sim, voltam-se ao propósito de evidenciar perspectivas "vistas de baixo", com base nos pressupostos expostos por Sharpe.
A obra de Torres que recria o passado de Anacaona apresenta linearidade cronológica dos eventos históricos ressignificados na diegese. O relato começa com o nascimento de Anacaona, em Léogâne, uma cidade do Haiti, na ilha de Quisqueya ou Kiskeya, que hoje é um município na República Dominicana. As ações narradas apresentam a sucessão de acontecimentos que levaram Anacaona ao comando de sua tribo, após a morte de seu irmão, seguida da chegada dos espanhóis à América, comandados por Colombo, até a armadilha de Ovando7 para assassinar Anacaona e toda sua tribo.
Os nomes reais utilizados para as localidades e as personagens como Anacaona, Cristóvão Colombo e Nicolás de Ovando são exemplos de algumas das estratégias utilizadas na construção da verossimilhança e na fusão entre história e ficção na obra que, além dos aspectos conhecidos pelas crónicas e registros históricos, evidencia muitos outros aspectos não mencionados nessas escritas oficializadas.
O narrador da obra é extradiegético e a narrativa é linear. Por se tratar de uma obra infantojuvenil, conforme se espera, a linguagem utilizada é simples, fluída e coloquial. Podemos dizer que a ficcionalização do evento histórico recriado na obra apresenta uma releitura crítica verossímil do passado, uma vez que, consoante a Fleck, intenta a construção da verossimilhança a partir de uma perspectiva periférica, ou seja, ancorada em personagens anteriormente subjugados ou ocultados pelo discurso historiográfico. Segundo Fleck, uma das características inerentes aos romances históricos críticos é a de "realizar uma leitura da história a posteriori, guiada por um sentimento revisionista e questionador" (276).
Ao descrever os nomes reais de localidades como Léogâne, no Haiti, com base em dados históricos que embasam os registros existentes sobre a história da personagem, a autora estabelece o tom de verossimilhança, buscando um pacto com o leitor desde o primeiro enunciado, ao sinalizar uma narrativa não apenas ficcional, mas que se hibridiza com a história para constituir sua diegese - com base em Fleck.
A diegese descreve o nascimento de Anacaona apontando um ano exato (1474) e explicando o significado do vocábulo "Anacaona", que significa "Golden Flower ou Flor de Oro" (Flor de ouro) na língua taína. Por meio do seguinte excerto, os nomes de outros personagens históricos taínos são apresentados:
Com o passar dos anos, as três crianças se tornaram adultos. O irmão mais velho se tornou o governante do lado da ilha Quisqueya chamado Jaragua; Anacaona se casou com um homem chamado Caonabo que era cacique, ou chefe, de outra parte da ilha, chamada Manágua.8 (Torres s. p.)
Mais uma vez, podemos verificar, com base nos registros históricos como os de Hernán Cortés, Cristóvão Colombo, Las Casas e D'Anghiera, a representação ficcional de personagens provenientes da historiografia, a partir da escolha de utilizar, em sua obra, os nomes reais de figuras e localidades históricas, caracterizando-a, assim, como uma obra híbrida de história e ficção.
A narrativa continua com a descrição da personagem Anacaona e relata que ela assumiu o poder de Jaragua9 após a morte de seu irmão (o qual não é nomeado). A chegada de Cristóvão Colombo à ilha é integrada aos fatos históricos arrolados na diegese. O narrador revela que, apesar das tentativas de Anacaona em estabelecer relações pacíficas com os espanhóis, o novo comandante hispânico da ilha, Nicolás de Ovando, não confiava nos nativos.
Desse modo, a representação das personagens e acontecimentos históricos registrados nos escritos oficiais caracterizam as intertextualidades presentes na obra de Torres, como é o caso da personagem Nicolás de Ovando, nomeado nos registros históricos e presente no relato de Torres, onde também é mencionado como comandante do massacre da tribo de Anacaona.
O discurso ficcional enuncia que o chefe espanhol convidou os nativos para assistirem uma parada militar, ocasião na qual os prendeu em uma casa de madeira e os queimou vivos. Muitos nativos foram sacrificados nesse dia, conforme podemos ler no relato.
O novo comandante espanhol da ilha, Nicolás de Ovando, não confiava nos índios e tramou um plano contra eles. Convidou Anacaona e algumas pessoas de sua tribo para assistir a um desfile militar pacífico. Quando Anacaona e os outros chegaram, Ovando os levou para dentro de uma casa de madeira. Ele então colocou fogo na casa com eles lá dentro! Aqueles que conseguiram escapar foram violentamente atacados. Muitos nativos foram mortos naquele dia.10 (Torres s. p.)
Com relação à cacica Anacaona, o narrador menciona:
Anacaona sobreviveu ao incêndio, mas foi feita prisioneira. Os espanhóis ofereceram a ela a opção de servir como concubina de um de seus comandantes em troca de sua vida, mas ela recusou. Ela era uma cacica! Por sua recusa, ela foi condenada à morte e enforcada.11 (Torres s. p.)
Como podemos notar, esta obra híbrida infantojuvenil reelabora e ressignifica o discurso histórico ao apresentar a figura de Anacaona, a qual, apesar de ter sido visivelmente menosprezada pelo discurso historiográfico hegemónico europeu, representa uma das figuras femininas mais importantes como símbolo de resistência feminina nativa perante a colonização europeia na América para os latino-americanos.
Nas palavras da autora, sua principal intenção ao escrever essa obra foi fazer com que os leitores, em especial as meninas mais jovens, encontrem sua voz e sejam valentes como foi a cacica Anacaona. Torres também explica que escreveu seu livro tanto em inglês quanto em espanhol para enfatizar a importância de que as crianças valorizem a cultura hispano-latina ("13 Feria del Libro").
A autora emprega uma linguagem simples, de uso cotidiano, o que se espera de uma obra voltada ao público mais jovem.
Podemos visualizar o estilo de linguagem utilizado pela voz enunciadora do discurso romanesco no trecho a seguir, que dispõe, ainda, de recursos metanarrativos, nos quais o narrador se dirige, diretamente, ao narratário, com a intenção de conscientizá-lo de que essa escrita, o romance em mãos, trata-se de uma construção discursiva. Esse é outro recurso que aproxima a obra às características do romance histórico de mediação, previamente apresentadas. Vejamos, pois, o fragmento destacado: "Sua história fala por todos, principalmente pelas mulheres, para que não deixem ninguém ter o controle de você. Para ser fiel a quem você é. Devemos sempre nos lembrar de Anacaona, a Rainha Flor de Ouro" (Torres s. p.). 12
A criticidade da voz enunciadora do relato conclama à conscientização sobre o valor de cada ser humano, ao princípio de igualdade, à resistência frente à dominação e ao valor que devemos dar a nós mesmo como sujeitos de nossa história, particular e coletiva. Para isso, a autora vale-se do passado vivenciado pela personagem Anacaona, trazida à atualidade como exemplo de resistência, de bravura e coragem, de posicionamento crítico para todos, contudo, em especial, para as mulheres.
Há, ainda, na obra de Torres o emprego de algumas estratégias bakhtinianas de escrita - ao nível, claro, do público alvo e da concepção de mundo e de linguagem de uma autora infantojuvenil -, como paródias, que reconstroem personagens, cenários e acontecimentos registrados nos documentos oiciais sobre a colonização da América, e a polifonia, apresentando, entre outras, uma voz enunciadora autóctone ocultada pelos registros da historiograia com a qual passa a dividir o espaço de enunciação.
Essa voz, em oposição à exaltação dos conquistadores europeus perpetrada na escrita historiográica, enaltece, por sua vez, a igura de Anacaona, ao representá-la como uma líder resiliente que enfrentou os colonizadores até o momento de sua morte. Tal posicionamento discursivo romanesco crítico e ideológico se configura como uma voz de embate com relação ao discurso majoritário da historiografia eurocentrista. Tal teor critico e ideológico fica expresso quando a voz enunciadora do discurso romanesco declara: "Hoje, Anacaona é lembrada como uma líder corajosa e inteligente que manteve a paz e a prosperidade de seu povo, que morreu com honra por se recusar a ser algo menos do que ela era" (Torres s. p.).13
Por meio da análise de Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, verificamos ser possível e pertinente uma aproximação dessa narrativa da literatura infantojuvenil com os preceitos do romance histórico contemporâneo de mediação, pois a obra apresenta todas as características que demarcam essa modalidade de narrativa híbrida de ficção e história definida por Fleck em seus estudos sobre a trajetória do gènero romance histórico.
Degredado em Santa Cruz: embarque você também nesta caravela
O romance infantojuvenil brasileiro Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant'Anna, publicado em 2009, aborda a temática do "descobrimento" e da colonização do Brasil. A autora se vale da relação entre literatura e história para a tessitura de sua obra, amalgamando nela fatos reais e fictícios por meio da voz de sua principal personagem, que realmente existiu e é mencionada na Carta de Achamento (1500), de Pèro Vaz de Caminha.
O discurso editorial, posto após o término da diegese, aponta que, por falta de mais registros, muitas das ações relatadas são frutos da criação e imaginação da autora, pois
embora tomando por base fatos e personagens reais, este é um livro de ficção, já que poucos são os relatos existentes sobre a viagem que resultou no descobrimento do Brasil e a posterior expedição exploratória de Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio. (Sant'Anna 105)
A diegese é exposta por um narrador autodiegético: Afonso Ribeiro, um português que, após ser injustamente acusado de assassinar um homem, tem sua pena de morte comutada para degredo na África ou na Índia e acaba sendo deixado no Brasil pela frota de Pedro Álvares Cabral. É por meio da perspectiva dessa personagem de extração histórica que temos, então, o relato de sua viagem junto à tripulação da Esquadra de Pedro Álvares Cabral, da chegada às terras mais tarde chamadas de Brasil, em 21 de abril de 1500, de seus primeiros contatos com os autóctones nesse local, do tempo em que aqui viveu como degredado e, por fim, seu retorno para Portugal.
Dos eventos acima mencionados, inseridos na tessitura da diegese, dois aspectos podem ser ressaltados: primeiro, de que se trata de uma proposta de ressignificação histórica (com personagens de extração histórica) pelas vias da ficção, por meio de um relato de viagem que, inevitavelmente, confronta-se com o discurso oficial sobre o "descobrimento" das terras além do Atlântico, anexadas à coroa portuguesa; segundo, a presença de uma perspectiva que evidencia a "história vista de baixo" (Sharpe 46), problematizada pela apresentação de uma personagem marginalizada, excêntrica: um degredado português.
Já nas primeiras linhas do romance, deparamo-nos com algumas das características que aproximam essa obra à modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação e, entre elas, destacamos a possibilidade de "uma releitura crítica verossímil do passado" (Fleck 109).
O narrador-protagonista informa ao leitor sobre a aquisição de um livro que, além de exageros em seu entrecho, não o cita em nenhum momento, e ele, então, decide contar a sua "verdadeira" e "marginalizada" história. A autora, usando como recurso a ironia, assim como elementos da carnavaliza-ção, apresenta, no início do texto, elementos de metaficção como estratégia para apoderar-se e parodiar criticamente o discurso do outro, sempre com uma linguagem coloquial e com atenção à linearidade da narrativa. Tais elementos oferecem-nos a possibilidade de "ouvir" outra versão da mesma história, a partir de vozes outras e a questionar o discurso imposto por uma classe considerada superior, elitista. Vejamos:
Livros são para os ricos, um homem simples como eu dificilmente pode comprá-los. Entretanto, como o assunto me diz respeito, tratei de adquirir a obra que faz sucesso por toda a Europa, intitulada Mundus Novus, que alega reproduzir uma carta escrita por Américo Vespúcio a seu amigo e patrocinador florentino Lourenço de Médici, narrando uma expedição à Terra de Santa Cruz. Além dos exageros da obra, na qual Vespúcio desempenha o papel principal, omitindo-se o nome de Gonçalo Coelho, comandante da frota, os editores e tradutores, para agradar ao público e vender cada vez mais livros, foram lhe acrescentando novos fatos e maravilhas, e são tantas as versões publicadas que já não se sabe ao certo o que foi ou não escrito pelo próprio Vespúcio. (Sant'Anna 6)
Nesse trecho, podemos notar, ainda, a peculiaridade da linguagem amena e fluida numa escrita que pode ser facilmente compreendida por leitores ainda em formação. A voz enunciadora explicita a crítica a uma visão de mundo eurocêntrica e hegemónica, pela citação da suposta obra de Vespúcio, assim como o desvelamento das diferenças de classes (os ricos e o homem simples) e, finalmente, a evidência ao indivíduo marginalizado que, na ficção, dota-se de voz para narrar a sua versão dos fatos.
Ressaltamos, uma vez mais, que a voz enunciadora do romance se trata do degredado Afonso Ribeiro que relata, em voz autodiegética, as suas aventuras na colónia portuguesa na América, cujo relato é direcionado a um público infantojuvenil que, ao mesmo tempo em que "participa" dessas aventuras, é instigado a refletir criticamente sobre a história oficializada no processo do "descobrimento" do Brasil pelas vias ficcionais da ressignificação do passado pela literatura.
No segundo capítulo, intitulado "início das minhas desditas", observamos aspectos que Fleck nomeia como "foco narrativo geralmente centralizado e ex-cêntrico" (110), em que a personagem principal, nesse caso Afonso Ribeiro, narra o início de sua história e como ocorre sua passagem de criado a um condenado à forca e, por fim, ao degredo em terras longínquas e até então desconhecidas por ele.
Meu nome é Afonso Ribeiro, e sou português. Durante bom tempo trabalhei como criado do fidalgo João de Telo, o que não é um mau emprego para um homem do povo. Mas fui injustamente acusado de assassinar um homem. De nada adiantou jurar que não fora eu o autor do crime. O julgamento foi rápido e, como só Elena, minha noiva, acreditava em minha inocência, os juízes condenaram-me a açoites e à morte. Certo dia, um meirinho trouxe a notícia de que minha pena, assim como a de dezenove companheiros, havia sido comutada para degredo na África ou na Índia. Seguiríamos na frota que o almirante Pedro Álvares Cabral aprestava para ir a Sofala e Calicute. (Sant'Anna 8)
Ao longo da diegese, encontramos vários excertos que configuram e evidenciam as perspectivas marginalizadas pelos relatos oficializados, neste caso, as de um degredado, privilegiando-as. Tal feito proporciona ao leitor, por meio do discurso autodiegético do narrador e pela subjetivação do material histórico inserido na diegese, a aproximação com o passado ressignificado pela ficção, abordado sob diferentes pontos de vistas. Isso possibilita ao jovem leitor reler e ressignificar tais acontecimentos bem conhecidos que levaram ao "descobrimento" do Brasil, expostos, na ficção, por novos olhares e por diferentes ângulos de exposição dos eventos.
Trata-se de outra perspectivação dos fatos, o que tira dos primeiros - avalizados pelo poder - o caráter imutável de "verdade" universal. O degredo, nesse caso, torna-se argumento de legitimação do discurso de um indivíduo periférico, que, dada sua condição, desmascara a visão do colonizador frente aos habitantes colonizados, como se nota no trecho abaixo:
Muitos portugueses, entretanto, têm alma de marujo e são atraídos pela aventura e pelo desejo de conhecer terras exóticas, sempre na esperança de fazer fortuna no comércio das especiarias. Mas a um degredado até essa esperança é negada, pois seu destino é ser abandonado em alguma praia ou ilha remota, e ali relacionar-se com os habitantes locais - se não for morto por eles. Eu havia escapado à forca, seria esse um sinal de que Deus pretendia poupar minha vida? Ou minha sentença de morte fora apenas adiada? (Sant'Anna 8-9)
É possível notarmos no discurso ficcional que a personagem habita o entre-lugar (consoante a Santiago): um europeu condenado, primeiramente à forca, mas que pode ser útil ao poder, ao, em seguida, ser obrigado a viver entre autóctones de uma terra ainda desconhecida em seus hábitos e costumes. Constrói-se, assim, no romance infantojuvenil, um discurso que se assemelha ao que nas palavras de Silviano Santiago, revela o entre-lugar do discurso latino-americano, realizado "entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão" (Santiago 26).
A narrativa se apresenta linear e busca seguir cronologicamente a ordem dos eventos ao longo de toda diegese. O leitor, ao se fixar nessa sequência lógica de ações, tem assegurada sua compreensão dos fatos narrados sem maior dificuldade ou necessidade de grandes digressões. Somando-se ao trânsito entre ficção e história, tais aspectos confirmam a aproximação da obra com as narrativas da modalidade mais atual do romance histórico contemporâneo de mediação.
A obra se constitui numa sequência linear que apresenta o início, o meio e o fim das ações do protagonista, contando entre ela os acontecimentos desde 1500, que seguem, de forma linear, pelos próximos vinte meses em que a personagem viverá como degredado na terra de Santa Cruz, conforme podemos verificar no trecho destacado à continuação:
Acenei e corri até eles e, nem eu mesmo sei por que, a primeira frase a brotar dos meus lábios foi:
- Em que ano estamos, pelo amor de Deus.
Em resposta, ouvi, em bom português que soou como música a meus ouvidos:
- Este é o ano de 1501, e entramos há poucos dias no mês de dezembro. Desatei a chorar. Então fazia vinte meses que vivíamos ali! (Sant'Anna 69)
A linguagem empregada na construção do relato, como notamos no trecho acima, constitui-se de coloquialidade e simplicidade e, pela exposição de datas, ressalta a aproximação com os eventos retratados pelo discurso oficial, sem se entregar a digressões ou complexidades características do novo romance histórico latino-americano. A obra infantojuvenil em destaque não se apresenta de forma estruturalmente complexa, e os leitores podem compreender, sem grandes esforços, o uso das frases curtas e diretas, voltadas à linguagem de domínio comum e de fácil apreensão: "Choviam perguntas sobre nossa vida entre os selvagens, às quais eu apenas respondia: - Depois, depois. Quando estivermos a bordo contaremos tudo" (Sant'Anna 70).
A obra apresenta, também, intertextualidades e o emprego de estratégias escriturais bakhtinianas como a polifonia e a dialogia, que surgem não somente por meio do texto, mas, também, pelas ilustrações que apresenta. Vejamos um fragmento no qual isso se evidencia:
Disse a Cunhã-porang, que não apresentei como minha esposa - meu casamento com uma pagã que andava nua e comia carne humana era um assunto a ser tratado no momento apropriado -, que iria sozinho visitar meus parentes. Talvez passasse com eles a noite, mas voltaria no dia seguinte com presentes para ela e o menino. (Sant'Anna 70)
Nota-se, no trecho, que o narrador se utiliza da ironia para demarcar o encontro com o nativo e a consequente mistura de raças, ao destacar o casamento com uma pagã que comia carne humana e o que faria para apresentá-la aos parentes. Esse discurso revisita a dicotomia entre o que se dizia e o que se fazia na colonização da América, evidenciando, no discurso ficcional, a discrepância entre o discurso oficial de unidade e pureza, lema da colonização, e as ações de miscigenação empreendidas pelos brancos europeus nas terras colonizadas.
Além disso, a passagem denota o abismo entre duas culturas díspares, assim como as estratégias para retratar a cultura do nativo como irracional e violenta - o que não condiz com os desdobramentos genocidas perpetrados pelos europeus após o evento do "descobrimento" da América. Em outro momento do romance, como vemos na sequência, a ideia de paganismo e canibalismo, aqui retratados em chave irónica, é desmistificada pelo narrador, ressaltando-se os rituais nos quais tais práticas são realizadas, assim como a cordialidade dos autóctones frente àqueles que, para eles, não representam perigo.
A utilização de recursos metanarrativos ocorre durante alguns momentos do relato da obra, mas, diferentemente das metaficções historiográficas, elas não constituem um elemento global da narrativa. Esses recursos aparecem e permitem que o leitor se localize no espaço e no tempo da narrativa, como apoio e suporte à leitura, ajudando na construção de seu entendimento, mas sem prendê-lo ou privá-lo de sua própria compreensão e interpretação dos fatos narrados.
O relato ficcional dirigido aos jovens leitores também acrescenta ao seu conhecimento comum, transmitido nos livros escolares, novas informações sobre a sequência das ações que levaram ao "descobrimento" do Brasil, em 1500, e que sucederam após a esquadra comandada por Cabral dirigir-se ao que se havia anunciado como sua rota oficial: a África:
Gonçalo Coelho prosseguiu:
- Foi então que entrou no porto a nau Anunciada, também da frota de Cabral, que se adiantara um pouco graças a ventos favoráveis. Por Gaspar da Gama, que estava a bordo, ficamos sabendo do que aconteceu ao que sobrou da esquadra. Depois de visitarem vários portos africanos, chegaram a Calicute, onde foram atacados por mercadores árabes. Pero Vaz de Caminha e vários outros morreram nesse ataque. (Sant'Anna 73)
Embora apresente eventos que são resgatados do discurso oficial, como a chegada da frota de Cabral ao Brasil, assim como os homens presentes na navegação e o escrivão Caminha, o narrador faz questão de destacar, durante toda a diegese, que apresenta uma visão periférica desses eventos, cuja finalidade é criar um espaço de enunciação à voz de indivíduos que, nos registros oficiais, são apagados e silenciados.
Na diegese, podemos ouvir a história contada por um português degredado, que conviveu com os nativos e que pode, então, narrá-la por meio de suas vivências e experiências reais e não, como antes, imaginadas. Nesse sentido, a obra também desmistifica a questão da antropofagia e do canibalismo dos autóctones, pois Afonso Ribeiro, assim descreve tal costume:
Chegou nossa vez de narrar tudo o que havíamos visto e vivido, e foi juntando gente à nossa volta, todos ávidos por nos ouvir. Antes de qualquer coisa, indagaram se eram canibais os nativos entre os quais vivíamos.
- Aqui onde meu amigo e eu vivemos, visitantes são bem recebidos - respondi. - Entretanto, também se come carne humana, mas só a de inimigos mortos em guerra. Quem os tratar amistosamente será retribuído na mesma moeda. (Sant'Anna 74)
Ao final da obra, encontramos, então, um português degredado, que, após conviver com os nativos e com eles habitar por cerca de dois anos, é resgatado, trazido de volta à sua terra natal e tem sua pena perdoada. Porém, há nele muito mais do que o ex-criado português acusado injustamente de assassinato. É a partir daí que um leitor mais atento, por meio da literatura, pode ressignificar a história oficializada que nos é, normal e cotidianamente, renarrativizada.
Assim, por meio da análise da obra Degredado em Santa Cruz, verificamos ser possível sua classificação como um romance histórico contemporâneo de mediação, pois a obra apresenta todas as características que demarcam essa modalidade de narrativa híbrida de ficção e história definida por Fleck em seus estudos sobre o romance histórico.
Comentários finais
Por meio da análise das narrativas híbridas da literatura infantojuvenil Anacaona: The Golden Flower Queen. La Reina Flor de Oro, de Viviana S. Torres, e Degredado em Santa Cruz, de Sonia Sant'Anna, constatamos como possível e pertinente a aproximação dessas obras com os pressupostos teóricos sobre o romance histórico contemporâneo de mediação, propostos por Fleck. Conforme demonstrado, essas duas obras apresentam as características que definem essa mais atual modalidade do gênero híbrido de história e ficção: o romance histórico contemporâneo de mediação.
Durante muito tempo, o discurso historiográfico hegemónico tentou estabelecer como "verdade" formações discursivas que acabaram por subjugar ou até mesmo silenciar alguns sujeitos da história, o que reforça a importância de estudos no âmbito das narrativas híbridas de história e ficção no sentido de descolonização da América Latina no imaginário coletivo, não apenas hispano-americano, mas mundial. Fazer isso no âmbito das escritas infantojuvenis é investir em um futuro menos alienado e mais consciente para nossos jovens leitores.
A leitura e análise das obras classificadas na modalidade de romance histórico contemporâneo de mediação vêm fortalecer e corroborar com tal perspectiva, haja vista que podem não apenas proporcionar ao jovem leitor um momento prazeroso na leitura e releitura da história, mas, também - e principalmente, - instigar à ressignificação de sua própria história sob novos olhares, já menos estigmatizados, para efetuar uma possível descolonização intelectual ainda necessária em vários âmbitos das sociedades latino-americanas.
Referências
Sobre os autores
Referencias
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