Da diocese ao parlamento se faz o ultramontanismo: D. José, um bispo político na Amazônia oitocentista (1844-1857)
From diocese to parliament if does ultramontanismo: D. José, a political bishop in the amazon nineteenth century
DOI:
https://doi.org/10.15446/hys.n31.55470Palabras clave:
Dom José, Igreja, política, ultramontanismo (pt)D. José, church, policy, Ultramontanism (en)
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As relações entre Estado e Igreja foram desgastadas nos embates das visões de mundo no decorrer do século XIX, resultando na ruptura da aliança trono/altar, com um progressivo aumento da busca pela autonomia da Igreja. Todavia, essa tensão entre os dois poderes ainda não havia transbordado durante os anos 40 e 50, particularmente na Amazônia. Partilhavam os membros da Igreja católica do exercício de gestão do Estado por meio dos pleitos eleitorais e da confirmação nas funções regulares de escrituração pública nos livros de paroquia, quanto na oferta dos serviços pastorais e simbólicos. O presente trabalho visa demonstrar a intervenção de Dom José Afonso de Moraes Torres, continuador na diocese do Pará da feição do catolicismo conservador em sintonia com Santa Sé, em consonância com a introdução das teses do Ultramontanismo em curso no Brasil. Esse pastorado cuidou de implantar medidas de reforma da católica prestando maior acento aos sacramentos, como fica evidente em sua atuação quando foi membro do parlamento nacional
Relations between church and state were worn in clashes of worldviews in the course of the nineteenth century, resulting in the breaking of the covenant throne-altar, with a progressive increase in the search for the autonomy of the Church. However, this tension between the two powers had not yet overflowed during the 40s and 50s, particularly in the Amazon. They shared the members of the Catholic Church from the state management exercise by means of elections and confirmation in the regular functions of public bookkeeping in the parish books, as in the provision of pastoral and symbolic services. This study aims to demonstrate the intervention of D. José Afonso de Moraes Torres, continuer in the Diocese of Pará the feature of conservative Catholicism in tune with the Holy See, in line with the introduction of ultramontanism of theses underway in Brazil. This pastoret took care of deploying Catholic reform measures to give greater emphasis to the sacraments, as evidenced by his performance when he was a member of the national parliament.
ARTÍCULO DE INVESTIGACIÓN
DOI: https://doi.org/10.15446/hys.n31.55470
Da diocese ao parlamento se faz o ultramontanismo: D. José, um bispo político na Amazônia oitocentista (1844-1857)*
From diocese to parliament if does ultramontanismo: D. José, a political bishop in the amazon nineteenth century
Fernando Arthur Freitas Neves**, Allan Azevedo Andrade***
** Doctor en Historia. Profesor asociado I y decano de extensión de la Universidade Federal do Pará. Belém-Brasil. Correo electrónico: arthurlobinho18@gmail.com
*** Estudiante de maestría en Historia Social de la Amazonía de la Universidade Federal do Pará. Belém-Brasil. Correo electrónico: allan.andrade89@hotmail.com
Artículo recibido el 29 de enero de 2016 y aprobado el 23 de febrero de 2016.
Resumo
As relações entre Estado e Igreja foram desgastadas nos embates das visões de mundo no decorrer do século XIX, resultando na ruptura da aliança trono-altar, com um progressivo aumento da busca pela autonomia da Igreja. Durante os anos 40 e 50 essa tensão entre os dois poderes ainda não havia transbordado, particularmente na Amazônia. Partilhavam os membros da Igreja católica do exercício de gestão do Estado por meio dos pleitos eleitorais e da confirmação nas funções regulares de escrituração pública nos livros de paroquia, quanto na oferta dos serviços pastorais e simbólicos. O presente trabalho visa demonstrar a intervenção de D. José Afonso de Moraes Torres, continuador na diocese do Pará, da feição do catolicismo conservador em sintonia com Santa Sé, em consonância com a introdução das teses do ultramontanismo em curso no Brasil. Esse pastorado cuidou de implantar medidas de reforma da católica prestando maior acento aos sacramentos, como fica evidente em sua atuação quando foi membro do parlamento nacional.
Palavras-chave: D. José, Igreja, política, ultramontanismo.
Abstract
Relations between church and state were worn in clashes of worldviews in the course of the nineteenth century, resulting in the breaking of the covenant throne-altar, with a progressive increase in the search for the autonomy of the Church. However, this tension between the two powers had not yet overflowed during the 40s and 50s, particularly in the Amazon. They shared the members of the Catholic Church from the state management exercise by means of elections and confirmation in the regular functions of public bookkeeping in the parish books, as in the provision of pastoral and symbolic services. This study aims to demonstrate the intervention of D. José Afonso de Moraes Torres, continuer in the Diocese of Pará the feature of conservative Catholicism in tune with the Holy See, in line with the introduction of ultramontanism of theses underway in Brazil. This pastoret took care of deploying Catholic reform measures to give greater emphasis to the sacraments, as evidenced by his performance when he was a member of the national parliament.
Keywords: D. José; church; policy; Ultramontanism.
Introdução
O estudo em tela tem o objetivo de analisar o posicionamento do 9o bispo do Pará, José Afonso de Moraes Torres, em face do conjunto dos negócios do Estado, levando em consideração o envolvimento com as eleições públicas, bem como sua formação moral e teológica sem olvidar sua atuação pastoral —de inclinação ultramontana—dentro da diocese do Pará, no intuito de compreender a inserção da hierarquia católica na política sob o prisma do prelado diocesano durante seu bispado (1844-1857).
A erosão existente entre Igreja e Estado proveniente da corrosão dos alicerces que sustentavam o antigo regime desde a época da Revolução francesa, não foi implacável no Brasil. Mal grado a sociedade amazônica se deparou com uma série de medidas pautadas nos preceitos ultramontanos antes da tão propalada ''Questão Religiosa''1, ainda não era um momento de completo antagonismo entre o poder temporal e espiritual, porquanto nos anos 40 e 50 do século XIX a esfera eclesiástica não se via apartada esfera civil no que diz respeito à realidade da província do Grão-Pará.
De todo modo que os contrassensos mais dissonantes das duas esferas pareciam estar em estado de dormência. No entanto, já se observava nas atitudes do bispo D. José o intuito de sintonizar o seu bispado aos ventos do ultramontanismo,2 mostrando-se, em certa medida, em harmonia com as ideias difundidas pelos papas Gregório XVI3 e Pio IX.4 Dom José buscou cativar audiência para as teses ultramontanas utilizando o instrumento moderno de formação de opinião no século XIX —a imprensa— ainda não era a imprensa católica por excelência que se cristalizou no início do século XX. Entretanto propiciou a formação de tribunas jornalísticas nas colunas e artigos de seus simpatizantes nos periódicos existentes no Pará, nas quais apresentava as diretrizes para sua diocese referente à doutrina e costumes da sociedade tradicional em oposição à esfera da secularidade promovida pela modernidade.
Exemplo de comparação entre as relações tensas no século XIX entre Estado e Igreja, é o caso do México, já constituído em república desde a Independência, pois embora tenha tido um pequeno tempo sobre a forma do Império de Maximiliano, retornou ao regime da república. Ali as disputas entre liberais e a Igreja foram intensificadas a partir de 1860. Em efeito a Igreja protestou contra a subtração do que considerava seus direitos como controle sobre suas propriedades, ensinar a religião comforme os preceitos dos bispos diocesanos, e dirigir em plenitude seminários assentados na cultura religiosa da romanização, para fazer valer os sacramentos de inscritos com os registros respectivos de batismo, casamento e morte ao invés dos registros civis como sustentavam os liberais. Essa discussão foi bem tratada por José Gutierrez Casillas na obra de ''Jesuitas em México durante século XIX''.
Se os países libertos do domínio colonial ergueram repúblicas como regime, nem por isso a influência da Igreja declinou de todo, antes uma série de privilégios continuaram nas Constituições, por exemplo, a obrigatoriedade da condição de ser católico para ser presidente nas repúblicas latinomaericanas. As chamadas religiões acatólicas denunciaram essas características.5 Graças ao regime do padroado confirmado como legado na Constituição brasileira de 1824, o monopólio de fé do catolicismo propiciou a manutenção da catolicidade como cultura religiosa formalmente aceita. Devido à falta de maior unidade orgânica, as dioceses não conseguiram plasmar ''uma folha oficial ou oficiosa para defender a Igreja'' como sustenta Diego Oliveira, nem por isso as teses apolegéticas do catolicismo ultramontano deixaram de ser difundidas.
As circulações de ideias que eram muito variadas, podiam ser em pequenas ou grandes tiragens, participaram da disputa na modelagem da civilização do século XIX. Desde a década de 1830 existiram muitos periódicos simpatizantes das ideias católicas na província do Pará, entretanto é só partir de 1870 que os periódicos das dioceses de todo Brasil ganharam uma expressão até então inexistente, dirigidos com forte caráter apologético de imprensa católica. Contudo durante o bispado de D. José não existia a efetiva concorrência da imprensa propriamente anticatólica como foi visto a partir da década de 1870. Os estudos de Oscar Lustosa sobre como foi formada a imprensa do catolicismo no século XIX até alcançar a forma sistêmica de existir foi fruto de uma longa trajetória de práticas e reflexões sobre a importância desse instrumento para a disputa das consciências.6
O século XX assistiu um direcionamento do episcopado no Brasil na articulação da Liga da Boa Imprensa em 1909 no qual definiu propriamente a orientação jurídica e pastoral, bem como o detalhamento de estatutos e regulamentos. Este processo tomou como exemplo a experiência europeia daquela intelectualidade católica que investiu na profissionalização, deixando pra trás o caráter artesanal de quando atuava D. José no exercício pastorado. D. José buscava colocar em prática na Amazônia o plano de reforma da Igreja católica que ganhava cada vez mais espaço dentro da Europa em meados do século XIX. Porém, simultaneamente ao seu bispado, o prelado diocesano estava envolvido com a política, sendo eleito a cargos públicos de prestígio regional e nacional. Diante disso, procura-se compreender a atuação do referido bispo aliando a atividade político-parlamentar às suas atribuições religiosas, em um contexto que não havia a cisão entre Igreja e Estado, porem aquela proclamasse um crescente receio com a secularização da sociedade, a qual contribuiu para o estremecimento da aliança entre trono e altar, gerando o conflito na década de 1870. Por conseguinte, busca-se examinar como se processava as relações entre a instituição eclesiástica, o Estado e a população, no intuito de entender a complexa ligação entre o campo religioso e político, sempre associando ao âmbito nacional e internacional.
1. D. José e a política
Na América latina, desde a década de 1820, houve uma ruptura provocada pela separação das colônias ibéricas de suas metrópoles através de arranjos institucionais, levando a Igreja católica a enfrentar uma nova realidade política, cuja característica era a superação do poder colonial, e a articulação de um poder secular fundado cada vez menos na moral religiosa e mais na moral política —predominante republicana— à exceção do Brasil que se constituiu como Império. Mesmo assim, a Igreja continuou a exercer influência dentro no mundo latino-americano,7 pois constitucionalmente o catolicismo seguiu desfrutando dos privilégios relacionados ao regalismo ibérico.8
Em meio a isso, quando analisamos a perspectiva política do bispo D. José,9 em a tentativa de reforma interna da Igreja católica em meados do século XIX na Amazônia, percebemos ser esta intervenção ajustada ao ideário de reforma social e moral. À vista disso, é fundamental examinar o momento de transição pelo qual passava a Igreja, no qual ainda não era tão notório o direcionamento romano no intuito de afastar os prelados do envolvimento com os negócios civis, e consequentemente das disputas eleitorais. Diferente do que o que aconteceu mais tarde (a partir da década de 1860), quando a Igreja estava concentrada mais na empreitada católica romana do que na questão nacional. Concernente a esse debate é importante destacar a conceituação de ultramontanismo, caracterizando-o como uma campanha10 dirigida pela hierarquia eclesiástica que pretendia afastar a Igreja do poder temporal na figura do imperador e aproxima-la das ordens da Santa Sé, bem como reagir contra certas correntes teológicas e eclesiásticas e a todo o conjunto da modernidade11 que de alguma forma colocasse em risco a hegemonia católica.
Nesse sentido, Ivan Manoel define o ultramontanismo como um conjunto de medidas teórico e práticas alicerçadas na condenação a modernidade em seu conjunto (sociedade, política, economia, cultura) tendo a medievo como paradigma. Ali se concentraram o das atitudes da Igreja em Roma, reforçando a infalibilidade papal —obretudo após o estabelecimento dessa diretriz como dogma após o Concilio do Vaticano I em 1870—; valorizando o episcopado; e reforçando o magistério retomando o tomismo, considerado pela Igreja a única filosofia necessária para o cristão. Para ajudar a traduzir os significados das mudanças e entender as relações dessa época é de suma importância salientar algumas categorias do pensamento gramsciniano para inquirir as relações sociais da Igreja dentro da sociedade civil. A detenção do poder político na modernidade está sob a primazia do Estado e não mais da Igreja como era no medievo, restando a esta acomodar-se como membro qualificado da sociedade civil.
De acordo com Antonio Gramsci ''a história dos partidos e das tendências políticas não podem ser separada daquela dos grupos e das tendências religiosas''12. Então, a partir da identificação da Igreja como aparelho ideológico13 é possível definir suas relações com a política, na medida em que ambos apresentam uma estreita dependência aventada pela existência de castas de intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos.14 A oposição ideológica entre a aristocracia escravista-fundiária (tendo como interposto a Igreja) e a burguesia em via de modernização (por intermédio da franco-maçonaria) mostrou a situação do aparecimento de novas castas em conflitos com as forças tradicionais.
Insatisfeito com o fornecimento do poder civil de meios materiais necessários à Igreja, D. José se empenhou na busca pela defesa da dignidade do clero num cenário de subjunção frente ao Estado. O bispo nem sempre obteve sucesso nas candidaturas a deputado provincial como foram os pleitos de 1854 e 1856; tão pouco venceu a disputa eleitoral para o Senado em 1855. Entretanto, pouco mais de um ano depois de sua entronização a frente da diocese, D. José foi eleito deputado da Assembleia Legislativa do Pará em 1845, sendo o segundo mais votado dentre os 28 eleitos, tomando posse em 1846:
Achando-se sobre a Mesa o Diploma do Exm.o Snr. D. José Affonso de Moraes Torres, he entregue á Commissão de Poderes para o examinar. Retira-se a Commissão para a Sala respectiva, e dahi a pouco volta com o seguinte parecer: ''A Commissão de Constituição, e Poderes, examinando o Diploma do Exm.o e Reverendissimo Snr. D. José Affonso de Moraes Torres, Deputado eleito á esta Assembléa Legislativa Pronvincial do Pará 14 setembro de 1846. José Joaquim Pimenta Magalhães - Jose de Napoles Telles de Menezes.15
A repentina eleição de D. José Afonso Torres é curiosa quando se considera o fato dele não possuía um vínculo de nascimento com a província do Pará. Nesse sentido entra em cena a ideia de José Murilo de Carvalho16 referindo-se aos padres como lideres populares em potencial havendo, portanto, um vínculo religioso que provavelmente lhe proporcionou a elegibilidade ou pelo menos garantiu a simpatia perante os indivíduos incumbidos de votar.17 Essa aproximação junto ao colégio de eleitores que excluía pobres, mulheres (apesar de terem propriedade e renda) e os escravos por não terem cidadania foi confirmada quando, entre outros atos, em 1845 D. José caracteriza-se por ser um bispo que sai dos muros da Igreja e ia ao encontro do seu rebanho espiritual na ocasião das visitas pastorais, a fim de pregar o catolicismo ultramontano nos meses antecedentes às eleições para a cadeira de deputado.
A eleição de D. José para a Assembleia Provincial do Pará no ano de 1845 não foi algo isolado, em razão de outros três sacerdotes —padre Prudêncio José das Merces Tavares, padre Victorio Procopio Serrão do Espirito Santo e o chantre Raymundo Severino de Mattos— também ganharam a batalha eleitoral, mostrando o quanto ainda estava incrustada a participação político eleitoral na vida dos religiosos da diocese. É importante salientar que D. José teve uma participação discreta quando foi deputado pela província do Pará, pois apesar de sua razoável assiduidade nas sessões do parlamento provincial, poucos são os registros de sua manifestação durante os debates acalorados a respeito de projetos, requerimentos e indicações. Naquele tempo o seu mandato foi pouco expressivo, justificado talvez pela pouca experiência na cultura parlamentar devido tratar-se de ser aquele seu primeiro mandato.
Essa hipótese é reforçada pelo insucesso do bispo diocesano nas candidaturas a deputado provincial do Pará em 1854 e a senador em 1855, sugerindo uma aceitação tênue dos eleitores aos projetos apresentados, provavelmente, devido à acentuada predileção às questões relativas à Igreja como aumento côngruas, verbas para matriz e seminários em detrimento de outras propostas como as apresentadas pelo deputado por Pernambuco, padre Venâncio, ao protagonizar a defesa pela transposição do Rio S. Francisco e sobre a navegação a vapor. Em resumo as propostas do bispo eram mais paroquias, enquanto as do padre eram mais gerais.
Apesar de estar disposto a assumir outras cadeiras no parlamento, não obteve o sucesso desejado alcançando um número de votos pouco expressivo e inferior a de outros sacerdotes que também concorriam aos mesmos ofícios políticos. Conquanto, esses mencionados percalços em sua trajetória parlamentar, D. José conquistou uma cadeira dos eleitores ao ser escolhido deputado provincial em 1850. O fato de ter sido o 21 dentre 28 deputados eleitos —tendo uma quantia de votos bem abaixo se comparado aos de sua primeira eleição— refletiu uma diminuição no prestígio político do bispo. Além disso, o compromisso com a missão espiritual o levou a renunciar ao cargo político, a fim de se dedicar as visitas pastorais pelo sertão da Amazônia entre julho de 1850 a Abril de 1851.
Situação diferente ele vivenciou quando foi eleito deputado pela província do Amazonas à Assembleia Nacional em 1851, quando expectava boas possibilidades de lograr recursos capazes de atender as necessidades da Igreja. Nessa legislatura (1849-1852) o bispo diocesano não teve uma participação destacada como o experiente padre político Venâncio Henriques de Resende, mas José Afonso Torres chegou a propor alguns artigos aditivos ao orçamento. Um exemplo disso foi à solicitação de quantia em dinheiro para reedificação da matriz de Nossa Senhora do Rio Negro. O bispo político também proferiu discurso chamando atenção para o problema da baixa remuneração (côngruas) oferecida aos membros do clero:
Um cônego, por exemplo, como o do Pará, com uma côngrua de 450$, não sei como possa pagar aluguel de casa, alimentar-se, vestir-se de uma maneira conveniente ao seu estado e hierarquia, sendo obrigado a apresentar-se na duas vezes por dia. Como é possível que um pároco com uma côngrua de 400$ ou de 300$ possa fazer a despesa com seu sustento e vestuário, socorrer à pobreza que lhe bate a porta e que lhe pede esmola como um dever de justiça e não de caridade devendo, além disto, ter condução pronta para acudir, de noite e de dia, com os sacramentos aos fieis.18
O cotidiano do parlamento brasileiro mostrou uma distinção entre os objetivos advogados pelos padres e pela hierarquia católica, porque para a eficácia do projeto ultramontano do bispo diocesano —cuja reforma interna da Igreja deveria começar pela formação de um clero ajustado com a tese da Santa Sé— era imprescindível seu comprometimento com a causa dos padres, principalmente no tocante a remuneração dos clérigos, apontando o valor da côngrua como o ensejo da dificuldade de sobrevivência dos sacerdotes e consequentemente da pouca eficiência em suas atividades eclesiásticas. Não obstante, o baixo valor pago aos sacerdotes também era usado como pretexto para a dedicação do clero as atividades públicas de natureza temporal, contudo, mesmo com essas dificuldades, não se pode esquecer que nessa época era frequente a entrada de religiosos na estrutura política do Estado.
No momento de transição da regência para o segundo reinado, a posição da Igreja frente à política estava inserida na lógica do Padroado Régio.19 Com o tempo, houve um progressivo afastamento dos religiosos na vida política imperial, mormente a após 1840.20 Já entre as legislaturas de 1843 e 1860, a diminuição dos sacerdotes no parlamento se deu apenas de forma sensível. Por meio dos estudos21 construímos os parâmetros da problematização e contextualização do período, reconhecendo as linhas de força da modernização do Estado, ampliação da burocracia inerente com esta modernização e os contrapontos da Igreja e da incipiente sociedade civil presentes naquela ambiência. Entre elas a questão dos liberais, que durante o período de 1840 a 1850 procuraram se estabelecer, sobretudo no que tange aos cargos para presidentes das províncias quanto ao número dos seus componentes na Assembleia. Eles se destacaram em 1840, apoiando a articulação da maioridade de D. Pedro II para assumir o poder, revertendo o predomínio dos conservadores na época da Regência.
Segundo Francisco Iglésias, nessa época ainda estava se construindo o ''espírito partidário'' no Brasil. Dessa maneira, foi habitual em meados do XIX a alternância partidária de liberais e conservadores para a eleição e manutenção dos seus ideais particulares em detrimento a qualquer tipo de fidelidade partidária, sendo fortes as divergências regionalistas dentro de um mesmo partido. Durante grande parte de sua estada no poder os liberais não apresentavam unidade de pensamento. Mesmo estes tendo a pretensão de se aproximarem da figura do imperador, as discordâncias existentes no interior do governo dos liberais facilitaram a reaproximação do aquele aos conservadores.
Em virtude disso, as eleições de 1850 foram bastante significativas, já que marcam a queda da maioria liberal no poder desde 1844 e a ascensão conservadora. Importante salientar que em meio a um momento onde existe mundialmente uma tendência a maior participação dos liberais na conjuntura política de seus respectivos locais, por aqui a situação foi diferente, na medida em que os conservadores ganhou espaço, sendo um paralelo disso a própria eleição de D. José. Além, o contexto nacional de 1850 havia sido marcado pela criação da província do Amazonas (do qual D. José havia sido eleito deputado em 1851) que embora ainda se mostrasse dependente de Belém, compreendia a significação de um novo corpo político no Império.
Ademais, o risco das invasões estrangeiras preocupava as elites interessadas em confirmar o poder político sob o território, tendo como aliada a Igreja para ratificar esta identidade, mormente na fronteira com as colônias dos países protestantes, como Inglaterra e Holanda, na Calha Norte, além das possíveis investidas dos Estados Unidos de América para negociar com Peru, Colômbia e Bolívia. Assim sabendo D. José que tinha que conviver com essas incursões estrangeiras que afetavam o tecido político-religioso na Amazônia, se valendo do seu prestígio enquanto líder da Igreja na região ao condenar22 a distribuição de bíblias protestantes na região. Dessa forma, ao verificar a documentação sobre o referido assunto, podemos perceber sua intervenção no parlamento conclamando que para uma melhoria dos serviços prestados pela Igreja era necessário atender aos seus reclamos. D. José Afonso denunciou da tribuna a fragilidade do clero ao se vê compelido a favorecer condutas ruinosas, tanto quanto declarou seu compromisso em recusar a colaboração com certa modernidade ao expressar seu inconformismo com o tratamento disferido à Igreja cujo fim era subordina-la ao Estado e aos poderosos.
O padre acusou como o tratamento oferecido pelo poder civil para com os sacerdotes os tornou presas daquele sistema que vilipendiava a condição do sacerdócio pela dependência que muitas vezes os padres assumissem perante a classe dominante, acarretando na corrupção e destruição de toda a vida espiritual do clero. Tal interpretação foi acolhida por João Santos (1992),23 estudioso da Igreja, ao destacar a participação do bispo no parlamento. O excerto de seu dramático discurso feito na legislatura de 1851 não deixa dúvida sobre a importância em atender as reivindicações históricas do clero pela revisão das côngruas:
Não dar-lhe um ordenado suficiente para sua sustentação é aniquilá-lo, é despi-lo de todo prestígio, e até cativá-lo em seu ministério, porque um funcionário público que sê vê na necessidade de mendigar o pão, vê-se também muitas vezes na necessidade de sacrificar sua consciência e seu dever ao interesse e à vontade dos ricos de quem depende.24
Lacombe elucida o discurso de D. José como produto do momento eclesiástico da época, quando o bispo denunciou a dependência do padre com respeito aos ricos, propondo a remediação dessa situação; doravante com a reforma da legislação o sustento satisfatório dos presbíteros por parte do poder civil, reduziu assim os riscos de os sacerdotes ficarem a mercê dos poderosos da paróquia. Em face disso, o bispo parece não se incomodar com a dependência do Estado no que diz respeito ao fornecimento dos bens materiais e dos ordenados. Nem poderia ser diferente. Esta postura vai ao encontro do regime do padroado, afinal era de obrigação do poder civil garantir financeiramente a manutenção dos templos e o sustento dos sacerdotes. O incomodo declarado pelo bispo foi devido à baixa remuneração oferecida aos padres possibilitando a composição de compromissos alheios ao interesse público e suas possíveis consequências para o pastoreio de almas.
Com efeito, não pode ser negligenciado o grau de instrução do prelado diocesano para compreender seu modo de proceder seja no parlamento, seja na diocese. D. José Torres foi professor de Filosofia e Retórica no Seminário de Caraça,25 em Minas Gerais, local onde realizou parte de sua formação. Essa estrutura intelectual lhe permitiu publicar em 1852, o Compendio De Philosophia Racional. Nessa obra, é possível perceber a visão de mundo do bispo, dotada de forte caráter doutrinário, moral e religioso. No trecho abaixo, ele expõe seu pensamento sobre a razão:
A rasão por si mesma não leva ninguem ao erro; por quanto a rasão é a faculdade de perceber distinctamente o nexo das verdades, ora quem assim percebe a ligação que há entre as verdades, tira legitimas illações de princípios verdadeiros, não pode por conseguinte errar: todo o erro por tanto nasce não do uso da rasão, mas de seo abuso, e por isso, quando dividimos a rasão em recta, e não recta, só queremos com isto significar que se dá abuso da rasão [...].26
Vale lembrar que a razão foi designada pelo liberalismo como instrumento de reflexão sobre a condição de submissão absorvida pela sociedade ante o Estado e a Igreja. Diante desse contexto já se fazia explicitado27 como nas publicações de Gregório XVI e de forma mais contundente nos escritos de Pio IX28 apareceu à tendência do mundo católico à rejeição ao conjunto teórico e filosófico da modernidade, pois o verdadeiro saber seria aquele que levaria ao entendimento da doutrina cristã, e consequentemente ao conhecimento de Deus. Mas em seu livro o bispo não condenava indiscutivelmente a faculdade da razão, desde que ela fosse usada de forma adequada aos olhos da Igreja, vendo na filosofia um dos meios de melhor conhecer os fundamentos da fé, e utilizando-a como arma contra os ataques da impiedade, do cisma e da heresia, esta faculdade e seu estudo deveria ser estimulado.
Dito isto, o compêndio tinha o propósito de formar religiosos direcionados numa doutrina pura, aproximando-os das teses da Santa Sé. Consequentemente, mediante forte formação moral e teológica eles estariam preparados para imprimir ao tradicional catolicismo luso-brasileiro as marcas do catolicismo romano. Nesse sentido, a aplicação da teoria gramisciniana parece adequada no presente trabalho, já que o bispo enquanto representante da casta de intelectuais tradicionais buscou combater o ''mau uso'' da faculdade da razão, empregada pelos adeptos da modernidade que compunha o grupo de intelectuais orgânicos do sistema produtor de mercadorias em ascensão no século XIX, balizando a Igreja como o escudo da tradição contra o secularismo.
2. Um bispo dividindo suas lealdades
Para entender o momento histórico e as relações que se davam nessa época, é importante lembrar o pressuposto de E. P. Thompson29 no qual o entendimento da noção de experiência torna-se essencial para suplantar a incongruência entre determinação e agir humano, pois permite capturar homens e mulheres como sujeitos que ao experimentarem suas situações e relações dentro da classe a qual integram de forma consciente, possam manusear a partir do ponto de vista de sua cultura, quais suas alternativas para escolher em uma situação determinada. Dessa maneira, através da compreensão do ambiente vivenciado é que poderemos entender atitudes e motivações, procurando, tal como Thompson, apresentar o estudo da consciência dos sujeitos e as prováveis razões para tal fenômeno social, reconstruindo a história dos indivíduos, suas tradições, seus ofícios, seus ideais e pretensões.
Logo, levando em consideração a premissa de Thompson, podemos concluir que a crença religiosa de D. José modelava suas atuações políticas; crenças essas apreendidas com o ultramontanismo de Caraça, mas devidamente temperadas pelo catolicismo tradicional e popular vivenciado no corpo da Igreja. Em conformidade com os estudos teóricos citados, outros autores também ajudaram na dissecação do tema proposto. Assim, é possível verificar a íntima relação entre o clero e a política, testemunhada por Riolando Azzi30 em suas investigações. Abrangendo a aliança entre Igreja e Estado desde o período colonial, o pesquisador retrata um profundo envolvimento dos prelados no campo político, assumindo o papel de porta-vozes oficiais. Nas primeiras legislaturas do Império, os diversos cargos políticos eram ocupados por vários representantes do clero. Nessa conjuntura, John Lynch afirma que:
O poder eclesiástico do Estado herdado do regime colonial e mantido firmemente pela monarquia brasileira no período de 1822 a 1889 produziu uma linhagem de ''padres políticos'' que deveram seu cargo aos políticos e se tornaram, na verdade, servidores do governo e parasitas sociais.31
De maneira semelhante, Françoise Souza32 expõe que em geral, os sacerdotes envolvidos com questões políticas, eram vistos como destituídos de identidade religiosa conforme secundarizavam seu múnus pastoral—mesmo não abandonando formalmente atribuição religiosa— em vista de seguir a carreira política. Além disso, Fernando Neves33 identifica uma solidariedade ativa na relação Estado-Igreja, já que a instituição religiosa necessitava dos recursos materiais fornecidos pelo Estado, assim como o Estado precisava da ramificação da Igreja —que não deixava de ser representante do poder público— para estender sua autoridade a lugares onde a presença do poder civil era diminuta.
Esse enlace também era perceptível no processo eleitoral quando o Estado usufruía da documentação referente à população local e infraestrutura física pertencente à Igreja para efetuar as eleições no Brasil Imperial. De tal modo, o próprio envolvimento dos padres na organização do pleito eleitoral34 também naturalizava sua inserção dentro da esfera civil. Portanto, é importante ressaltar que o considerável contingente de sacerdotes a se aventurar pelos caminhos da política só foi possível graças ao imbricamento existente entre o poder temporal e espiritual, não caracterizando assim um desvio do clero dos ensinamentos religiosos, mas sim a atuação por direito no interior de duas esferas que representam um único poder com duas facetas.
A amálgama das esferas civil e eclesiástica também não se apregoava apenas na ocasião de um vocacionado da batina assumir a cadeira de legislador. Essa solidariedade ativa contagiava até mesmo quem não tinha uma ligação formal com a instituição religiosa, mas que estavam embebidos com as obrigações de socorrer a religião oficial do Estado. Assim mesmo quando não jazia enfileirado nas sendas políticas, D. José expressou sua gratidão por quem ali estava propugnando medidas que beneficiasse o bom andamento do pastoreio espiritual:
Começou porém em 1851 do seculo XIX a declinar a seu accaso e felizmente tambem as ideias declinaram da marcha até então seguida; um homem appareceu nessa epocha no gabinete imperial, que conhecendo toda importância do clero, persuadiu a nosso adorado monarcha de que já era tempo de levanta-lo do batimento em que jazia, e de attender seus repetidos reclamos, e com o memoravel decreto de 11 de outubro de 1851 deu começo a obra, creando nos seminarios episcopaes novas cadeiras de ensino eclesiastico: esse homem é o Exm.o Snr. Conselheiro Euzebio de Queiroz Coutinho Mattoso Camara, a quem coube a gloria de incetar a empreza do melhoramento do clero brasileiro: estou persuadido de que o actual gabinete, que nutre estas mesmas ideias deste estadista, a levará a perfeiçaõ a que deve chegar, e tenho disto uma prova; a maioria dos representantes da naçaõ que é a expressaõ viva de seus sentimentos, acaba neste anno de orçar quantias para o melhoramento material dos seminarios, creaçaõ de duas faculdades theologicas, e augmentos da congrua dos bispos.35
Donato Mello Júnior36 afirma que quando ainda era pároco da freguesia do Engenho Velho no Rio de Janeiro, o padre José Afonso Torres requereu ao imperador duas honrarias, uma delas foi à graça da murça de cônego da capela imperial, do qual não se sabe o resultado da solicitação. Já a outra foi à concessão da mercê honorífica de Cavaleiro da Ordem de Cristo, tendo seu pedido atendido pelo imperador. Esse tipo de condecoração acabava por criar laços de fidelidade e uma elite política que gravitava em torno do governo imperial.37
Françoise Souza38 elucida que D. Pedro II se valeu desse mecanismo para consolidar o Império no Brasil, buscando manipular a seu favor os religiosos que tinham recebido a mercê. Apesar de José Afonso Torres ter sido condecorado na época do Segundo Reinado, a documentação oferece poucas pistas sobre seu comprometimento com o imperador em consequência do título honorífico, mas é certo que pelo menos na teoria, o bispo vivenciava essa dupla lealdade por meio da nomeação via ordens.
Em outro estudo, Ítalo Santirocchi39 aponta a atitude do governo imperial em nomear apenas religiosos ultramontanos para a administração das dioceses como uma estratégia para afastar os sacerdotes da política partidária, já que esses bispos conservadores, na teoria, favoreceriam a ordem e disciplinariam o clero. Entretanto D. José, apesar de não entrar em conflito direto com o Estado, em certos momentos priorizou o zelou pela diocese em detrimento das subserviências ante ao aquele. Em virtude do Padroado Régio, a Igreja deveria suportar as prerrogativas do Estado, inclusive a criação de freguesias sem a sua participação. D. José não aceitou esse postulado que desqualificava a participação da Igreja e manifesta de modo incisivo sua contrariedade:
Nenhuma freguesia será depois dessa data canonicamente considerada creada senão quando os parochos d'aquellas, donde se desmembrarão as partes para essa creação tenhão disso participação oficial nossa ou do Vigario Geral da respectiva comarca, sem o que nenhuma alteração se fará nos respectivos limites; o que determinamos para evitar os inconvenientes, que possam nascer da duvida de quaes os legítimos parochos dessa parochia.40
Como se vê, o trecho acima deixa visível a inclinação ultramontana do referido bispo, pois além de se opor a tais prerrogativas, ainda orientou os religiosos a resistirem às diretrizes oriundas do poder temporal. Ou seja, por mais que o imperador tivesse a intenção de manipular a direção espiritual a seu favor, o bispo seguiu a doutrina propugnada pela Sé de Roma, com a qual concordava. Dispondo-se mais a uma defesa desse postulado, do que a uma aprovação da tese empregada pelo poder civil como esperavam os defensores da supremacia do Estado para fazer valer seu poder de subordinar não apenas a hierarquia, mas toda Igreja.
No período compreendido pelo bispado de D. José Afonso Torres (1844-1857), ainda não é perceptível uma completa negação do envolvimento do poder civil nos assuntos eclesiásticos, o que só se deu mais tarde. Houve mais possibilidades de negociação do que de conflito devido ao ultramontanismo não sendo totalmente senhor da hierarquia católica, situação bem diversa a partir de 1860. Neves41 defende que, a partir dessa temporalidade a Igreja tem na direção das dioceses um projeto de fortalecimento do ultramontanismo e passou a criar empecilhos para dificultar a subserviência do clero ao poder civil e a política do liberalismo assentada na modernidade.
Essa época ficou marcada pelo abalo na relação entre a Igreja e o Estado impelida pela encíclica papal Quanta Cura e o Syllabus do ano de 1864, bem como o dogma da Imaculada Conceição datado de 1854. Destarte, esses documentos contribuíram sobremaneira para acirrar os ânimos entre o poder temporal e espiritual, uma vez que a Igreja, através de Pio IX, procurou maior autonomia frente ao Estado e estimulou a comunidade católica a combater a modernidade.
Considerações finais
Em decorrência dos fatos mencionados, é importante perceber que concomitantemente ao bispado, no qual o processo ultramontano começou na Amazônia, D. José envolveu-se com a política. Primeiramente em 1845, como deputado da Assembleia Legislativa do Pará, e posteriormente, como representante político da recém-criada província do Amazonas em 1851, embora lembrando que ele também foi eleito deputado pela província do Pará em 1850, apesar de que não tomou posse da cadeira. A documentação até agora revelou uma intensa preocupação do bispo com a formação e orientação dos religiosos no momento em que iam a repassar a doutrina católica aos fiéis,42 bem como as fontes de sua vida política mostraram a imagem de um religioso preocupado por os assuntos da Igreja nos momentos de execução de cargos políticos. Por exemplo, durante o mandato de deputado pela província do Amazonas na Assembleia Nacional, onde ao invés de manifestar preocupação com os grandes problemas da nova província, D. José proferiu seus discursos vislumbrando a melhorias aos negócios eclesiásticos que ele sentiu ameaçados em todo país e não apenas na província pela qual deputava.
Devido a isso, D. José não parece se encaixar na categoria de padres que se tornaram ''servidores do governo e parasitas sociais'' durante o Império (John Lynch), visto que o referido bispo se valeu dos instrumentos políticos adquiridos para auxiliar na promoção da reforma interna da Igreja que foi tão destacada nos tempos de D. Macedo. Como se vê esse trabalho busca possibilidades de levantar novas discussões e reflexões sobre a relação entre Igreja e o Estado, antes da intensificação do embate da instituição católica contra a modernidade no Brasil, tendo como destaque D. José, caracterizado por ser um bispo político, em um momento de transição da Igreja, que tentou colocar em prática ideias vindas da hierarquia católica da Europa dentro da sociedade amazônica.
Deste modo, ao analisar a conjuntura política e religiosa da época, surgiram indagações que nos levaram a maior aprofundamento sobre o ingresso do prelado diocesano na política, assim como compreender os limites do bispo ao se submeter às prerrogativas do poder temporal, além de analisar a forma como ele defendeu a autonomia da Igreja. Na qualidade de servidor do Estado como deputado provincial demonstrou a prática política do bispo servindo para alavancar a plataforma de sua missão católica.
Ao que parece, a presença do bispo da diocese do Pará na política não significou o alijamento de sua identidade religiosa, pelo contrário, sua atuação nos espaços oficiais de poder do Estado é entendida como resultado de uma cultura política assinalada fortemente pelos valores religiosos. Assim, ao mesmo tempo em que buscava garantir o monopólio da fé ao catolicismo conservador, ele também representava o Estado no papel de deputado, sempre priorizando seu múnus pastoral. Esta ainda é uma conclusão provisória. Logo, pretendemos confrontar nossa hipótese com a historiografia e as fontes existentes, tendo em mente a relevância de refinar como foi efetivada a constituição das lealdades ao trono e ao altar, mediados pelo ultramontanismo e pela modernidade.
* Este texto hace parte del proyecto ''Igreja e estado: a romanização do campo católico na Amazônia'' financiado por el CNPQ.
1. Em suma, foi em um embate que, embora protagonizado por D. Vital Oliveira (bispo de Olinda) e D. Macedo Costa (bispo do Pará), expressava a tensão entre o ultramontanismo e o regalismo imperial. Isso porque a Igreja católica por meio dos bispos tomou medidas a fim de coibir a participação de maçons nas irmandades. O Estado acabou intervindo no conflito se colocando a favor das irmandades gerando um grande mal estar na aliança entre Igreja e Estado. Em razão disso, os bispos se recursaram a aceitar a decisão do governo imperial, e foram presos em 1874. Essa situação causou grande polêmica em todo o Brasil, pois grande parte do clero e dos fieis ficaram ao lado dos bispos presos, e até mesmo o papa Pio IX saiu em defesa de D. Macedo Costa e D. vital. Apesar de terem sido anistiados no ano seguinte mediante o decreto n.o 5.993 de 17 de setembro de 1875, a relação entre Igreja e Estado não era das melhores, quando finalmente em 1890, por intermédio do decreto 119-A, foi desfeita a aliança entre a esfera civil e religiosa. Ver: Edgar Gomes, A dança dos poderes: uma história da separação Estado-Igreja no Brasil (São Paulo: D'escrever, 2009), 75-162.
2. ''ultramontanismo'' ou ''transmontanismo'' é uma expressão francesa, oriunda da associação de duas palavras latinas (ultra e montes) designando ''para além dos montes'', ou seja, dos Alpes. Dessa forma o termo começou a ser usado no século XIII, significando os papas escolhidos ao norte dos Alpes. Séculos depois a palavra passou a corresponder a uma volta para as ideias emanadas de Roma, isto é, alinhadas aos posicionamentos da Santa Sé. A nomenclatura ultramontanismo para o século XIX é a opção feita por Ítalo Santrocchi, afirmando que o vocábulo romanização foi uma conceituação utilizada mais pelos estudiosos do século XX retroagindo ao século anterior. Na prática, no Brasil os dois conceitos sinalizam o mesmo significado, qual seja: uma busca de aproximação a inspiração da Sé de Roma, o respeito à hierarquia, afiliação doutrinária com os postulados exarados pelo papa, o cuidado com os sacramentos se sobrepondo às práticas devocionais de culto dos santos e uma resistência ao liberalismo e a modernidade. Ver: Ítalo Santirocchi, Questão de consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889) (Belo Horizonte: Fino Traço, 2015), 161.
3. Nascido em Belluno em 1765 assumiu o papado durante os anos de 1831 a 1846, caracterizado pelo conservadorismo no direcionamento da Santa Sé. Ele expôs a aversão da Igreja ao liberalismo, e convidou a comunidade católica a combater a modernidade através da encíclica mirari vos arbitramus do ano de 1832.
4. Pio IX foi responsável pela intensificação do conservadorismo da Igreja católica no século XIX, cortando a relação com a esfera civil. O ápice do litígio foi questão romana durante a unificação italiana, no qual o pontífice foi um dos protagonistas quando não aceitou a perda do ''patrimônio de são Pedro'' e se declarou prisioneiro do governo italiano. Durante seu papado —entre os anos de 1846 e 1878— foi proclamado os dogmas como a Imaculada Conceição de Maria em 1854 e a infalibilidade papal em 1870.
5. José Carlos Rodrigues, ''Religiões acatólicas no Brasil'' (Memória do Livro do Centenário de 1900). Ali trata dos limites impostos aos acatólicos para exercerem a cidadania no Brasil.
6. Oscar Figueiredo Lustosa, Os bispos do Brasil e a imprensa (São Paulo: Edições Loyola, CEPEHIB, 1983).
7. Ao menos na Colômbia, Chile, Argentina, México, Peru e Venezuela existiam uma série de obrigações referentes ao sustento do culto católico, bem como a obrigação de ser católico para ocupar a principal magistratura do país. Ver: Boris Fausto e Fernando Devoto, Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002) (São Paulo: Editora 34, 2004), 215.
8. Fernando Arthur Freitas Neves, Romualdo, José e Antônio: bispos na Amazônia do oitocentos (Belém: Editora da UFPA, 2015).
9. Nascido no Rio de Janeiro, D. José Afonso de Moraes Torres foi educado pelos lazaristas —ordem religiosa referência no que tange a formação de religiosos portadores da cultura ultramontana— apartado, portanto, da tradição da formação brasileira reputada como a responsável pela formação bastante deficiente dos padres nos negócios eclesiásticos e pouco interessados nestas. Preocupado com a aplicação das orientações oriundas da Santa Sé, D. José dedicou atenção aos sacramentos e a formação de padres. Isso pode ser detectado na instituição de seminários ao longo de sua diocese que era a maior do Brasil. Mesmo com a dificuldade das grandes distancias entre uma localidade e outra na diocese do Pará, o bispo resolveu eleger alguns núcleos para executar essa política. As cidades de Manaus (Comarca e Vigária geral do alto Amazonas), Óbidos (Comarca de instancia inferior, mas localizada no médio Amazonas) e Cametá (cidade nas margens do Tocantins paraense, principal frente de interiorização da ocupação e desbravamento do território) foram comtempladas com essa distinção.
10. ''Campanha'' aqui está empregada dentro do conceito de Cecilia Mariz, como sendo um projeto de mudança religiosa ou cultural-religiosa liderada pelas lideranças da instituição, que no caso da Igreja Católica poderia ser o papa, ou mesmo os bispos. Ver: Cecília Mariz, ''Instituições tradicionais e movimentos emergentes'', em Compêndio de Ciência da Religião, org. Frank Usarski y João Décio Passos (São Paulo: Paulinas/Paulus, 2013), 306.
11. Segundo Marshall Berman, a modernidade desenvolveu uma variedade de tradições no decorrer de cinco séculos história, por isso, o autor a divide em três fases: ''Na primeira fase, do início do século XVI até o fim do século XVIII, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal fazem ideia do que as atingiu. Elas tateiam, desesperadamente, mas em estado de semicegueira, no encalço de um vocabulário adequado; têm pouco ou nenhum senso de um público ou comunidade moderna, dentro da qual seus julgamentos e esperanças pudessem ser compartilhados. Nossa segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790. Com a Revolução francesa e suas reverberações, ganha vida, de maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público. Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política. Ao mesmo tempo, o público moderno do século XIX ainda se lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro. É dessa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a idéia de modernismo e modernização. No século XX, nossa terceira e última fase, o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento''. Ver: Marshall Berman, ''Introdução: Modernidade ontem, hoje e amanhã'', em Tudo o que sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, Marshall Berman, trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti (São Paulo: Companhia das Letras, 1986), 16. Das três fases destacadas pelo autor, o presente trabalho se debruça sobre a segunda, caracterizada pela profunda dicotomia da sociedade, no qual, tanto Marx quanto Nietzsche apontavam o caráter contraditório de um mundo que estava impregnado de seu contrário. Essa instabilidade moderna atingiu incisivamente os alicerces da Igreja a partir da onda revolucionária que teve início com a Revolução francesa, ocasionando a reação da hierarquia católica no intuito de preservar sua primazia que era cada vez mais contestada pelos movimentos revolucionários na Europa do final do século XVIII até o século XIX. Ver: Edgar Gomes, A Dança dos poderes, 16.
12. Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa (São Paulo: Editorial Paulinas, 1984).
13. Grosso modo, a Igreja enquanto aparelho ideológico teria a função de manter a hegemonia da classe fundamental sobre os outros grupos sociais. Nesse sentido é importante destacar também sua autonomia relativa do aparelho de Estado, e dos outros aparelhos ideológicos, como sendo consequência de sua função hegemônica, pois em nível ideológico manifesta toda sua tradição ''de independência'', expressando sua influencia oriunda do passado.
14. No pensamento gramsciniano são identificados dois tipos de intelectuais: o orgânico e o tradicional. O intelectual orgânico é definido como um organizador da produção de um novo modo cultural, enquanto que o intelectual tradicional é caracterizado por fazer referência ao passado no intuito de dar continuidade a sua independência e hegemonia.
15. José Afonso de Moraes Torres, ''Treze de Maio'', Belém, 3 do outubro, 1846, http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=700002&pasta=ano%20185&pesq=Bispo.
16. José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996).
17. Lembrando que os indivíduos com plenos direitos de votos constituíam uma pequena parte da população já que segundo o artigo 92 da Constituição de 1824 eram excluídos de votar: ''1. Os menores de 25 anos, nos quais se não compreendem os casados e oficiais militares que forem maiores de 21 anos, os bacharéis formados e clérigos de ordens sacras. 2. Os filhos-famílias que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem ofícios públicos. 3. Os criados de servir, em cuja classe não entram os guardas-livros e primeiros caixeiros das casas de comércio, os criados da casa de comércio, os criados da casa imperial que não forem de galão branco e os administradores das fazendas rurais e fábricas. 4. Os religiosos e quaisquer que vivam em comunidade claustral. 5. Os que não tiverem renda líquida anual 100 000 por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos''.
18. Américo Jacobina Lacombe, O clero no parlamento brasileiro. Câmara dos Deputados (1843-1862). (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979), 450.
19. O monopólio da propagação da fé por parte da Igreja no Estado era garantido pelo Padroado Régio. Apesar da carta constitucional de 1824 permitir no Brasil a existência de outras religiões que não fosse a católica, acabava limitando ao culto doméstico a expressão dessas outras formas religiosas, como se vê no artigo 5: ''A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo''.
1. José Murilo de Carvalho, A construção da ordem.
21. Francisco Iglésias, ''A vida política, 1848-1866'', em História geral da civilização brasileira, org. Sérgio Buarque de Holanda (São Paulo: Difel, 1969); y Vera B. Alarcón Medeiros, ''Incompreensível colosso: a Amazônia no início do Segundo Reinado (1840-1850)'' (tese de doutorado em Estado e sociedade na América e África, Universidade de Barcelona, 2006).
22. O capitão norte-americano Robert Nesbit iniciou sua ação na Amazônia por meio da distribuição de bíblias à população ribeirinha, tornando-se um dos primeiros a tentar disseminar o protestantismo pela região. Com isso, D. José Afonso Torres mostrou toda sua aversão à tentativa de penetração do protestantismo na região amazônica por meio da carta pastoral de 1857. Ver: Allan Andrade e Fernando Arthur Freitas Neves, ''A romanização no Pará: D. Afonso Torres e as atribulações de governar espiritual e materialmente a diocese'', Revista Eletrônica Documento/Monumento Vol: 10 n.o 1 (2013): 12-23.
23. João Santos, ''A romanização da Igreja católica na Amazônia (1840-1880)'', em História da Igreja na Amazônia, org. Eduardo Hoornaert (Petrópolis: Editorial Vozes, 1992), 301.
24. João Santos. ''A romanização da.Igreja'', em História da Igreja, org. Eduardo Hoornaert, 450.
25. Caraça é considerado o reduto do conservadorismo católico, onde os padres lazaristas contribuíram significativamente para a introdução do ultramontanismo no Brasil.
26. José Afonso de Moraes Torres, Compêndios de Philosophia Racional (Belém: Typ. de Santos & Filho, 1852), 55.
27. Ivan Aparecido Manoel, O pêndulo da História. Tempo e eternidade no pensamento católico (1800-1960) (Maringá: Eduem, 2004).
28. Promulgado por Pio IX em 1864, o Syllabus condenava 80 erros que contrariavam a doutrina católica na época, entre eles a o papa condenava a seguinte visão sobre a razão: ''A razão humana, considerada sem relação alguma a Deus, é o único árbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, é a sua própria lei e suficiente, nelas suas forças naturais, para alcançar o bem dos homens e dos povos''.
29. Edward Palmer Thompson, ''A economia moral da multidão inglesa no século XVIII'', em Costumes em comum, Edward Palmer Thompson (São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998).
30. Riolando Azzi, ''A instituição eclesiástica durante a primeira época colonial'', em História da Igreja no Brasil, tomo II, org. Eduardo Hoornaert (Petrópolis: Editorial Vozes), 1983.
31. John Lynch, ''A Igreja católica na América Latina, 1830-1930'', em História da América Latina, Vol. IV, org. Leslie Bethell (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001), 415-48.
32. Françoise Jean de Oliveira Souza, ''Sotainas políticas do Império: breve análise do fenômeno eleitoral do clero e de sua atuação no parlamento brasileiro (1823 a 1841)'', apresentação, XII Simpósio da ABHR, Juiz de Fora, Minas Gerais, 2011, 1-22.
33. Fernando Arthur Freitas Neves, ''Solidariedade e conflito: Estado liberal e nação católica no Pará sob o pastorado de Dom Macedo Costa (1862-1889)'' (tese de doutorado em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009).
34. Mesmo a esfera civil ter sido confundindo com a esfera religiosa, vale ressaltar que durante o século XIX foram criadas leis que gradativamente inibiram a participação do clero no processo político, como por exemplo, a lei 387 de 19 de agosto de 1846, em que afastava o pároco da Mesa Paroquial, à qual estava incumbida de reconhecer a identidade dos votantes.
35. José Afonso de Moraes Torres, ''Estrella do Amazonas'', Manaós, 4 de fevereiro, 1854, http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=213420&pasta=ano%20185&pesq=prelado%20diocesano.
36. Donato Mello Júnior, ''Dom José Afonso de Morais Torres. Nono bispo do Pará (1844-1859)'', Revista do instituto histórico e geográfico do Brasil Vol: 28 (1980): 5-22.
37. Camila Borges da Silva, ''As comendas honoríficas e a construção do Estado Imperial (1822-1831)'', apresentação, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, 2011, 1-12.
38. Françoise Jean de Oliveira Souza, ''Do Altar a Tribuna. Os padres na formação do Estado Nacional brasileiro (1823-1841)'' (tese de doutorado em Histórica Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010).
39. Ítalo Santirocchi, ''Afastemos o Padre da Política! A despolitização do clero brasileiro durante o Segundo Império'', Mneme Vol: 12 n.o 29 (2011): 187-207.
40. José Afonso de Moraes Torres, Collecção de algumas circulares e portarias mais importantes de S. Ex.a Reverendissima o Senhr. Bispo do Pará (Belém: Typ. de Santos & Filho, 1856), 23.
41. Fernando Arthur Freitas Neves, ''Estado e Igreja: cumplicidades e tensões do catolicismo no Pará no final do século XIX'', em Faces da História da Amazônia, org. Maria Roseane Pinto Lima (Belém: Paka-Tatu, 2006), 83-126.
42. Isso se tornou evidente quando D. José declarou: ''Convencidos da necessidade de darmos ao Rd.os Parochos as principaes regras, que devem observar na administração do Sacramento do Matrimonio, para evitar assim abusos, que possão nascer do esquecimento das mesmas, não podemos cumprir melhor este nosso dever do que mandando que se observem neste Bispado as sabias instrucções, que em suas pastoraes dirigirão aos Rd.os Parochos de suas Dioceses os illuestrados Prelados do Rio de Janeiro e Maranhão, que com esta mandamos publicar, dando-lhes preceitos e instrucções para a celebração do Matrinonio''. Dessa forma, a preocupação do bispo com os abusos cometidos pelos fieis que contraíam matrimônio era evidente, porém mais do que isso, ele procurou sintonizar os padres da diocese de acordo com os ensinamentos dos presbíteros de outros bispados, articulando de alguma forma a maneira de direcionar sua administração eclesiástica a outros governos espirituais do Império. Portanto, a orientação provinda do prelado diocesano aos sacerdotes da Amazônia (principalmente ao clero secular) era fundamental para colocar o rebanho cristão no caminho da doutrina católica, mesmo essa cultura conservadora se caracterizando pelo distanciamento da realidade local. Ver: José Afonso de Moraes Torres. Collecção de algumas circulares.
Bibliografía
Fuentes primarias
Archivos
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Libros
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Thompson, Edward Palmer. ''A economia moral da multidão inglesa no século XVIII''. Em Costumes em comum, Edward Palmer Thompson. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
Resumo
As relações entre Estado e Igreja foram desgastadas nos embates das visões de mundo no decorrer do século XIX, resultando na ruptura da aliança trono-altar, com um progressivo aumento da busca pela autonomia da Igreja. Durante os anos 40 e 50 essa tensão entre os dois poderes ainda não havia transbordado, particularmente na Amazônia. Partilhavam os membros da Igreja católica do exercício de gestão do Estado por meio dos pleitos eleitorais e da confirmação nas funções regulares de escrituração pública nos livros de paroquia, quanto na oferta dos serviços pastorais e simbólicos. O presente trabalho visa demonstrar a intervenção de D. José Afonso de Moraes Torres, continuador na diocese do Pará, da feição do catolicismo conservador em sintonia com Santa Sé, em consonância com a introdução das teses do ultramontanismo em curso no Brasil. Esse pastorado cuidou de implantar medidas de reforma da católica prestando maior acento aos sacramentos, como fica evidente em sua atuação quando foi membro do parlamento nacional.
Palavras-chave:
D. José, Igreja, política, ultramontanismo.Abstract
Relations between church and state were worn in clashes of worldviews in the course of the nineteenth century, resulting in the breaking of the covenant throne-altar, with a progressive increase in the search for the autonomy of the Church. However, this tension between the two powers had not yet overflowed during the 40s and 50s, particularly in the Amazon. They shared the members of the Catholic Church from the state management exercise by means of elections and confirmation in the regular functions of public bookkeeping in the parish books, as in the provision of pastoral and symbolic services. This study aims to demonstrate the intervention of D. José Afonso de Moraes Torres, continuer in the Diocese of Pará the feature of conservative Catholicism in tune with the Holy See, in line with the introduction of ultramontanism of theses underway in Brazil. This pastoret took care of deploying Catholic reform measures to give greater emphasis to the sacraments, as evidenced by his performance when he was a member of the national parliament.
Keywords:
D. José, church, policy, Ultramontanism.Introdução
O estudo em tela tem o objetivo de analisar o posicionamento do 9o bispo do Pará, José Afonso de Moraes Torres, em face do conjunto dos negócios do Estado, levando em consideração o envolvimento com as eleições públicas, bem como sua formação moral e teológica sem olvidar sua atuação pastoral -de inclinação ultramontana-dentro da diocese do Pará, no intuito de compreender a inserção da hierarquia católica na política sob o prisma do prelado diocesano durante seu bispado (1844-1857).
A erosão existente entre Igreja e Estado proveniente da corrosão dos alicerces que sustentavam o antigo regime desde a época da Revolução francesa, não foi implacável no Brasil. Mal grado a sociedade amazônica se deparou com uma série de medidas pautadas nos preceitos ultramontanos antes da tão propalada ''Questão Religiosa''1, ainda não era um momento de completo antagonismo entre o poder temporal e espiritual, porquanto nos anos 40 e 50 do século XIX a esfera eclesiástica não se via apartada esfera civil no que diz respeito à realidade da província do Grão-Pará.
De todo modo que os contrassensos mais dissonantes das duas esferas pareciam estar em estado de dormência. No entanto, já se observava nas atitudes do bispo D. José o intuito de sintonizar o seu bispado aos ventos do ultramontanismo,2 mostrando-se, em certa medida, em harmonia com as ideias difundidas pelos papas Gregório XVI3 e Pio IX.4 Dom José buscou cativar audiência para as teses ultramontanas utilizando o instrumento moderno de formação de opinião no século XIX -a imprensa- ainda não era a imprensa católica por excelência que se cristalizou no início do século XX. Entretanto propiciou a formação de tribunas jornalísticas nas colunas e artigos de seus simpatizantes nos periódicos existentes no Pará, nas quais apresentava as diretrizes para sua diocese referente à doutrina e costumes da sociedade tradicional em oposição à esfera da secularidade promovida pela modernidade.
Exemplo de comparação entre as relações tensas no século XIX entre Estado e Igreja, é o caso do México, já constituído em república desde a Independência, pois embora tenha tido um pequeno tempo sobre a forma do Império de Maximiliano, retornou ao regime da república. Ali as disputas entre liberais e a Igreja foram intensificadas a partir de 1860. Em efeito a Igreja protestou contra a subtração do que considerava seus direitos como controle sobre suas propriedades, ensinar a religião comforme os preceitos dos bispos diocesanos, e dirigir em plenitude seminários assentados na cultura religiosa da romanização, para fazer valer os sacramentos de inscritos com os registros respectivos de batismo, casamento e morte ao invés dos registros civis como sustentavam os liberais. Essa discussão foi bem tratada por José Gutierrez Casillas na obra de ''Jesuitas em México durante século XIX''.
Se os países libertos do domínio colonial ergueram repúblicas como regime, nem por isso a influência da Igreja declinou de todo, antes uma série de privilégios continuaram nas Constituições, por exemplo, a obrigatoriedade da condição de ser católico para ser presidente nas repúblicas latinomaericanas. As chamadas religiões acatólicas denunciaram essas características.5 Graças ao regime do padroado confirmado como legado na Constituição brasileira de 1824, o monopólio de fé do catolicismo propiciou a manutenção da catolicidade como cultura religiosa formalmente aceita. Devido à falta de maior unidade orgânica, as dioceses não conseguiram plasmar ''uma folha oficial ou oficiosa para defender a Igreja'' como sustenta Diego Oliveira, nem por isso as teses apolegéticas do catolicismo ultramontano deixaram de ser difundidas.
As circulações de ideias que eram muito variadas, podiam ser em pequenas ou grandes tiragens, participaram da disputa na modelagem da civilização do século XIX. Desde a década de 1830 existiram muitos periódicos simpatizantes das ideias católicas na província do Pará, entretanto é só partir de 1870 que os periódicos das dioceses de todo Brasil ganharam uma expressão até então inexistente, dirigidos com forte caráter apologético de imprensa católica. Contudo durante o bispado de D. José não existia a efetiva concorrência da imprensa propriamente anticatólica como foi visto a partir da década de 1870. Os estudos de Oscar Lustosa sobre como foi formada a imprensa do catolicismo no século XIX até alcançar a forma sistêmica de existir foi fruto de uma longa trajetória de práticas e reflexões sobre a importância desse instrumento para a disputa das consciências.6
O século XX assistiu um direcionamento do episcopado no Brasil na articulação da Liga da Boa Imprensa em 1909 no qual definiu propriamente a orientação jurídica e pastoral, bem como o detalhamento de estatutos e regulamentos. Este processo tomou como exemplo a experiência europeia daquela intelectualidade católica que investiu na profissionalização, deixando pra trás o caráter artesanal de quando atuava D. José no exercício pastorado. D. José buscava colocar em prática na Amazônia o plano de reforma da Igreja católica que ganhava cada vez mais espaço dentro da Europa em meados do século XIX. Porém, simultaneamente ao seu bispado, o prelado diocesano estava envolvido com a política, sendo eleito a cargos públicos de prestígio regional e nacional. Diante disso, procura-se compreender a atuação do referido bispo aliando a atividade político-parlamentar às suas atribuições religiosas, em um contexto que não havia a cisão entre Igreja e Estado, porem aquela proclamasse um crescente receio com a secularização da sociedade, a qual contribuiu para o estremecimento da aliança entre trono e altar, gerando o conflito na década de 1870. Por conseguinte, busca-se examinar como se processava as relações entre a instituição eclesiástica, o Estado e a população, no intuito de entender a complexa ligação entre o campo religioso e político, sempre associando ao âmbito nacional e internacional.
1. D. José e a política
Na América latina, desde a década de 1820, houve uma ruptura provocada pela separação das colônias ibéricas de suas metrópoles através de arranjos institucionais, levando a Igreja católica a enfrentar uma nova realidade política, cuja característica era a superação do poder colonial, e a articulação de um poder secular fundado cada vez menos na moral religiosa e mais na moral política -predominante republicana- à exceção do Brasil que se constituiu como Império. Mesmo assim, a Igreja continuou a exercer influência dentro no mundo latino-americano,7 pois constitucionalmente o catolicismo seguiu desfrutando dos privilégios relacionados ao regalismo ibérico.8
Em meio a isso, quando analisamos a perspectiva política do bispo D. José,9 em a tentativa de reforma interna da Igreja católica em meados do século XIX na Amazônia, percebemos ser esta intervenção ajustada ao ideário de reforma social e moral. À vista disso, é fundamental examinar o momento de transição pelo qual passava a Igreja, no qual ainda não era tão notório o direcionamento romano no intuito de afastar os prelados do envolvimento com os negócios civis, e consequentemente das disputas eleitorais. Diferente do que o que aconteceu mais tarde (a partir da década de 1860), quando a Igreja estava concentrada mais na empreitada católica romana do que na questão nacional. Concernente a esse debate é importante destacar a conceituação de ultramontanismo, caracterizando-o como uma campanha10 dirigida pela hierarquia eclesiástica que pretendia afastar a Igreja do poder temporal na figura do imperador e aproxima-la das ordens da Santa Sé, bem como reagir contra certas correntes teológicas e eclesiásticas e a todo o conjunto da modernidade11 que de alguma forma colocasse em risco a hegemonia católica.
Nesse sentido, Ivan Manoel define o ultramontanismo como um conjunto de medidas teórico e práticas alicerçadas na condenação a modernidade em seu conjunto (sociedade, política, economia, cultura) tendo a medievo como paradigma. Ali se concentraram o das atitudes da Igreja em Roma, reforçando a infalibilidade papal -obretudo após o estabelecimento dessa diretriz como dogma após o Concilio do Vaticano I em 1870-; valorizando o episcopado; e reforçando o magistério retomando o tomismo, considerado pela Igreja a única filosofia necessária para o cristão. Para ajudar a traduzir os significados das mudanças e entender as relações dessa época é de suma importância salientar algumas categorias do pensamento gramsciniano para inquirir as relações sociais da Igreja dentro da sociedade civil. A detenção do poder político na modernidade está sob a primazia do Estado e não mais da Igreja como era no medievo, restando a esta acomodar-se como membro qualificado da sociedade civil.
De acordo com Antonio Gramsci ''a história dos partidos e das tendências políticas não podem ser separada daquela dos grupos e das tendências religiosas''12. Então, a partir da identificação da Igreja como aparelho ideológico13 é possível definir suas relações com a política, na medida em que ambos apresentam uma estreita dependência aventada pela existência de castas de intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos.14 A oposição ideológica entre a aristocracia escravista-fundiária (tendo como interposto a Igreja) e a burguesia em via de modernização (por intermédio da franco-maçonaria) mostrou a situação do aparecimento de novas castas em conflitos com as forças tradicionais.
Insatisfeito com o fornecimento do poder civil de meios materiais necessários à Igreja, D. José se empenhou na busca pela defesa da dignidade do clero num cenário de subjunção frente ao Estado. O bispo nem sempre obteve sucesso nas candidaturas a deputado provincial como foram os pleitos de 1854 e 1856; tão pouco venceu a disputa eleitoral para o Senado em 1855. Entretanto, pouco mais de um ano depois de sua entronização a frente da diocese, D. José foi eleito deputado da Assembleia Legislativa do Pará em 1845, sendo o segundo mais votado dentre os 28 eleitos, tomando posse em 1846:
Achando-se sobre a Mesa o Diploma do Exm.o Snr. D. José Affonso de Moraes Torres, he entregue á Commissão de Poderes para o examinar. Retira-se a Commissão para a Sala respectiva, e dahi a pouco volta com o seguinte parecer: ''A Commissão de Constituição, e Poderes, examinando o Diploma do Exm.o e Reverendissimo Snr. D. José Affonso de Moraes Torres, Deputado eleito á esta Assembléa Legislativa Pronvincial do Pará 14 setembro de 1846. José Joaquim Pimenta Magalhães - Jose de Napoles Telles de Menezes.15
A repentina eleição de D. José Afonso Torres é curiosa quando se considera o fato dele não possuía um vínculo de nascimento com a província do Pará. Nesse sentido entra em cena a ideia de José Murilo de Carvalho16 referindo-se aos padres como lideres populares em potencial havendo, portanto, um vínculo religioso que provavelmente lhe proporcionou a elegibilidade ou pelo menos garantiu a simpatia perante os indivíduos incumbidos de votar.17 Essa aproximação junto ao colégio de eleitores que excluía pobres, mulheres (apesar de terem propriedade e renda) e os escravos por não terem cidadania foi confirmada quando, entre outros atos, em 1845 D. José caracteriza-se por ser um bispo que sai dos muros da Igreja e ia ao encontro do seu rebanho espiritual na ocasião das visitas pastorais, a fim de pregar o catolicismo ultramontano nos meses antecedentes às eleições para a cadeira de deputado.
A eleição de D. José para a Assembleia Provincial do Pará no ano de 1845 não foi algo isolado, em razão de outros três sacerdotes -padre Prudêncio José das Merces Tavares, padre Victorio Procopio Serrão do Espirito Santo e o chantre Raymundo Severino de Mattos- também ganharam a batalha eleitoral, mostrando o quanto ainda estava incrustada a participação político eleitoral na vida dos religiosos da diocese. É importante salientar que D. José teve uma participação discreta quando foi deputado pela província do Pará, pois apesar de sua razoável assiduidade nas sessões do parlamento provincial, poucos são os registros de sua manifestação durante os debates acalorados a respeito de projetos, requerimentos e indicações. Naquele tempo o seu mandato foi pouco expressivo, justificado talvez pela pouca experiência na cultura parlamentar devido tratar-se de ser aquele seu primeiro mandato.
Essa hipótese é reforçada pelo insucesso do bispo diocesano nas candidaturas a deputado provincial do Pará em 1854 e a senador em 1855, sugerindo uma aceitação tênue dos eleitores aos projetos apresentados, provavelmente, devido à acentuada predileção às questões relativas à Igreja como aumento côngruas, verbas para matriz e seminários em detrimento de outras propostas como as apresentadas pelo deputado por Pernambuco, padre Venâncio, ao protagonizar a defesa pela transposição do Rio S. Francisco e sobre a navegação a vapor. Em resumo as propostas do bispo eram mais paroquias, enquanto as do padre eram mais gerais.
Apesar de estar disposto a assumir outras cadeiras no parlamento, não obteve o sucesso desejado alcançando um número de votos pouco expressivo e inferior a de outros sacerdotes que também concorriam aos mesmos ofícios políticos. Conquanto, esses mencionados percalços em sua trajetória parlamentar, D. José conquistou uma cadeira dos eleitores ao ser escolhido deputado provincial em 1850. O fato de ter sido o 21 dentre 28 deputados eleitos -tendo uma quantia de votos bem abaixo se comparado aos de sua primeira eleição- refletiu uma diminuição no prestígio político do bispo. Além disso, o compromisso com a missão espiritual o levou a renunciar ao cargo político, a fim de se dedicar as visitas pastorais pelo sertão da Amazônia entre julho de 1850 a Abril de 1851.
Situação diferente ele vivenciou quando foi eleito deputado pela província do Amazonas à Assembleia Nacional em 1851, quando expectava boas possibilidades de lograr recursos capazes de atender as necessidades da Igreja. Nessa legislatura (1849-1852) o bispo diocesano não teve uma participação destacada como o experiente padre político Venâncio Henriques de Resende, mas José Afonso Torres chegou a propor alguns artigos aditivos ao orçamento. Um exemplo disso foi à solicitação de quantia em dinheiro para reedificação da matriz de Nossa Senhora do Rio Negro. O bispo político também proferiu discurso chamando atenção para o problema da baixa remuneração (côngruas) oferecida aos membros do clero:
Um cônego, por exemplo, como o do Pará, com uma côngrua de 450$, não sei como possa pagar aluguel de casa, alimentar-se, vestir-se de uma maneira conveniente ao seu estado e hierarquia, sendo obrigado a apresentar-se na duas vezes por dia. Como é possível que um pároco com uma côngrua de 400$ ou de 300$ possa fazer a despesa com seu sustento e vestuário, socorrer à pobreza que lhe bate a porta e que lhe pede esmola como um dever de justiça e não de caridade devendo, além disto, ter condução pronta para acudir, de noite e de dia, com os sacramentos aos fieis.18
O cotidiano do parlamento brasileiro mostrou uma distinção entre os objetivos advogados pelos padres e pela hierarquia católica, porque para a eficácia do projeto ultramontano do bispo diocesano -cuja reforma interna da Igreja deveria começar pela formação de um clero ajustado com a tese da Santa Sé- era imprescindível seu comprometimento com a causa dos padres, principalmente no tocante a remuneração dos clérigos, apontando o valor da côngrua como o ensejo da dificuldade de sobrevivência dos sacerdotes e consequentemente da pouca eficiência em suas atividades eclesiásticas. Não obstante, o baixo valor pago aos sacerdotes também era usado como pretexto para a dedicação do clero as atividades públicas de natureza temporal, contudo, mesmo com essas dificuldades, não se pode esquecer que nessa época era frequente a entrada de religiosos na estrutura política do Estado.
No momento de transição da regência para o segundo reinado, a posição da Igreja frente à política estava inserida na lógica do Padroado Régio.19 Com o tempo, houve um progressivo afastamento dos religiosos na vida política imperial, mormente a após 1840.20 Já entre as legislaturas de 1843 e 1860, a diminuição dos sacerdotes no parlamento se deu apenas de forma sensível. Por meio dos estudos21 construímos os parâmetros da problematização e contextualização do período, reconhecendo as linhas de força da modernização do Estado, ampliação da burocracia inerente com esta modernização e os contrapontos da Igreja e da incipiente sociedade civil presentes naquela ambiência. Entre elas a questão dos liberais, que durante o período de 1840 a 1850 procuraram se estabelecer, sobretudo no que tange aos cargos para presidentes das províncias quanto ao número dos seus componentes na Assembleia. Eles se destacaram em 1840, apoiando a articulação da maioridade de D. Pedro II para assumir o poder, revertendo o predomínio dos conservadores na época da Regência.
Segundo Francisco Iglésias, nessa época ainda estava se construindo o ''espírito partidário'' no Brasil. Dessa maneira, foi habitual em meados do XIX a alternância partidária de liberais e conservadores para a eleição e manutenção dos seus ideais particulares em detrimento a qualquer tipo de fidelidade partidária, sendo fortes as divergências regionalistas dentro de um mesmo partido. Durante grande parte de sua estada no poder os liberais não apresentavam unidade de pensamento. Mesmo estes tendo a pretensão de se aproximarem da figura do imperador, as discordâncias existentes no interior do governo dos liberais facilitaram a reaproximação do aquele aos conservadores.
Em virtude disso, as eleições de 1850 foram bastante significativas, já que marcam a queda da maioria liberal no poder desde 1844 e a ascensão conservadora. Importante salientar que em meio a um momento onde existe mundialmente uma tendência a maior participação dos liberais na conjuntura política de seus respectivos locais, por aqui a situação foi diferente, na medida em que os conservadores ganhou espaço, sendo um paralelo disso a própria eleição de D. José. Além, o contexto nacional de 1850 havia sido marcado pela criação da província do Amazonas (do qual D. José havia sido eleito deputado em 1851) que embora ainda se mostrasse dependente de Belém, compreendia a significação de um novo corpo político no Império.
Ademais, o risco das invasões estrangeiras preocupava as elites interessadas em confirmar o poder político sob o território, tendo como aliada a Igreja para ratificar esta identidade, mormente na fronteira com as colônias dos países protestantes, como Inglaterra e Holanda, na Calha Norte, além das possíveis investidas dos Estados Unidos de América para negociar com Peru, Colômbia e Bolívia. Assim sabendo D. José que tinha que conviver com essas incursões estrangeiras que afetavam o tecido político-religioso na Amazônia, se valendo do seu prestígio enquanto líder da Igreja na região ao condenar22 a distribuição de bíblias protestantes na região. Dessa forma, ao verificar a documentação sobre o referido assunto, podemos perceber sua intervenção no parlamento conclamando que para uma melhoria dos serviços prestados pela Igreja era necessário atender aos seus reclamos. D. José Afonso denunciou da tribuna a fragilidade do clero ao se vê compelido a favorecer condutas ruinosas, tanto quanto declarou seu compromisso em recusar a colaboração com certa modernidade ao expressar seu inconformismo com o tratamento disferido à Igreja cujo fim era subordina-la ao Estado e aos poderosos.
O padre acusou como o tratamento oferecido pelo poder civil para com os sacerdotes os tornou presas daquele sistema que vilipendiava a condição do sacerdócio pela dependência que muitas vezes os padres assumissem perante a classe dominante, acarretando na corrupção e destruição de toda a vida espiritual do clero. Tal interpretação foi acolhida por João Santos (1992),23 estudioso da Igreja, ao destacar a participação do bispo no parlamento. O excerto de seu dramático discurso feito na legislatura de 1851 não deixa dúvida sobre a importância em atender as reivindicações históricas do clero pela revisão das côngruas:
Não dar-lhe um ordenado suficiente para sua sustentação é aniquilá-lo, é despi-lo de todo prestígio, e até cativá-lo em seu ministério, porque um funcionário público que sê vê na necessidade de mendigar o pão, vê-se também muitas vezes na necessidade de sacrificar sua consciência e seu dever ao interesse e à vontade dos ricos de quem depende.24
Lacombe elucida o discurso de D. José como produto do momento eclesiástico da época, quando o bispo denunciou a dependência do padre com respeito aos ricos, propondo a remediação dessa situação; doravante com a reforma da legislação o sustento satisfatório dos presbíteros por parte do poder civil, reduziu assim os riscos de os sacerdotes ficarem a mercê dos poderosos da paróquia. Em face disso, o bispo parece não se incomodar com a dependência do Estado no que diz respeito ao fornecimento dos bens materiais e dos ordenados. Nem poderia ser diferente. Esta postura vai ao encontro do regime do padroado, afinal era de obrigação do poder civil garantir financeiramente a manutenção dos templos e o sustento dos sacerdotes. O incomodo declarado pelo bispo foi devido à baixa remuneração oferecida aos padres possibilitando a composição de compromissos alheios ao interesse público e suas possíveis consequências para o pastoreio de almas.
Com efeito, não pode ser negligenciado o grau de instrução do prelado diocesano para compreender seu modo de proceder seja no parlamento, seja na diocese. D. José Torres foi professor de Filosofia e Retórica no Seminário de Caraça,25 em Minas Gerais, local onde realizou parte de sua formação. Essa estrutura intelectual lhe permitiu publicar em 1852, o Compendio De Philosophia Racional. Nessa obra, é possível perceber a visão de mundo do bispo, dotada de forte caráter doutrinário, moral e religioso. No trecho abaixo, ele expõe seu pensamento sobre a razão:
A rasão por si mesma não leva ninguem ao erro; por quanto a rasão é a faculdade de perceber distinctamente o nexo das verdades, ora quem assim percebe a ligação que há entre as verdades, tira legitimas illações de princípios verdadeiros, não pode por conseguinte errar: todo o erro por tanto nasce não do uso da rasão, mas de seo abuso, e por isso, quando dividimos a rasão em recta, e não recta, só queremos com isto significar que se dá abuso da rasão [...].26
Vale lembrar que a razão foi designada pelo liberalismo como instrumento de reflexão sobre a condição de submissão absorvida pela sociedade ante o Estado e a Igreja. Diante desse contexto já se fazia explicitado27 como nas publicações de Gregório XVI e de forma mais contundente nos escritos de Pio IX28 apareceu à tendência do mundo católico à rejeição ao conjunto teórico e filosófico da modernidade, pois o verdadeiro saber seria aquele que levaria ao entendimento da doutrina cristã, e consequentemente ao conhecimento de Deus. Mas em seu livro o bispo não condenava indiscutivelmente a faculdade da razão, desde que ela fosse usada de forma adequada aos olhos da Igreja, vendo na filosofia um dos meios de melhor conhecer os fundamentos da fé, e utilizando-a como arma contra os ataques da impiedade, do cisma e da heresia, esta faculdade e seu estudo deveria ser estimulado.
Dito isto, o compêndio tinha o propósito de formar religiosos direcionados numa doutrina pura, aproximando-os das teses da Santa Sé. Consequentemente, mediante forte formação moral e teológica eles estariam preparados para imprimir ao tradicional catolicismo luso-brasileiro as marcas do catolicismo romano. Nesse sentido, a aplicação da teoria gramisciniana parece adequada no presente trabalho, já que o bispo enquanto representante da casta de intelectuais tradicionais buscou combater o ''mau uso'' da faculdade da razão, empregada pelos adeptos da modernidade que compunha o grupo de intelectuais orgânicos do sistema produtor de mercadorias em ascensão no século XIX, balizando a Igreja como o escudo da tradição contra o secularismo.
2. Um bispo dividindo suas lealdades
Para entender o momento histórico e as relações que se davam nessa época, é importante lembrar o pressuposto de E. P. Thompson29 no qual o entendimento da noção de experiência torna-se essencial para suplantar a incongruência entre determinação e agir humano, pois permite capturar homens e mulheres como sujeitos que ao experimentarem suas situações e relações dentro da classe a qual integram de forma consciente, possam manusear a partir do ponto de vista de sua cultura, quais suas alternativas para escolher em uma situação determinada. Dessa maneira, através da compreensão do ambiente vivenciado é que poderemos entender atitudes e motivações, procurando, tal como Thompson, apresentar o estudo da consciência dos sujeitos e as prováveis razões para tal fenômeno social, reconstruindo a história dos indivíduos, suas tradições, seus ofícios, seus ideais e pretensões.
Logo, levando em consideração a premissa de Thompson, podemos concluir que a crença religiosa de D. José modelava suas atuações políticas; crenças essas apreendidas com o ultramontanismo de Caraça, mas devidamente temperadas pelo catolicismo tradicional e popular vivenciado no corpo da Igreja. Em conformidade com os estudos teóricos citados, outros autores também ajudaram na dissecação do tema proposto. Assim, é possível verificar a íntima relação entre o clero e a política, testemunhada por Riolando Azzi30 em suas investigações. Abrangendo a aliança entre Igreja e Estado desde o período colonial, o pesquisador retrata um profundo envolvimento dos prelados no campo político, assumindo o papel de porta-vozes oficiais. Nas primeiras legislaturas do Império, os diversos cargos políticos eram ocupados por vários representantes do clero. Nessa conjuntura, John Lynch afirma que:
O poder eclesiástico do Estado herdado do regime colonial e mantido firmemente pela monarquia brasileira no período de 1822 a 1889 produziu uma linhagem de ''padres políticos'' que deveram seu cargo aos políticos e se tornaram, na verdade, servidores do governo e parasitas sociais.31
De maneira semelhante, Françoise Souza32 expõe que em geral, os sacerdotes envolvidos com questões políticas, eram vistos como destituídos de identidade religiosa conforme secundarizavam seu múnus pastoral-mesmo não abandonando formalmente atribuição religiosa- em vista de seguir a carreira política. Além disso, Fernando Neves33 identifica uma solidariedade ativa na relação Estado-Igreja, já que a instituição religiosa necessitava dos recursos materiais fornecidos pelo Estado, assim como o Estado precisava da ramificação da Igreja -que não deixava de ser representante do poder público- para estender sua autoridade a lugares onde a presença do poder civil era diminuta.
Esse enlace também era perceptível no processo eleitoral quando o Estado usufruía da documentação referente à população local e infraestrutura física pertencente à Igreja para efetuar as eleições no Brasil Imperial. De tal modo, o próprio envolvimento dos padres na organização do pleito eleitoral34 também naturalizava sua inserção dentro da esfera civil. Portanto, é importante ressaltar que o considerável contingente de sacerdotes a se aventurar pelos caminhos da política só foi possível graças ao imbricamento existente entre o poder temporal e espiritual, não caracterizando assim um desvio do clero dos ensinamentos religiosos, mas sim a atuação por direito no interior de duas esferas que representam um único poder com duas facetas.
A amálgama das esferas civil e eclesiástica também não se apregoava apenas na ocasião de um vocacionado da batina assumir a cadeira de legislador. Essa solidariedade ativa contagiava até mesmo quem não tinha uma ligação formal com a instituição religiosa, mas que estavam embebidos com as obrigações de socorrer a religião oficial do Estado. Assim mesmo quando não jazia enfileirado nas sendas políticas, D. José expressou sua gratidão por quem ali estava propugnando medidas que beneficiasse o bom andamento do pastoreio espiritual:
Começou porém em 1851 do seculo XIX a declinar a seu accaso e felizmente tambem as ideias declinaram da marcha até então seguida; um homem appareceu nessa epocha no gabinete imperial, que conhecendo toda importância do clero, persuadiu a nosso adorado monarcha de que já era tempo de levanta-lo do batimento em que jazia, e de attender seus repetidos reclamos, e com o memoravel decreto de 11 de outubro de 1851 deu começo a obra, creando nos seminarios episcopaes novas cadeiras de ensino eclesiastico: esse homem é o Exm.o Snr. Conselheiro Euzebio de Queiroz Coutinho Mattoso Camara, a quem coube a gloria de incetar a empreza do melhoramento do clero brasileiro: estou persuadido de que o actual gabinete, que nutre estas mesmas ideias deste estadista, a levará a perfeiçaõ a que deve chegar, e tenho disto uma prova; a maioria dos representantes da naçaõ que é a expressaõ viva de seus sentimentos, acaba neste anno de orçar quantias para o melhoramento material dos seminarios, creaçaõ de duas faculdades theologicas, e augmentos da congrua dos bispos.35
Donato Mello Júnior36 afirma que quando ainda era pároco da freguesia do Engenho Velho no Rio de Janeiro, o padre José Afonso Torres requereu ao imperador duas honrarias, uma delas foi à graça da murça de cônego da capela imperial, do qual não se sabe o resultado da solicitação. Já a outra foi à concessão da mercê honorífica de Cavaleiro da Ordem de Cristo, tendo seu pedido atendido pelo imperador. Esse tipo de condecoração acabava por criar laços de fidelidade e uma elite política que gravitava em torno do governo imperial.37
Françoise Souza38 elucida que D. Pedro II se valeu desse mecanismo para consolidar o Império no Brasil, buscando manipular a seu favor os religiosos que tinham recebido a mercê. Apesar de José Afonso Torres ter sido condecorado na época do Segundo Reinado, a documentação oferece poucas pistas sobre seu comprometimento com o imperador em consequência do título honorífico, mas é certo que pelo menos na teoria, o bispo vivenciava essa dupla lealdade por meio da nomeação via ordens.
Em outro estudo, Ítalo Santirocchi39 aponta a atitude do governo imperial em nomear apenas religiosos ultramontanos para a administração das dioceses como uma estratégia para afastar os sacerdotes da política partidária, já que esses bispos conservadores, na teoria, favoreceriam a ordem e disciplinariam o clero. Entretanto D. José, apesar de não entrar em conflito direto com o Estado, em certos momentos priorizou o zelou pela diocese em detrimento das subserviências ante ao aquele. Em virtude do Padroado Régio, a Igreja deveria suportar as prerrogativas do Estado, inclusive a criação de freguesias sem a sua participação. D. José não aceitou esse postulado que desqualificava a participação da Igreja e manifesta de modo incisivo sua contrariedade:
Nenhuma freguesia será depois dessa data canonicamente considerada creada senão quando os parochos d'aquellas, donde se desmembrarão as partes para essa creação tenhão disso participação oficial nossa ou do Vigario Geral da respectiva comarca, sem o que nenhuma alteração se fará nos respectivos limites; o que determinamos para evitar os inconvenientes, que possam nascer da duvida de quaes os legítimos parochos dessa parochia.40
Como se vê, o trecho acima deixa visível a inclinação ultramontana do referido bispo, pois além de se opor a tais prerrogativas, ainda orientou os religiosos a resistirem às diretrizes oriundas do poder temporal. Ou seja, por mais que o imperador tivesse a intenção de manipular a direção espiritual a seu favor, o bispo seguiu a doutrina propugnada pela Sé de Roma, com a qual concordava. Dispondo-se mais a uma defesa desse postulado, do que a uma aprovação da tese empregada pelo poder civil como esperavam os defensores da supremacia do Estado para fazer valer seu poder de subordinar não apenas a hierarquia, mas toda Igreja.
No período compreendido pelo bispado de D. José Afonso Torres (1844-1857), ainda não é perceptível uma completa negação do envolvimento do poder civil nos assuntos eclesiásticos, o que só se deu mais tarde. Houve mais possibilidades de negociação do que de conflito devido ao ultramontanismo não sendo totalmente senhor da hierarquia católica, situação bem diversa a partir de 1860. Neves41 defende que, a partir dessa temporalidade a Igreja tem na direção das dioceses um projeto de fortalecimento do ultramontanismo e passou a criar empecilhos para dificultar a subserviência do clero ao poder civil e a política do liberalismo assentada na modernidade.
Essa época ficou marcada pelo abalo na relação entre a Igreja e o Estado impelida pela encíclica papal Quanta Cura e o Syllabus do ano de 1864, bem como o dogma da Imaculada Conceição datado de 1854. Destarte, esses documentos contribuíram sobremaneira para acirrar os ânimos entre o poder temporal e espiritual, uma vez que a Igreja, através de Pio IX, procurou maior autonomia frente ao Estado e estimulou a comunidade católica a combater a modernidade.
Considerações finais
Em decorrência dos fatos mencionados, é importante perceber que concomitantemente ao bispado, no qual o processo ultramontano começou na Amazônia, D. José envolveu-se com a política. Primeiramente em 1845, como deputado da Assembleia Legislativa do Pará, e posteriormente, como representante político da recém-criada província do Amazonas em 1851, embora lembrando que ele também foi eleito deputado pela província do Pará em 1850, apesar de que não tomou posse da cadeira. A documentação até agora revelou uma intensa preocupação do bispo com a formação e orientação dos religiosos no momento em que iam a repassar a doutrina católica aos fiéis,42 bem como as fontes de sua vida política mostraram a imagem de um religioso preocupado por os assuntos da Igreja nos momentos de execução de cargos políticos. Por exemplo, durante o mandato de deputado pela província do Amazonas na Assembleia Nacional, onde ao invés de manifestar preocupação com os grandes problemas da nova província, D. José proferiu seus discursos vislumbrando a melhorias aos negócios eclesiásticos que ele sentiu ameaçados em todo país e não apenas na província pela qual deputava.
Devido a isso, D. José não parece se encaixar na categoria de padres que se tornaram ''servidores do governo e parasitas sociais'' durante o Império (John Lynch), visto que o referido bispo se valeu dos instrumentos políticos adquiridos para auxiliar na promoção da reforma interna da Igreja que foi tão destacada nos tempos de D. Macedo. Como se vê esse trabalho busca possibilidades de levantar novas discussões e reflexões sobre a relação entre Igreja e o Estado, antes da intensificação do embate da instituição católica contra a modernidade no Brasil, tendo como destaque D. José, caracterizado por ser um bispo político, em um momento de transição da Igreja, que tentou colocar em prática ideias vindas da hierarquia católica da Europa dentro da sociedade amazônica.
Deste modo, ao analisar a conjuntura política e religiosa da época, surgiram indagações que nos levaram a maior aprofundamento sobre o ingresso do prelado diocesano na política, assim como compreender os limites do bispo ao se submeter às prerrogativas do poder temporal, além de analisar a forma como ele defendeu a autonomia da Igreja. Na qualidade de servidor do Estado como deputado provincial demonstrou a prática política do bispo servindo para alavancar a plataforma de sua missão católica.
Ao que parece, a presença do bispo da diocese do Pará na política não significou o alijamento de sua identidade religiosa, pelo contrário, sua atuação nos espaços oficiais de poder do Estado é entendida como resultado de uma cultura política assinalada fortemente pelos valores religiosos. Assim, ao mesmo tempo em que buscava garantir o monopólio da fé ao catolicismo conservador, ele também representava o Estado no papel de deputado, sempre priorizando seu múnus pastoral. Esta ainda é uma conclusão provisória. Logo, pretendemos confrontar nossa hipótese com a historiografia e as fontes existentes, tendo em mente a relevância de refinar como foi efetivada a constituição das lealdades ao trono e ao altar, mediados pelo ultramontanismo e pela modernidade.
Bibliografía
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